Amadores leitores

Amadores: Decididamente faltou essa palavra no livro de Ruth Rocha, Marcelo, marmelo e martelo. Para quem não conhece o livro é uma maravilha para pensar a língua, de uma perspectiva infantil, não meramente tecnológica ou youtuber nutella, mas capaz de indagações inteligentes e astutas que tiram as nossas certezas, tão estranhas de certas, de todas as coisas, e que muda as ordens.  História de crianças, dessas que brincam com latildo, ops cachorro, jogam em campinhos de terra e que tomam suco de vaca. Percebam que já me enveredei por outra história, prometo que já volto à palavra amadores, e a ideia original do texto. Antes preciso dizer um pouco mais sobre Marcelo, o protagonista dessa história que amo e que talvez por isso deu nome ao meu filhote caçula:

E Marcelo continuou pensando:

“Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E Bala? Eu acho que as coisas deviam ter o nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim”. (ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. Rio de Janeiro: Salamandra consultoria Editorial S.A, 1976.)

Marcelo é incrível (aliás, devia usar o plural). Quando fiz faculdade e lia as teorias, e muitas vezes não entendia nada de Saussure à Bakhthin, pensava muito no desejo de saber e organizar as ideias – próprias das crianças, e de como as perguntas insistentes delas podem produzir coisas maravilhosas, se as respostas causarem reflexões sinceras como as que originam as perguntas, coisas do tipo sobre a origem das palavras, os usos, as escolhas, enfim… Agora volto à palavra cerne do texto: Amadores.

Nosso país não é para amadores, mas é.  É que a palavra não é boa, entendem? Ou é muito boa e está sendo usada de forma muito desapropriada – nos dizeres de meu amiguinho linguista Marcelo. Deixa ver se consigo explicar sem chorar e melar o texto.

Eu amo, tu amas, ele ama, pensemos que o objeto deste amor é o nosso país, sendo assim, mas sem ufanismo que valha, e exatamente por sermos todos amadores, que conhecedores de nossas profundas diferenças e indiferenças, nos achamos um país não propicio a tal adjetivo. Até aí, tudo bem? Errado. Amadores é outra coisa.

Amador é aquele que não é profissional, que faz as coisas sem saber bem o que esta fazendo, tipo eu escrevendo: amadoríssima. Muitas vezes o amador é cheio de boa intenção, mas falta conhecimento. Pode até sobrar interesse, paixão, vontade, mas falta uma porção de outras coisas: históricos, idiossincrasias, diversidade, ritmos, técnicas e comportamentos, e outras coisas…

Não é para amadores pensar que em um país como o nosso, com história e formação muito rica em episódios culturais e diversidade aconteçam coisas como as que estão presentes na atualidade.

É uma propaganda de marca de perfume que usou elenco negro para representar uma família brasileira ser acusada de promover o racismo inverso. Uma jovem advogada seja brutalmente espancada pelo marido e depois de quinze minutos sem nenhum socorro ou colher de vizinho, ser arremessada pela janela de seu apartamento, e que os jornais veiculem casos assim com manchetes do tipo: Morta ao cair da sacada do prédio.

Mas calma! Ainda temos mais: um partido que golpeado, e que tem como resultado a prisão política de sua maior liderança faz acordos com os arquitetos e idealizadores do seu golpe para a próxima eleição, não satisfeitos esperam ainda na justiça ou legalidade a resolução para seus infortúnios, mesmo tendo assistido de camarote a revelação de que não houve reforma no tríplex (peça central da acusação) e que mesmo assim nada foi feito no sentido do falso testemunho.

E para a cereja do bolo, que não é o feminino de bola, um candidato a vice-presidente da república diz em alto e bom som que na nossa origem está a malandragem herdada dos africanos (negros) e a indolência dos índios. Sempre tem como amar mais: corta-se as bolsas de pesquisa para 2019, e concede-se uma aumento de quase 17% para  judiciário, o que resultará em mais de R$ 717 milhões no orçamento.

É verdade que muitas coisas acontecem, e nos deixam mais melancólicos, depressivos eu confidenciaria, mas a capacidade e ritmo frenético de golpes que tem atingido o povo brasileiro tem uma razão, é preciso desmotivar, calar, tomar o tempo de reflexão, levar a exaustão, e continuar socando até não poder mais, para que na lona o povo jogue a toalha.

Me sinto assim todos os dias. Olho para meus filhos e penso que as estatísticas estão contra eles, tão pretinhos. Lá está minha filha: lendo, uma criança devoradora de histórias, o mundo é um moinho já disse Cartola, que homens estamos construindo para seu futuro, não faço aqui planos românticos, mas para vida: como ela será tratada, como será empregada, como será protegida pela sociedade que chama mulheres de loucas, que preferem nas capas de jornais manchetes que falam de morte após queda ao invés de possível feminicídio. Já não tenho dúvidas. Vejo pessoas matando lutas, silenciando quem ousa se empoderar. E para mim preciso olhar para meu passado e buscar outras posturas que talvez fossem mais esperadas, mais apropriadas.

Escrevo para poucos leitores. Escrita amadora. Leitores de redes sociais, que não querem ler, sem tempo para o Marcelo, sem tempo para escrito, sem querer ver o que não está em registro. Às vezes me desmotivo pelo silêncio, outras vezes me motivo pelo mesmo sentido. É bem isso: uma hora uma coisa é uma coisa, outra hora uma coisa é outra coisa: linguística purinha.

O país não é mesmo para amadores. Pelo menos não para um tipo de amador.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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