ALFABETIZAÇÕES COTIDIANAS
As letras da cidade e a cidade das letras(1)
João Wanderley Geraldi
Unicamp
“Toda tentativa de rebater, desafiar ou vencer a imposição da escritura, passa obrigatoriamente por ela. Poder-se-ia dizer que a escritura termina absorvendo toda a liberdade humana, porque só no seu campo se desenrola a batalha de novos setores que disputam posições de poder.”(Angel Rama, 1985)
Vigotsky inicia sua “Teoria das Emoções” lembrando a expressão de J.W.Goethe: “certas idéias amadurecem em determinadas épocas à semelhança dos frutos que caem simultaneamente em distintos hortos”. Neste texto recolho algumas destas idéias, frutas de nossa época, sem qualquer pretensão de fazer uma colheita minuciosa e agricolamente ciosa de não perder o que a terra dá. Ao contrário, procurarei esparsos frutos de ditos e escritos, sem suficiente fidelidade, orientado apenas pela fome de encontrar âncoras em tempos tão sombrios, quando ideais se diluem e nos sobram somente gestos travados, gritos brecados e ilusões perdidas.
Será que podemos ainda cantar os mesmos cantos?
Elogio do Aprendizado
Aprende o que é mais simples! Para aqueles
cujo momento chegou,
nunca é tarde demais.
Aprende o ABC: não basta, mas
aprende-o! Não desanimes!
Tens de assumir o comando!
Aprende, homem no refúgio!
Aprende, homem na prisão!
Mulher na cozinha, aprende!
Aprende, sexagenário!
Tens de assumir o comando!
Procura a escola, tu que não tens casa!
Cobre-te de saber, tu que tens frio!
Tu, que tens fome, agarra o livro: é uma arma!
Tens de assumir o comando!
Não tenhas medo de fazer perguntas:
não te deixes levar por convencido
vê com teus próprios olhos!
O que não saber por experiência própria,
a bem dizer, não sabes.
Tira a prova da conta:
és tu quem vai pagar!
Aponta o dedo sobre cada item,
Pergunta: como foi para aí?
Tens de assumir o comando!
(Bertolt Brecht)
1. Alfabeto e alfabetização
Sem uma arqueologia segura que garanta como se deu a emergência da linguagem e da escrita, estes produtos do trabalho humano, talvez possamos ainda acreditar que as necessidades de sobrevivência – afinal não nascemos adultos, autônomos e suficientes por obra externa a nós próprios – aglutinaram os homens que necessariamente se co-orientaram em seus fazeres, em sua caça.
“Numa caça na savana alta, um caçador indica com seu gesto a um outro caçador, que está impedido de ver, onde está uma presa(2). O primeiro caçador está transformando a sua percepção num processo motriz-operativo: o de indicar com a sua mão. A estrutura desta operação deve ser construída de modo que resulte numa percepção semelhante no e para o segundo caçador. Deve, então, ser construída uma analogia entre o gesto próprio e a sua percepção pelo outro caçador para que disto resulte uma comunicação realizada. Neste contexto, o gesto torna-se um meio importantíssimo para realizar distâncias simbolicamente. O primeiro caçador olha o animal e em vez de correr para matá-lo, faz um gesto transformando o seu ato de percepção numa operação motora, criando assim uma distância entre si e o animal. O caçador não vê o animal apenas como caçador solitário, mas ele o vê com os olhos dos outros que não o vêem e para os quais ele indica o animal neste trabalho colaborativo de caça. Em outras palavras, o caçador vê um objeto (o animal) como um objeto, nos seus aspectos objetivos, mas a operação de indicar o animal está separada da ‘objectualidade’ do animal, no entanto necessário para a emergência do gesto que indica para o outro este objeto para ele invisível. Em conseqüência, a base da objetivação não está só no objeto em si, no nosso caso a presa desejada, mas essencialmente nas relações com as outras pessoas nesta atividade comum e conjunta de caça. Com exceção do homem, os demais animais são incapazes tanto de realizar uma distância simbólica quanto de estabelecer uma relação mediada por signos ou instrumentos.” (Benites, M. Fichtner, B e Geraldi, J.W. 2005, incluindo nota de rodapé; no prelo).
