Obviamente o título do livro dialoga com Ana Terra, personagem de Érico Veríssimo, mulher do Capitão Rodrigo, de uma família de grandes proprietários de terra. Mas diferentemente das grandes figuras de “O Tempo e o Vento”, este é um romance que diz da história recente dos pampas, das colônias de imigrantes alemães e italianos, e da cidade de Porto Alegre, morada final de algumas das personagens que povoarão a sensibilidade do leitor.
Há no enredo diferentes cruzamentos: entre duas famílias – os filhos do imigrante Schneider, que no começo do livro morre trabalhando a terra e um estancieiro de Alegrete com seus dois netos; entre três tempos da história recente do país – o período anterior à ditadura militar, o período da ditadura e o período do começo da redemocratização formal do país; entre o processo retrógrado de produção pecuária do país e as possibilidades entrevistas uso da terra pela agricultura e o processo de produção dos assentados da reforma agrária; entre o mundo de hoje e o mundo do ano 2040 e as mudanças radicais do modo vida entrevisto pela narrativa. E, sobretudo, a feliz exploração narrativa que faz o autor fazendo se entrecruzarem o latifúndio e os sem terra. O tema do romance, de fato, é a reforma agrária tratada a partir das histórias das personagens.
O primeiro grupo familiar a aparecer é o grupo da família Schneider, com sua filha mais velha, Gisela, pregando ripas nas janelas e trancando a casa. Os filhos são Gisela, Heidi – mãe solteira, com seu bebê e o menino Wally. A explicação do encerramento: com a morte do pai, sendo todos menores – Gisela completaria 21 anos poucos meses depois – o tio Klaus quer cuidar das crianças e tomar conta dos poucos hectares de terra que tinha a família. Klaus é apresentado como uma espécie de bem sucedido imigrante que se apossava das terras dos seus compatriotas de forma ilícita. Graças à intervenção do padre Alberto, a tutoria não aconteceu e a família Schneider continuou com seus 27 hectares de terra, onde estava localizado o velho moinho construído pelo avô, uma novidade tecnológica na época da primeira leva de colonos europeus, trazidos pelo Imperador que não cumpriu com as promessas de facilitar a vida dos primeiros colonos com financiamento, sementes, alimentação, ferramentas, etc.
O segundo grupo a aparecer é a família do latifundiário e pecuarista Armando Pinto Bandeira, cuja mulher, filha e genro tinham morrido num acidente aéreo. Com ele vivem Rafael e Marcela, os netos órfãos que criou como filhos. Estão todos na Expointer – exposição agropecuária que se realiza hoje no município de Esteio, próximo a Porto Alegre. Também aqui uma rivalidade, com o tio Gastão, casado com Lúcia que na verdade olha para Armando e se arrepende de não ter casado com o primo. E são precisamente os dois que chegarão ao final do julgamento do touro de raça Hereford. Armando recebe o prêmio do jurado inglês. A discussão entre os pecuaristas é Leonel Brizola, governador a favor da reforma agrária… estamos antes do golpe de 1964.
No terceiro capítulo se dará o encontro: o neto Rafael, um dos filhos de peão, o Zé Matungo e Willy servem ao exército no mesmo quartel, no mesmo batalhão, no mesmo grupo. Zé Matungo tem este apelido por ser domador de cavalos. Há um concurso de salto de obstáculos. Entre os sargentos, ganha o Sargento Bóris (que depois será militante de esquerda, advogado de sem terras); entre os oficiais concorre o tenente Gilson Fraga (que chegará a Coronel), namorado de Marcela, filha do fazendeiro. Está feito o encontro entre as duas famílias. Rafael fica amigo de Willy, leva-o para a fazenda. Numa das férias da família do fazendeiro, Rafael usa um mapa que lhe fornecera Willy e vai até sua casa: queria conhecer suas irmãs e o velho moinho de que tanto falaram. Quando chegam a casa, Willy já estava no seminário. Ele se tornará o Pe. Schneider. Rafael e Marcela conversam muito, como se fossem conhecidos já que ambos os lados conheciam as histórias contadas por Willy e por Rafael quando de serviço no exército.
Há o golpe de 1964. A família Pinto Bandeira, maragatos e membros do Partido Libertador (o antigo PL) são da oposição política. Gilson Fraga, no entanto, que se casa com Marcela, defende o golpe, é transferido para Brasília e chega a coronel. Rafael, por seu turno, começa a estudar veterinária, termina o curso em primeiro lugar, ganha uma bolsa de estudos e vai para a França estudar. Volta com mestrado e se dedicará à vida acadêmica. Faz seu doutorado também na França e leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Enquanto isso, a família Schneider é ‘beneficiada’ pela reforma agrária da ditadura e assentada na Amazônia… onde mal sobrevivem: a terra que preparam de dia para o plantio na manhã seguinte volta a ser floresta. Gisela morre de malária; Ana se torna professora.
