A visitação do amor

Se há uma palavra que se pode aplicar a este livro de Jorge Miguel Marinho, é a palavra delicadeza. Delicadeza no estilo; delicadeza no tratamento do tema do amor, mas também delicadeza na alegoria que conduz toda a trama que se desenrola no Pequeno Reino desta “história mágica” que ouvidos atentos descobrirão ser também a história da luta contínua dos homens e mulheres na construção da felicidade que jamais se completa se não for coletiva.

O enredo é atravessado por remessas aos contos de fada, às personagens femininas das fadas, das bruxas, das princesas. Rapunzel, Cinderela, Branca de Neve (pela referência aos anões): todas visitam a história que narra a visitação do amor para Antônio e Teresa, personagens  centrais da visitação, mas sem existência efetiva não fosse a presença de dois duentes: o ana Nícolas e Fada. Desde a abertura esta delicadeza já se mostra:

Como é que eu posso contar a história de Antônio? Afinal de contas ela já está escrita na memória das pessoas, com a caligrafia do silêncio e é tão fácil acreditar como não acreditar. Preciso de palavras quase silenciosas, notas suspensas na página que criem uma melodia arpejada e todos sejam convidados a escutar. Talvez se eu conseguisse juntar os fatos como se juntam os sons e as pausas numa pauta musical, aí sim, eu estaria realmente escrevendo a história de Antônio.

Nascido de pais que já desistiam de ter filhos, Antônio vem ao mundo chorando lágrimas coloridas (uma metáfora para dizer que o mundo mais complexo do que o preto no branco) e sobrecarregado por uma alergia ao perfume das flores. E para atar enredos, seus pais tinham precisamente uma floricultura, que seguindo os novos gostos do Pequeno Reino, foi se transformando num lugar de venda de flores artificiais (aqui, uma metonímia para dizer da desvida que se implantou no Pequeno Reino).

No batizado, a bruxa-fada, sem ser convidada, aparece e lhe fala ao ouvido: desde então ele  escuta demais, como diz a ama Dor (este nome é escolhido a dedo, pois a vida levada a cozinhar, a limpar e a atender uma família sem ter família própria é dor sem fim, mas paradoxalmente é de um amor sem fim, daí jogo linguístico ama+Dor).

Antônio cresce sonolento, num mundo em que a música (alegria) vai desaparecendo até que se torna censurada por lei não se sabe de quem, mas por lei. Abolida toda e qualquer possibilidade de música, o anão Nícolas (outra personagem mágica dos contos de fada e dos picadeiros), violinista, perde seu modo e razão de vida, sem possibilidade de fazer soar sua sinfonia “A cantora que tricotava a voz”.

Na adolescência, Antônio conhece as exigências da sexualidade. Não era bonito e gracioso como os príncipes que viviam em reinados flutuantes nos tempos imemoriais […] provocava nas meninas do Pequeno Reino algumas exclamações […] ele queria chegar até elas e esperava intuitivamente que um dia a sua audição anunciasse a melodia dos corpos que estreitam as mais lindas ligações.

E será com Mirabel que seu encontro se dará e do qual saem ambos felizes, ele porque era bom ser homem e ela porque gostou demais de ser mulher. Mas ainda não era a visitação do amor.

Enquanto isso, no Pequeno Reino se vai impondo outro regime: emerge o medo da música (medo da felicidade? do socialismo? ambas leituras são permitidas aqui). Era preciso silenciar a música. A União Masculina e Feminina pela Moral e os Bons Costumes se encarregou de trazer casos vergonhosos de pessoas que perdiam o juízo por causa da música. E toda a população passou a acreditar nesta narrativa que, hoje, diríamos que se tornou “hegemônica” naquele reino (como se tornou hegemônica no Brasil da ditadura passada e vem se tornando hegemônica a ditadura do presente). Com a censura à música, muitas pessoas passaram a ter problemas: muitos acidentes, muitas mortes (qualquer semelhança com a realidade política do Brasil da ditadura militar não é coincidência, é objetivo). O silêncio se impôs.