Estamos longe e próximos destes gestos: as representações sígnicas das objectualidades (concretas ou não), uma vez presentes na história, nela continuam. E certamente ganham asas: não falamos para representar o existente, criamos com a fala o antes inexistente. Contamos a nós mesmos com palavras. Somos nossas palavras. Mas se a nossos gestos associamos palavras e se as palavras, com freqüência, fizeram esquecer o corpo que fala e gesticula, ainda assim, à toda estranheza, retornamos a estes momentos da fala corporal: olhar, tocar, olhar-se e tocar-se.
Dentre os gestos que naturalizamos e esquecemos que gestos sejam, adquire importância capital o escrever: um modo de fazer com as mãos uma representação do que já era signo. Na história, foram inúmeras as tentativas deste gesto, mas em todas predominaram as características das necessidades que o fizeram surgir: a interlocução à distância no tempo e no espaço exigiu da escrita uma qualidade de ‘fixidez’. E os artefatos criados para tal ora seguiram o caminho de tentar dar corpo fixo à fluidez dos sentidos (as escritas ideográficas, por exemplo) ou à fluidez da oralidade (todas as escritas alfabéticas).
Podemos formular uma distinção operacional para refletir sobre o trabalho de construção destas possibilidades de escrita. Todo novo invento que a tecnologia nos coloca à disposição vem marcado por sua época, por uma assinatura e por uma data de nascimento. A estes produtos do fazer e conhecer humanos, chamemos de ‘tecnologia’. Mas há outros muitos inventos do trabalho da humanidade, mas seus nascimentos e assinaturas são coletivos, são históricos. Chamemos a estes produtos de artefatos. O alfabeto é um artefato, e como todo o artefato vai perdendo sua artificialidade e vai sendo naturalizado, incorporado e encorpado. No que se refere à escrita, isto está tão naturalizado para os já alfabetizados que eles ao falarem da escola, depois de alguns anos de escolarização, se perguntados sobre o que aprenderam na escola acabam esquecendo que aprenderam a lidar com a escrita (e dê-se à expressão ‘lidar com a escrita’ os mais variados sentidos que possa ter).
O desenvolvimento histórico deste artefato não se deu de forma linear nem isolada nas diversas culturas: as conquistas de um povo acabaram sendo compartilhadas com outros povos. Da escrita cuneiforme à escrita silábica e desta à escrita fonológica e ao alfabeto fonético, fomos, em certo sentido, cada vez nos aproximando mais das possibilidades ‘técnicas’ de o artefato servir para registrar a oralidade. O que estou querendo dizer aqui é que a escrita, em termos do alfabeto disponível, pode funcionar quase como um ‘registro magnético’ sem voz! E, no entanto, quanta diferença. Saber como estas diferenças foram construídas é aprender com o alfabeto o que quer dizer ‘alfabetização’.
Antes de tudo: a escrita atende a necessidades diferentes da oralidade. Se a interlocução à distância obriga a fixar o dizível sobre alguma superfície, a ausência daquele a quem a escrita se destina obriga o locutor a esta viagem constante ao lugar do outro, para deixar na superfície onde seus gestos de escrita se fazem o máximo ou o mínimo, dependendo das circunstâncias, de pistas para compartilhar sentidos. Esta presença ausente do outro certamente é responsável por inúmeras das diferenças que os mundos da oralidade e da escrita acabaram por produzir.
Talvez ela nos ofereça uma pista para compreender a alfabetização. Por que ela se torna necessária? Somente pela inegável arbitrariedade da representação escrita? Afinal, um som como ‘a’ tem representações inúmeras, e representações todas convencionais. Nada obriga a que aquilo que articulamos como ‘a’ seja representado pelos desenhos convencionais com que operamos. Esta convenção, mesmo numa escrita alfabética, já impõe um processo de aquisição diferente daquele da oralidade. É preciso entrar para a convenção, o que implica necessária compartilha dos mesmos ‘objetos’, as letras(3).
Esta característica impõe a aprendizagem das convenções (e também das formas de suas destruições, para retornar a Angel Rama). E a aprendizagem supõe uma ação do aprendiz, um movimento de busca do não sabido. Entre o desconhecido a conhecer e este movimento de conhecer há inúmeras mediações. Alfabetizar é mediar este processo. Alfabetizar-se é entrar para o mundo da escrita.
“Aprender a ler não corresponde simplesmente à aquisição de um novo código ou muito menos ao simples desenvolvimento de um tipo de percepção através do acréscimo de uma nova habilidade. Aprender a ler é, também, ter acesso a um mundo distinto daquele em que a oralidade se instala e organiza: o mundo da escrita que […] não é o simples registro das manifestações orais, já que ele institui, para os falantes de uma mesma comunidade, territórios privilegiados, muitas vezes ocultos sob a forma de enigmas, documentos esotéricos, a cujo acesso a alfabetização pode se constituir numa espécie de iniciação.” (Osakabe, 1982:149).
