A vontade legisferante do judiciário

Até o jornal O Estado de S. Paulo, conservador e ponta de lança da preparação do golpe que derrubou Dilma Roussef e depois um dos áulicos do governo usurpador que se seguiu, começou agora a estrilar com o regime jurídico-policial-midiático que se implanta celeremente entre nós.

Acontece que num regime em que o judiciário exerce a função legiferante na forma da interpretação das leis existentes segundo interesses de momento, criando com isso nova jurisprudência, e em que a decisão monocrática de um ministro do STF é capaz de afastar o presidente do Congresso Nacional (olha que não tenho nenhuma simpatia por Renan Calheiros) ou em que também monocraticamente um ministro pode desfazer um ato que é prerrogativa exclusiva da Presidência da República, segundo seus apoios ou não a quem está à frente do Executivo, como foi o caso da nomeação para o ministério de Lula e de Moreira Franco, cujas decisões foram diametralmente opostas e o ministro que negou posse a Lula agora venha descaradamente dizer que a nova decisão, de outro ministro, que permite a posse de Moreira Franco nas mesmas circunstâncias deve estar certa – foi o que disse o militante do PSDB Gilmar Mentes a propósito da decisão favorável à posse de Moreira Franco – num tal regime até o liberalismo conservador do jornal O Estado de S. Paulo foi arranhado.

Agora temos mais um lance pela frente desta vontade de produzir lei e ser dono de sua interpretação: o ministro Fux quer interpretar que projetos de lei de iniciativa popular não podem sofrer emendas. Devem ser aceitos no todo ou nem precisam ser aceitos pelo Congresso? Tornam-se leis imediatamente ou precisam de aprovação dos chamados representantes do povo que se submetem ao escrutínio do voto?  

Bom, o que prescreve a lei 9.709, de 18.11.1998, regulamentando a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal:

 

“Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

§ 1o O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto.

§ 2o O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.”

Tudo indica que se trata de um PROJETO DE LEI, e não de uma lei o que a iniciativa popular leva ao Congresso Nacional. A lei recusa a rejeição por vício de forma. Mas não proíbe emendas que possam ser apresentadas. Aliás, até as Medidas Provisórias recebem emendas – são famosas as emendas de Eduardo Cunha fazendo passar na aprovação de Medidas Provisórias assunto completamente distinto daquele que as mesmas tratavam, atendendo a interesses escusos – por que um projeto de lei não pode receber emendas?

Ora, a aparente liberalidade do ministro Fux, dando maior poder ao povo, neste momento vem a calhar em favor do regime jurídico-policial que quer nos governar a torto e a direito. Trata-se de não permitir que os deputados emendem as medidas de combate à corrupção, medidas escritas no meio jurídico de Curitiba, prevendo a ilegalidade na obtenção de provas segundo decisão arbitrária de delegados e juízes e autorizando até mesmo a tortura para obter de boa fé uma prova – como vem fazendo o juiz Sérgio Moro com as prisões preventivas de tempo indeterminado. Ora, uma emenda supressiva é sempre uma emenda (a não ser que haja juízo contrário de qualquer ministro do STF que poderá legislar afirmando que “emenda supressiva” não é emenda).

O nó da questão desta vontade de decisão do ministro Fux são as emendas incluídas no projeto de lei de iniciativa popular, mas sempre PROJETO, contra o abuso de autoridade. Juízes – que segundo o dito popular se dividem em duas classes, aqueles que pensam que são deuses e aqueles que sabem que são deuses – não admitem submissão a qualquer lei que limite seus imensos poderes.

Abuso de autoridade é uma forma de corrupção, praticada por autoridades, incluindo autoridades jurídicas. Todos queremos o combate à corrupção, mas isto não pode abrir as porteiras para, em seu nome, haver abuso de autoridade, pois a corrupção resulta de abuso de autoridade.

Alegam os juízes contra uma lei que iniba o abuso de autoridade que as instâncias superiores podem corrigir eventuais – e ponha eventualidade no caso – enganos (nunca erros) de interpretação. Logo, não precisam de lei contra abuso de autoridade… como se o tribunal superior não pudesse praticar abuso de autoridade (e já o praticou ao decidir excepcionalidades ao cumprimento estrito da lei quando se trata de decisão do juiz a que temem todos os tribunais que lhe são superiores, com medo das repercussões midiáticas).

Num regime em que julgamentos são movidos e promovidos pela mídia segundo interesses nem sempre confessáveis; num regime em que o parlamento não tem direitos de emendar qualquer projeto de lei de iniciativa popular (hoje mais ou menos 1,4 milhão de assinaturas valem mais do que todo o colégio eleitoral do país); num regime em que “deuses” jurídicos passam a ter um poder absoluto interpretando as leis segundo os ventos, em breve haverá uma interpretação de que o Congresso não é necessário e de que não cabe à Presidência da República promulgar leis nem nomear (dependendo do caso) qualquer ministro de que juízes não gostam por razões ideológicas.

Defender a função legiferante para o Congresso Nacional não significa que eu aplauda a composição do nosso atual Parlamento. JAMAIS FOI TÃO RUIM. Mas sua composição foi definida por voto popular e há que respeitar o voto dado.

O que nos falta mesmo é educação política no país. Mas esta deverá desaparecer definitivamente do nosso chão com os programas da Escola Sem Partido e com o desaparecimento das grades curriculares da Filosofia, da História, da Sociologia, das Artes. Contra estas barbaridades, o jornalão não publica editoriais…

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.