A visitação dos mortos

Há quem diga que aquele que comete uma injustiça contra alguém, mesmo que aparente tranquilidade, vive com seu fantasma. Há até a expressão “estar com o morto debaixo da cama”. O ato cruel e injusto destrói tanto a vítima quanto o desumano e criminoso agente. É o que dizem, é o que dizem…

E a voz do povo parece ter razão. Há pessoas que mesmo tendo chegado aos mais altos cargos do poder que vivem sob a angústia do defunto que o acusa em silêncio. O resultado desta acusação silenciosa é que o criminoso enverada cada vez mais pelos caminhos da prática criminosa de injuriar e vilipendiar de forma desonesta e ilegal aquele a que, por circunstâncias momentâneas, está sob seu poder, pequeno poder que não perdurará e que será julgado pela história.

O “diabo está no meio do redemoinho”. E quem entrou no redemoinho da prática desumana e ilegal se faz semelhante ao rei do redemoinho… e se pensa rei com brilhos platinados.

Assim, estas vítimas, que o povo chama de mortos, mas que estão vivas, assombram aqueles que sabem que lhes devem muito. Mas há mortos reais, efetivos. E estes não retornarão e não haverá tempo para um reencontro pacificador.

A visitação destes mortos irredutíveis, já de dentro da cova, tornam-se fantasmas inafastáveis, irredutíveis, constantes, martelando as consciências daqueles que sequer permitiram um enterro entre entes queridos.

A proibição do luto e do velório há de emergir como culpa, como chaga, como ferida que os mortos visitarão. Cutucarão a ferida que não adormecerá na inconsciência dos desumanos.

E os mortos humanos não são pastos de corvos togados ou extogados, quando vão à sepultura. E assim a imagem completa permanecerá para assuntar e assustar o dia-a-dia dos que não deixaram que fosse velado.

Para estes, a visitação dos mortos é esta visão sorrateira, constante, futricando lá no fundo a maldade que lhes é natural e que civilização alguma consegue lhes extrair, sejam estes desumanos elegantes mulheres elevadas a julgadoras, sejam triunfantes homens com caneta na mão: seu triunfo será sempre o triunfo do mal.

Ganham, mas perdem sempre e cada vez mais. Mesmo aqueles que, para não ficarem mal na fita, autorizam que o morto visite o vivo, já que proíbem que o vivo vele o morto, mas autorizam no dia e no momento em que o morto segue em procissão para a cova. Nem o vivo visitou o morto, nem o morto visitou o vivo.

Mas ambos estão em visitação constantes às consciências pesadas: esta a visitação dos “mortos” que merecem. E que na visitação, os visitantes aferrolhem, aferrolhem até que a culpa os leve aos quintos de onde saíram.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.