Eis nos diante de um outro mundo: o alfabeto, criado para representar a oralidade, tecnicamente capaz de cumprir este papel, já não mais tem relação com a oralidade, faz-se ao largo da oralidade. Estar no mundo da escrita é estar também em outro mundo. E quantos mundos há neste mundo?
2. As letras da cidade
Um destes mundos é aquele constituído pelas letras da cidade, mundo extremamente polifônico, por onde a escrita circula naturalizada e não sem alguma poluição visual. Em sociedades letradas, há escritos por toda parte. Mover-se pela cidade implica também ler algumas destas ‘letras’, mas também estar cegos para inúmeras outras, sob pena de alienarmo-nos como consumidores ao que nos é oferecido. Nossas táticas de sobrevivência (Certeau, 1994) nos tornam usuários destas letras.
Não raras vezes, as defesas das ‘alfabetizações cotidianas’, por força da retórica de defesa do aprendiz, dos seus saberes, dos seus vividos, acabam sendo confinadas ao domínio escolar ou escolarizado destas letras da cidade. No entanto, nada está mais longe das letras da cidade do que as alfabetizações cotidianas. Assim interpretadas, elas não passariam de uma facilitação (dês)cortês. Com esta expressão estou querendo chamar a atenção para:
- a utilização escolar do sabido e dos saberes resultantes do vivido não são um mero expediente didático de facilitação da aprendizagem das convenções da escrita;
- se assim entendida, não tem o menor interesse em ultrapassar a descortesia do corte que as desigualdades sociais produziram: tratar-se-ia então de formar ‘consumidores’ das letras já disponíveis e tornadas públicas, quando o que se aponta com as alfabetizações cotidianas é a possibilidade de responder a estas letras domesticadoras;
- ler o cotidiano é aprender a ‘misturar todas aquelas letras’ (Sampaio, 2003), para com elas produzir o discurso que não circula no mundo da escrita porque este foi tomado pela cidade das letras.
– Por que é bom pra uma pessoa ter família? Pai, mãe, na sua cabecinha?
– [silêncio]
– Que é que você acha?
– O que eu acho?
– Claro, você é um menino, tem opinião, não tem?
– Tenho.
– Isso.
– Mas essa opinião não está circulando.
(do diálogo sobre família entre uma pesquisadora e um menino de rua. Machado, 2003:103-104).
Pensar uma alfabetização com o cotidiano é tentar descobrir e abrir-se para aceitar histórias contidas e não contadas, opiniões e sonhos abortados pela desigualdade, tendo o cuidado de não confundir desigualdade com diferença (Geraldi, 2003).
“1)Morada é um tipo de abrigo, não só para nós mas também para os animais. Alias todos nós precisamos de uma moradia (Gilda)
2) É o lugar onde a gente mora, ou seja onde nascemos e crescemos. Uma casa tem que ser de amor (André e Welington)
3) É o lugar onde vivemos, compartilhamos tudo que sentimos, por isso é importante todo mundo ter uma, mas como existem muitos problemas, muitas pessoas não tem onde morar e moram em baixo da ponte e viadutos. Existem muitos casos como este, são obrigadas a morar na rua, a roubar e até também matar para não passarem fome. Estas são nossas palavras sobre o assunto (Cirlene/Thais)
4) É o lugar onde vivemos e comemos. É muito bom ter uma casa para morar. Tem gente que tem uma casa melhor, mas não tem importância ter uma casa ruim, o importante é ter um lar. As pessoas que moram na rua tem vontade de ter uma casa (Sinomar, José G).” (Alunos de 5a. série, em 1993, respondendo à pergunta do professor: O que é morada para você? Oliveira, 2005)
3. A cidade das letras
Vou retomar os estudos de Angel Rama não pelo resumo de suas considerações sobre as cidades latino-americanas e pelas inúmeras cidades das letras que na história construímos ou ultimamente gostaríamos ter produzido. À cidade ordenada e à cidade escriturária, tão próprias de nossas escolas e dos modos de operar com a língua escrita, vou por em diálogo Angel Rama com uma parte da narrativa de Ismail Kadaré, no romance histórico em que retoma o passado albanês sob domínio do império bizantino. Qualquer semelhança da ‘não-língua’ imposta aos rebeldes não é mera semelhança com a exclusão dos sujeitos falantes e de suas falas em nossa sociedade, onde a cidade das letras continua a ser um anel em torno do poder, a seu serviço e em defesa de privilégios para seus próprios sacerdotes.
