Desde que a menina se foi eu sinto as olheiras cavando fundo sob meus olhos. Noites e nublados intermináveis, e faz calor em mim, embora meu coração com tudo torna-se frio. Eu não queria sentir, queria meditar e pensar que não foi comigo, que nunca será, mas em mim tenho anjos ou demônios que me fazem pensar…
Vejo a foto uma vez e tantas ainda, a dor cortante que as pessoas querem não sentir, mas sinto. Talvez seja o sorriso que é o de minha filha, os olhos brilhantes, a alegria. A família poderia ser a minha, e ainda que seja filha de outros, fosse filha ou filho de outros a dor que me corta poderia me alcançar com as tantas filhas que as salas de aula me deram, eu estaria, como estou: devastada.
É uma menina, e se fosse um menino – já foram tantos nesse ano – indiferentemente eu estaria assim sem chão.
A poesia de Drummond é um grito:
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Um deserto vai alcançando, tanta dor faz uma imensidão, e vejo meus filhos com o alvo no peito aberto, querendo dançar, jogar bola, sonhar, andar de bicicleta. Ser criança dessas que se alegram com coisas simples, que acreditam no futuro, esse mesmo que está sendo rasgado, tomado e aviltado.
Não tenho palavras, só lamento, e lágrimas. Tiraram Ágata, que tinha nome de pedra preciosa, algumas pessoas dizem que tal cristal da família dos silicatos tem poder de harmonizar e curar, eu não sei, queria a menina viva, nessa vida estranha, cheia de coisas ruins.
Não queria acidentes, exceções recorrentes e comuns. Não queria tiro matando crianças, nem famílias sentido tanta dor. Não ter a certeza que muitos ainda estão na mira, e terão suas preciosidades negadas.
Uma pedra preciosa demais, uma vida preciosa demais, uma história pelo avesso, a gente chora e se deixa alcançar pelo tiro, esperando o pior quando era preciso cuidar e guardar.
– Deus, quem puxou esse gatilho? E antes ainda quem alimentou tanto ódio de um povo negro e pobre? A polícia não é o policial, mas o sistema! Quem tirou de nós a humanidade? Que Deus aceita que uma parte de nós não merece estar vivo porque não tem dinheiro, não tem a cor certa? Porque Deus você permite que estejamos no mundo para ser chicoteados? Para ser humilhados? Mortos? Assassinados? É por isso que estamos morrendo? Não acredito mais que você está nos liberando desse caos para um lugar melhor…
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Não tem descanso em paz.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Emocionante! O escrito é lindo. A tragédia – a Agatha morta – é “dor constante”. Precisamos usar as palavras como armas contra as tragédias cometidas pelos animais humanos contra crianças, pobres…