Pode acontecer. Normalmente com escritores de renome. Mas também um pobre escriba, por engano da sorte, também consegue. Foi o que me aconteceu. Sou daqueles que ainda recolhem da rua, quando vindo para casa, material reciclável: minha baixa presença na luta pela preservação da natureza.
Pois não é que enxergo uma bola de papel, estilo daquele petardo que atingiu há algum tempo o bico de um tucano hoje recolhido ao mais absoluto silêncio. Recolhi a bola de papel, amassado, para trazê-la para o lixo reciclável, mas não pude deixar de lembrar aquele velho episódio do tucano desmaiado…
Notei que havia escrita, muita escrita. E como leitor curioso, fui àquela caligrafia clara, de uma escrita com caneta BIC como é moda instaurada pelo Principal. Tudo tão claro como se fosse um luminoso power point. E aí a sorte me sorriu. Eram anotações de um diário. Diário de um Corvo. E ele dizia então:
Estou deprimido. É de causar vontade de morrer… Depois de tudo que fiz! Cumpri promessas que não poderiam nem ter feito. Trapaciei. Inventei. Nada provei. Fui vazante. Fiz tudo, muito além do humano possível. Me comparei ao Profeta Neemias. Preguei. Orei. Dei palestras a outros da mesma raça: os corvos todos me batiam continência. Fui maioral. Dei-lhes tudo. Está lá fechado o que queriam. Não consegui engaiolar ideias, mas isso um mero profeta não consegue. Somente Deus poderia ter feito isso, mas quando podia fazê-lo, este Corvo sabido mas não sábio, voou alto para o planalto. Plana enquanto eu aqui sofro.
Depressão. Na linguagem do Golden Shower, uma sacanagem das grossas que fazem comigo. E fui sacana: mancomunei-me com departamentos longínquos, viajei, escrevi acordos, usei de todo meu charme para comer graviolas. Consegui um despacho e um segredo de “juntice”.
Mas neste mundo – que tristeza! – há muitos abelhudos. Descobriram meu pirulito de bilhões de metros. Até parece que estão sedentos para chupá-lo. O pirulito era para mim, somente para mim! Que vontade de chorar! Quem vai segurar minha tristeza? Meu pirulito era tão grande, sabia gostoso, colorido com muito verde…
E agora, meu Senhor? Que será que virá? Os abelhudos se achando… abelhas perto de abutres nada são, mas incomodam. E conseguiram desviar meu pirulito. Fiquei chupando o pouco que sobrou, mas pouco, poucochinho.
Vingo-me. Vou deixá-los. Não contarão mais com minha esperteza e minha beleza. Que não sou corvo para perder os ganhos! Estou fora e não lavarei mais nada.
Li tudo e temi pela vida do pobre Corvo. Uma vida de Corvo não se joga fora com suicídio. Fiquei matutando: uma depressão pode ser forte motivo para desejar a morte. Matuta daqui, matuta dali, lembrei de uma ave de rapina que tecla, tecla tanto que a apelidaram de “tacla”, que é durão. E então me acalmei, recuperei o fôlego: o poucochinho é muito, são milhões de pirulitos… E fiquei zangado com o chorão do diário: muito egoísta, queria pirulitos de bilhões de metros e agora acha pouco alguns milhões de pirulitos! E eu que pensava que corvos nem gostassem de açúcar!
Talvez o Corvo do Diário tenha se lembrado daquelas outras sobras, e rasgou estas páginas do Diário, que caíram em minhas mãos em função desta minha mania de querer preservar a natureza! Vou continuar catando, quem sabe encontro outras páginas abandonadas ao vento com palavras esperançosas…
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
as páginas esperançosas são mais raras atualmente, é melhor procurar esperança em biscoitinhos da sorte que acompanham comidas chinesas.
atrevidinha eu neah ?
em biscoitinhos, ou na Bíblia que agora comanda os votos na ONU… porque agora todos sabem qual é a verdade que libertará… João não definiu, mas Bolsonaro sabe qual é, auxiliado pelo Malafaia (que geme por uma mamadeira de piroca) e por Damares Goiabeira.