“O processo de desnacionalização total ou parcial dos povos, que era a tarefa principal do Arquivo do Estado, se consumava segundo a velha doutrina do “Cra-Cra” e transcorria em cinco fases principais: a primeira, a eliminação material da rebelião; a segunda, a eliminação da idéia de rebelião; a terceira, a erradicação da cultura, da arte e dos costumes; a quarta, a extinção ou mutilação da língua e a quinta, a extinção ou enfraquecimento da memória nacional.
De todas elas, a mais breve era a fase de eliminação física da rebeldia, que não consiste em mais do que a guerra, enquanto que a mais demorada era a eliminação da língua, ou a Não-língua, como era chamada para abreviar.
Em pesadas estantes de bronze se encontravam os expedientes das línguas mortas. Eram grossos, mas a maioria de suas folhas estava borrada com o maior cuidado. As palavras do dicionário, as regras gramaticais e da sintaxe eram apagadas de forma progressiva, segundo seu grau de desuso ou desaparecimento. Ao final eram apagadas as letras do alfabeto, últimos vestígios da língua escrita, depois do que se certificava sua morte completa. Imediatamente depois começava o outro processo, ainda mais demorado e difícil, a eliminação da língua oral, que atravessava várias subfases. Por exemplo, a última e definitiva fase consistia em sufocar a língua em seus últimos redutos: as velhas. Estava comprovado que, de modo geral, a língua vivia mais tempo nas mulheres, sobretudo nas que haviam tido filhos. Mais tarde, quando a língua havia sido apagada da face da terra, chegava um tempo em que diminuía também o número de anciãs que, como as antigas urnas, mantinham as cinzas dos últimos despojos da língua. Elas eram anotadas em registros especiais como “velhas com língua” e submetidas à constante vigilância até sua morte. Depois disso, o processo de liquidação da língua, ou o processo da Não-língua, era tido por consumado.
Toda esta experiência secular se encontrava nos expedientes do Arquivo. Ali estava tudo: os prazos, os imprevistos, as últimas mostras de teimosia, em uma palavra, tudo com exceção da própria língua eliminada. Nos milhares de páginas dos expedientes não se encontrava um só vestígio, uma só palavra, sequer uma sílaba. A supressão absoluta de todos os dados sobre a língua morta se levava a cabo com o objetivo de prevenir toda e qualquer possibilidade de que a língua retornasse.
Durante longo tempo haviam existido duas correntes opostas em relação à conservação ou não do cadáver da língua. Um grupo sustentava que, ao menos num expediente único do Arquivo, uma múmia da língua poderia ser conservada; o outro insistia que a conservação da múmia da língua não era útil para nada e que, além disso, isso deixava em aberto a possibilidade de sua ressurreição. Finalmente triunfou a segunda tendência. Seus adeptos tinham encontrado em velhas crônicas o caso da ressurreição de uma língua, a que os cronistas chamaram, com terror, de “Língua-Cristo”. Os cronistas escreviam que se ignorava como podia ter acontecido de uma língua desaparecida da face da terra há muito tempo ter retornado. Perseguiram as pessoas em quem ela foi encontrada; por fim capturaram-nas quando fugiam pelos pântanos, prenderam-nas em correntes, cortaram-nas em pedaços, mas elas não quiseram ou não tinham condições de contar como a haviam encontrado, a ela, a proscrita. Houve prolongadas investigações no Arquino do Estado, foram revisadas minuciosamente as listas dos funcionários que tinham trabalhado no prédio, as entradas e saídas de todos os empregados, mas não se pôde chegar a nenhuma conclusão. Tudo ficou envolto em mistério. Escreviam os cronistas que havia se dado este fato inexplicável, que fez estremecerem suas carnes durante muito tempo e que quebrou o sossego de seus corpos e de seus espíritos.
Com esta página da crônica em suas mãos, foi fácil para a ala dura triunfar na polêmica.