Novo encontro das famílias: um deputado da situação leva o velho Armando Pinto Bandeira para o assentamento. Quer fazer bons negócios, comprar as terras ao longo da Transamazônica. Trata-se de um grileiro de terras, com testa de ferro no local: alguém chamado Capitão Jesuíno, que pratica atrocidades com todos os colonos e vai ficando com suas terras. O velho Armando reconhece Ana, conversa na escola com ela e fica sabendo das falcatruas do deputado e do capitão Jesuíno. Também fica sabendo do garimpo em Serra Pelada, para onde foi o filho de Heidi. Hans, seu marido, é um dos líderes que se revolta contra a situação. Estas informações dadas foram a desgraça da família: a casa é invadida por jagunços comandados pelo capitão Jesuíno: Hans é morto, Ana é estuprada. A família desaparece… Por cinco anos Ana não dá notícias: na verdade, durante este tempo todo, esteve internada num manicômio. O sobrinho, filho de Hans e Heidi, jura vingança. E faz tocaia matando o capitão Jesuíno. Depois de tornar-se garimpeiro em Serra Pelada.
O ex-sargento Boris e o Pe. Schneider (jesuíta) fazem parte dos movimentos de oposição ao regime militar e por isso não perseguidos, considerados subversivos. Presos, são torturados enquanto os torturadores escutam o final da Copa do Mundo do México. Este é um dos capítulos altos, mostrando um domínio excepcional da narrativa. Novamente um contraponto, no interior mesmo da narração do episódio que mostra o clima de euforia pelo tricampeonato dos tempos do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, enquanto nos porões da ditadura a tortura e a morte corriam soltas.
Novo corte temporal na narrativa, e chega Rafael de volta da França, torna-se um conhecido pesquisador. E de esquerda. Quando Ana reaparece no enredo, já está casada com Rafael, moram em Porto Alegre. Ana Sem Terra é uma militante pela causa da reforma agrária. O MST já está atuando.
Ela acabara de lançar um livro sobre sua história, escrita durante o período em que estivera no hospício depois do que aconteceu no assentamento na Amazônia. É convidada para uma entrevista tanto para falar de seu livro quanto de sua militância. Durante o programa são exibidas várias reportagens com assentados – Ronda Alta – e com acampados. Ana Sem Terra está grávida e durante uma entrevista para a TV, começam os trabalhos de parto.
O fazendeiro Armando Pinto Bandeira, que conhecera de perto a situação dos sem terras, convida um grupo que está sendo massacrado para acamparem em sua terras pois quer dividi-la com os colonos. No entanto ele adoece, e seu genro, o Coronel Gilson Fraga, membro da UDR, assume a condução da fazenda com metralhadora e capangas. No hospital, Armando falece e o próximo passo da narrativa será a leitura de seu testamento, diante de um juiz, Dr. Roberto, que fora um dos torturadores do Pe. Schneider e do advogado Bóris. No testamento, o estancieiro deixa a fazenda para seu neto Rafael, com a condição de que ele fique apenas com 200 hectares de terra, e o resto distribua entre 200 famílias de sem terra.
Obviamente o Coronel não gosta da história. O juiz faz o testamento desaparecer e os capangas da fazenda realizam o massacre dos acampados, matando inclusive Rafael, Ana Sem Terra e seu filho. O enfrentamento não é narrado, apenas se fazem referências a ele no capítulo futurista, em 2040, quando dois médicos tratam por aparelhos do Pe. Schneider, internado há 50 anos no hospital! Esta história e o tratamento serão o tema de tese do médico assistente… E ao som de Bach, morre o “alemão”, apelido que deram ao padre quando servia no exército.
Esta a história bem tramada. Seu tema, a reforma agrária, passa tanto pela luta quanto pela ação da igreja (que comprara as terras de Ronda Alta e a distribuíra entre colonos sem terra) quanto pelo gesto inusitado do fazendeiro Armando Pinto Bandeira, cujo testamento não é cumprido para mostrar que não será sequer pela ‘bondade’ de estancieiros que uma reforma da estrutura fundiária poderá acontecer.
Embora o livro tenha tido sua primeira edição em 1990, seu tema ainda é atual porque permanecemos sem ter realizado a reforma agrária. Ao mesmo tempo, sua leitura é importante para os jovens de hoje para compreenderem um pouco da história da ditadura e do ambiente social brasileiro na segunda metade do século passado.
Por fim: um daqueles livros que você lê com sofreguidão, que não gosta de ter que suspender a leitura porque tem outras coisas a fazer.
Referência. Alcy Cheuiche. Ana Sem Terra. Porto Alegre : Editora Sulina, 5ª. edição, 1994.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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