Quando o STF afastou do mandato o ex-senador Delcídio Amaral, criou a figura jurídica do flagrante continuado, já que a gravação do crime cometido de obstrução da justiça continuava existindo. O Senado não reagiu: aceitou o afastamento (merecido) e depois cassou o mandato de Delcídio Amaral, ex-PSDB e então já ex-PT. Quando do afastamento, era do PT, logo, era “natural” que fosse afastado. Não houve conflito algum.
Quando ministro do STF afastou da presidência do Senado o senador Renan Calheiros, a sete dias do término do mandato na presidência, houve reação. O Senado não acatou a decisão do ministro. Depois, o assunto desapareceu da pauta, porque o jogo político no Brasil do golpe se faz com a rapidez da internet e do tempo real. Você piscou, surgiu outro quadro político.
Aécio Neves foi afastado pelo ministro Edson Fachin, decisão que outro ministro, Marco Aurélio de Melo, revogou porque outra era sua interpretação da lei. Claro que a gravação de Joesley Batista continua existindo e mostrando que o senador mineiro não é flor que se cheire. Mas nesta gravação, em se tratando de senador não petista, não existe a figura jurídica do “flagrante continuado”. As coisas se aplicam e não se aplicam segundo injunções que nada tem a ver com a lei.
Acontece que houve, depois deste afastamento, pedido de cassação do mandato do Senador Aécio Neves, agora novamente afastado. Mas o pedido foi arquivado pelo presidente da Comissão de Ética, alegando que haviam feito uma cilada ao colega. Na verdade, sendo o presidente da Comissão do PMDB, e como estava em negociações salvar o usurpador Michel Temer, o arquivamento foi por conta das negociatas para obter o apoio do PSDB na Câmara dos Deputados. E teve de muitos dos deputados deste inefável partido da “base aliada”. Michel Temer foi salvo também pelo PSDB. Que não venham os senhores senadores agora chorar lágrimas de crocodilo: a comissão aprovou o arquivamento por 11 a 4, uma vitória considerável de Aécio Neves nesta instância do Senado.
Neste novo afastamento, senadores vão à tribuna, incluindo o petista Jorge Vianna, todos a defender o Senado como poder independente e erguendo dedos acusadores ao STF por ingerência no poder legislativo. Podem até ter razão. Não havendo “flagrante continuado” mesmo havendo gravação (que valeu para um cretino senador petista mas não pode valer para um senador do PSDB), o afastamento é tido por ilegal.
Pessoalmente, não creio na legalidade de muitas decisões do STF que passam a valer como lei, já que seu corpo de ministro se dedica hoje muito mais à política do que às letras jurídicas. Gilmar e seu acólito Toffoli; Fux e Barroso, Alexandre Morais, todos estão na imprensa fazendo política, mesmo que não partidária. Partidária mesmo, Gilmar Mentes confirma que não minto: ele faz.
Ora, persistindo a notícia-crime do senador Aécio. Escutadas as gravações por todo mundo. Vistas as imagens das malas de dinheiro. Recuperado o dinheiro. Tudo isso não levou o plenário do Senado a exigir que a Comissão de Ética revisse sua decisão. Ficou tudo arquivado, e Aécio Neves limpo e fagueiro pelos corredores do Senado, afastando-se e aproximando-se do pretenso candidato à presidência da república, o populista autoritário João Dória, nossa versão de Donald Trump. E aí a primeira turma do STF revogou a decisão do ministro Marco Aurélio de Melo: Aécio foi novamente afastado… Será cassado? Alguém acredita que neste momento de necessários votos do PSDB na Câmara dos Deputados, o governo não jogará com o Senado para garantir apoio do partido dono do projeto econômico que Michel Temer está pondo em prática através de Henrique Meirelles?
Nós, cá na planície ou mais precisamente no Brasil real, cada vez mais acreditamos menos no Judiciário. E os membros do Legislativo estão com o cartaz abaixo do cu do cachorro. Dadas estas instituições e seus funcionamentos, nós que vamos levando a vida sem as mordomias de juízes nem de senadores e deputados, já sabemos: tudo acabará em pizza, em arquivamentos. A única coisa que jamais será arquivada é a audácia de um metalúrgico ter sido presidente com mais popularidade do que os doutores e mesmo do que o estadista de Higienópolis, o nosso príncipe dos sociólogos que realmente se acreditou príncipe de alguma coisa.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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