Pois bem, o expediente das línguas mortas eram escassos e suas datas habitualmente muito distantes. Uma língua morta, inclusive nos tempos de maior florescimento do “Cra-Cra”, era considerada uma vitória absoluta. Mas as coisas haviam mudado muito desde então. Ainda que a doutrina da eliminação das nações tenha permanecido a mesma, muitas de suas disposições não eram aplicadas há muito tempo. Há tempos o Arquivo se conformava com vitórias de menor dimensão que, no entanto, eram consideradas importantes. A realização, inclusive apenas de partes, do processo de Não-língua era considerada um logro extraordinário. Ele se iniciava com a interrupção do desenvolvimento normal de uma língua, com o objetivo de deixá-la esquálida tal como uma criança raquítica; e prosseguia depois com sua mutilação. Em expedientes especiais se encontrava anotada toda a experiência de cerceamento da língua: o coteja anual do vocabulário, onde as palavras iam escasseando como as folhas das árvores no outono; as ruínas gramaticais, a atrofia das partículas, sobretudo dos prefixos, a adiposidade da sintaxe. Lentamente a língua começava a entumecer-se; a assemelhar-se à fala balbuciante. Uma língua assim era praticamente inofensiva, pois, tal como uma mulher sem matriz, perdia a capacidade de gestar relatos e lendas. Quanto muito, poderia dar, de geração em geração, algum testemunho grosseiro de existência, com tão pouca inspiração que dificilmente sobreviveria ao passar dos tempos.
Neste ponto se considerava cumprida uma das fases principais do processo de Não-língua. Em seguida se iniciava a fase seguinte: seu esfriamento ou hibernação. Este era o começo do caos, do delírio, até a língua chegar ao estado de coma, que era também sua agonia. Enquanto folheavam as crônicas primitivas que falavam do delírio das línguas, os jovens e enérgicos funcionários sonhavam com o retorno daqueles tempos de grandes possibilidades. Mas depois de alguns anos de trabalho no Arquivo, eles compreendiam que o envelhecimento de apenas uma língua consumia a vida de gerações inteiras, imagine falar de sua morte. Bendiziam o destino porque o Estado reclamava cada vez menos deles, pois renunciava, em algumas ocasiões, inclusiva à mutilação da língua, conformando-se que os escritores e os trovadores do país submetido abandonassem sua língua e escrevessem no idioma geral do Estado.
No entanto, apesar desta frouxidão, o setor de línguas era o mais duro do Arquivo e seus funcionários continuamente se empenhavam na degradação das culturas nacionais.
Esta era uma secção ampla, com inumeráveis subsecções para arte, as tradições orais, a música, os afrescos, os adereços, as bodas, a arquitetura, os corais, a épica popular, etc, etc. Em seus arquivos poderia se encontrar de tudo, desde a perda das cores da pintura e das vestes, com o empalidecimento do famoso vermelho, o enturvamento do azul até chegar ao azul asiático, e a degeneração de ambas as cores até a cor cinza, que é a cor da raia; o lento esquecimento das canções; o embotamento das danças a ponto de parecer que os dançarinos estavam com os pés amarrados a correntes; a fisionomia e altura dos edifícios; até, sem dúvida alguma, a abolição da escrita.
Era na esfera da desnacionalização das culturas que se davam as mais ásperas polêmicas. Havia velhos conservadores que se negavam a mover uma só vírgula dos preceitos seculares. A semelhança da prática do maldizer o alfabeto de uma língua (cujas regras haviam sido estabelecidas em sombrias cerimônias de quatro séculos atrás), defendiam, por exemplo, a maldição das regras poéticas, da prosa em forma de narração, dos saltos rápidos no bailar das chaminés etc.” (Kadaré, 2001)
A cidade das letras, tal como entre nós tem existido, tem produzido sujeitos da ‘não-língua’ mais do que sujeitos prontos a dizerem a sua história, uma outra história. Sempre é possível, no entanto, encontrar nesta mesma cidade, usando também a escrita, aqueles que se contrapõem à cidade das letras para construir uma cidade outra, de outras vozes. Penso que a aposta das alfabetizações cotidianas reside precisamente nisto: não o ‘letrar-se’ para pertencer à sociedade letrada nos níveis que esta prevê para cada segmento social, mas o alfabetizar-se para recuperar na ‘não-língua’ os silêncios, para soltá-los com nós nas gargantas, apesar dos infortúnios impostos pelo pensamento globalizado, este que se pensa único e tem sido capaz de nos roubar qualquer sonho!
Expõe a mercadoria!
Sempre que vou
pela cidade deles
atrás de um ganha-pão, alguém me diz
– Mostra o que trazes contigo,
abre em cima do balcão:
expõe a mercadoria!
