Ainda sobre a Base Nacional Comum Curricular

Pelo fato de minha formação acadêmica ser na área de Letras – Linguística, sempre achei que tenho uma insuficiência teórica para discutir questões mais específicas da Educação. Mesmo assim, como estudante-professora e, posteriormente, como professora em Curso de Licenciatura, venho lendo, discutindo e escrevendo sobre o ensino de Língua Portuguesa em documentos como Currículo Pleno, Parâmetros Curriculares Nacionais e, agora, BNCC. Em função disso, tenho procurado aprofundar um pouco mais sobre currículo a partir da perspectiva das produções do campo da História da Educação.  

Após um levantamento bibliográfico inicial, constatei que as primeiras preocupações com o currículo surgiram nos anos 1920, e desde então até a década de 1980, o campo foi marcado por discussões em função de acordos entre os governos brasileiro e norte-americano dentro de programas de apoio à América Latina. Lopes e Macedo (2005) afirmam que apenas na década de 1980, com o início da redemocratização do Brasil, o referencial funcionalista norte-americano foi abalado e outras vertentes ganharam força no pensamento curricular. Em função disso, os estudos em currículo, no início dos anos 1990, assumiram um enfoque nitidamente sociológico, contrapondo-se ao pensamento psicológico até então dominante, procurando compreender o currículo como espaço de relações de poder.

Nesse período, podemos situar as transformações que culminaram com a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e Médio, que ainda vigoram até que seja homologada a Base Nacional Comum Curricular.

É claro que muita coisa mudou na organização escolar, desde os anos 1980. Muitas delas trouxeram um enriquecimento significativo na compreensão de um sujeito constituído pelas práticas de linguagem e, na própria linguagem como forma de interação com/no mundo. Entretanto, o texto apresentado na chamada “versão final” da BNCC (2017) continua a considerar o Ensino Fundamental como uma etapa de preparação para a vida:

“a escola pode contribuir para o delineamento do projeto de vida dos estudantes, ao estabelecer uma articulação não somente com os anseios desses jovens em relação ao seu futuro como também com a continuidade dos estudos. Esse processo de reflexão sobre o que cada jovem quer ser no futuro, e de planejamento de ações para construir esse futuro, pode representar mais uma possibilidade de desenvolvimento pessoal e social.” (p. 58)

Pergunto, se a linguagem é comunicação e pressupõe interação entre as pessoas que participam do ato comunicativo, o período que uma criança/adolescente passa pelo Ensino Fundamental (a rigor, nove anos) não configura, por si só, uma intensa experiência de reflexão sobre o mundo e sobre si mesma? Até quando encararemos a escola como “uma preparação para a vida” e não a própria vida?

Outro ponto da última versão da BNCC que também desperta meu questionamento é a mudança efetuada nos eixos organizadores do ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental. Na versão de 2015, os eixos listados eram:

– Apropriação do sistema de escrita alfabético/ortográfico e de tecnologias da escrita;

– oralidade;

– leitura;

– escrita e

– análise linguística.

Mas, tais eixos deram lugar aos seguintes:

– Oralidade;

– leitura;

– escrita;

– conhecimentos linguísticos e gramaticais;

– educação literária.

Quero, por agora, destacar apenas uma questão deste imbróglio: o texto da Base deixa explícita uma determinada concepção de linguagem e, consequentemente, de língua e de práticas de linguagem; no entanto, consegue criar um lugar linguístico e gramatical no ensino da Língua Portuguesa cuja explicação merece ser lida nas páginas 64 e 65 do documento e apreciada nos quadros em que são listados os Objetos de Conhecimento.

Pergunto, novamente. Como os conhecimentos gramaticais, nos moldes do que se faz no ensino de língua/gramática à revelia do que já estava preconizado nos PCN, podem nortear o eixo de ensino? Para ser coerente com os princípios teóricos da área de Linguagens e do componente Língua Portuguesa, será necessário colocá-los em função das práticas efetivas de linguagem, isto é, nos gêneros. E, sendo assim, é pertinente incluir tópicos gramaticais em “Objetos de Conhecimento”, na mesma medida em que se incluem textos publicitários e intertextualidade?

Na realidade, minhas perguntas são apenas um exercício pessoal para pensar a ideia de currículo como espaço de relações de poder!

 

LOPES, Alice Casimiro e MACEDO, Elizabeth (org). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2005.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.