– Conta uma coisa que nos empolgue!
Fala da nossa grandeza!
Descobre nossos secretos anelos!
Indica-nos a saída!
Expõe a mercadoria!
– Mistura-te conosco
para sobressaíres,
Mostra-te igual a qualquer um de nós
e nós diremos que és o maior!
Nós podemos pagar, temos recursos
e ninguém mais do que nós.
Expõe a mercadoria!
Fica sabendo: nossos preceptores
são aqueles que ensinam o que queremos que ensinado seja!
Manda, enquanto obedeces!
Dura, enquanto nos levas a durar!
Entra no jogo conosco, vamos repartir os ganhos!
Expõe a mercadoria! Sê leal para conosco
expõe a mercadoria!
Quando lhes olho bem os rostos corrompidos,
lá se vai minha fome… (Bertold Brecht)
Nas letras com que acedemos à cidade deles foi possível encontrar o poeta que se contrapõe à mesa posta, não expõe a mercadoria no balcão, para continuar defendendo que ler e escrever émais do que conhecer as letras da cidade, porque resulta de querer uma outra cidade das letras que, por ser de todos, deixa de ser das letras para ser nossa.
Notas
(1) Publicado em Garcia, Regina Leite e Zaccur, Edwiges (orgs). Cotidiano e diferentes saberes. Rio de Janeiro : DP&A/FAPERJ, 2006, p. 59-71.
(2) O etólogo Schaller (1972) analisou a caça conjunta feita por leões e mostrou que existe uma colaboração nas ações destes animais diante de uma presa. Como veremos na seqüência de nossa análise, esta colaboração resulta da construção conjunta do trabalho humano e implica a existência de comunicação, o que não ocorre entre os leões. Acontece que na caça todos estes animais são ‘coordenados’ por um elemento externo a eles próprios, a presa. Se um leão não está vendo a presa, não há qualquer comunicação possível feita por outro leão que a está vendo para com isso indicar ações possíveis ao leão que não vê a presa. Claro está que o fator principal entre os leões não é a visão, mas o olfato. Como carnívoros, são guiados pelo olfato, que demanda a presença da presa. Mas o ataque conjunto à presa exige o concurso do olfato e da visão. E não há possibilidade de indicações de lugar ocupado pela presa para um outro leão que não a está vendo, embora a esteja sentindo presente pelo olfato. Não há, portanto, qualquer processo de objetivação, de subjetivação e de comunicação entre os leões.
(3) Estou ciente da dificuldade da noção de convenção. No sentido de arbitrariedade, ela também existe em todo e qualquer signo oral (lembremos Saussure). Com o conceito de convenção, creio que podemos ir além da arbitrariedade: enquanto que com palavras podemos negociar sentidos, as formas canônicas de desenho das letras, ainda que muitos desenhos para uma mesma letra, não são negociáveis entre os interlocutores, exceto quando estão construindo um alfabeto próprio, ao estilo de um código: mas este já não é linguagem escrita no sentido comum que lhe damos, para tornar-se um modo secreto de comunhão de alguns e exclusão de todos os demais.
Referências bibliográficas
Benites, Maria, Bernard Fichtner e J. W. Geraldi. Transgressões convergentes. Campinas: Mercado de Letras, 2005. (no prelo)
Brecht, Bertolt. Poemas e canções. Seleção e tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1966.
Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. As artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
Geraldi, J. W. “A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética”. In. Freitas, Maira Teresa e outras (org) Ciências Humanas e pesquisa – Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.
Kadaré, Ismail. El nicho de la vergüenza. Madri: Alianza Editorial, 2001.
Machado, Rosa Helena Blanco. Vozes e silêncios de meninos de rua – O que os meninos de rua pensam sobre as nossas instituições. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Osakabe, Haquira. “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita” in. Regina Zilberman (org). Leitura em crise na escola – As alternativas do professor. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1982.
Oliveira, José Antônio. Trabalho pedagógico e formação continuada: trajeto de constituição do sujeito professor nas tensões de experiências (re)visitadas. Dissertação de mestrado, Campinas: FE/Unicamp: 2005 (versão provisória, em elaboração).
Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Sampaio, Carmen D. S. Sanches. Aprendi a ler (…) quando eu misturei todas aquelas letras ali. Tese de doutoramento, Campinas: FE/Unicamp, 2003.
Vigotsky, Lev. Teoria de las emociones. Estúdio histórico-psicológico. Madri: Ediciones Akal, 2004.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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