O rádio, a televisão e um auto-falante instalado no centro da praça faziam chamadas de quinze em quinze minutos avisando a população. A partir daquele dia era expressamente proibido tocar ou ouvir o menos movimento melódico porque entre os diversos malefícios da música o pior era deixar as pessoas soltas no ar.

As notícias sobre os perigos da música passaram rapidamente de pessoa para pessoas e os casos contados eram tão horríveis que muita gente apertou os lábios e chegou a tapar os ouvidos, com medo de ser atingido por uma nota e voar.

Antônio que tinha o dom da escuta de todos os sons tornou-se sonolento e infeliz. Quando os últimos pássaros abandonaram a cidade, uma profunda sonolência tomou conta de toda a população.

Nícolas, o anão violinista foi diminuindo de tamanho, mas encontrou o caminho subterrâneo (certamente chamado pela União Cívica de “caminhos da subversão”): cavava um buraco cada vez mais fundo.

Nestas alturas da narrativa, cai do céu que por lá limpava estrelas: Tereza. Toda mulher por quem nos apaixonamos “cai do céu”, e cai pertinho da gente quando a gente a encontra! Assim foi com Antônio: Tereza cai em seu quarto (ou seja, invade-lhe a vida como invade a vida qualquer visitação do amor).

Tereza e Antônio se conhecem, se tornam amigos e se tornam namorados e se tornam amantes. Tereza conhece Nícolas e passa a ajudá-lo, todas as noites, na construção do buraco que se vai tornando corredores subterrâneos (o tão temido mundo “subterrâneo” das ideias). Antônio adere ao trabalho. E depois do trabalho, vão ao lago azul (uma referência ao livro A Lagoa Azul, de H. de Vere Stacpoole?), e eis a delicadeza da visitação do amor:

Numa noite em que Antônio e Tereza escavaram até tarde, os dois saíram da caverna cobertos de barro e resolveram tomar banho num dos lagos ainda azuis. Andaram até o horto padecendo de fome e cansaço, sentindo umas contrações no corpo que doíam um pouco e davam um certo prazer.

Antônio olhou Tereza e avistou um porto iluminado no seu olhar. Tereza pegou as mãos de Antônio e sentiu umas ondas tão quentes que pareceram a circulação sanguínea da paz. Primeiro ela tirou a roupa, depois ele ficou completamente nu. Como a brisa da noite atiçava todos os segredos do corpo, eles correram por entre os galhos até se ferir. As folhas passavam por eles e roçavam a pele, provocavam alguns arranhões. Algumas ficavam grudadas no corpo e depois se soltavam com o vento carregando pequenos sinais de sangue e suor. Pareciam roupas que iam se desprendendo dos corpos como as diversas camadas de uma paixão.

E o buraco foi crescendo, quando atingiu 10 metros, começaram a perfurar o espaço na linha horizontal, formando uma caverna (uma referência à caverna de Platão); e cada vez mais pessoas a eles se juntam. Os exilados do Pequeno Reino retornam e trazem novas forças para a construção labiríntica subterrânea. E tanto cresceu a caverna que começaram a aparecer fendas no asfalto, nas ruas, nos mais inesperados lugares (o sistema começou a ruir?).

Por fim, chega a Fada e ela se tornará a maestra que conduzirá a execução da grande sinfonia da liberdade…

E diferentemente dos contos de fada, Tereza se vai para o céu… e Antônio compreende que o amor e a visitação do amor não significam necessariamente “viveram juntos para sempre”: o mundo está aberto a muitos amores e muitas paixões.

O livro faz parte da coleção “Contexto Jovem”, e nada melhor do que a delicadeza para dar conta deste tempo da vida jovem em que o amor nos visita e permanece para sempre em nossos corpos e em nossas memórias. Ao mesmo tempo, esta novela não esquece que a visitação do amor se dá num contexto mais amplo em que se vive coletivamente. Daí a metáfora contando a história do país que, depois da luta contra a ditadura, se abria para a liberdade e a paixão. Quando este livro foi escrito, estávamos começando a redemocratização!

Referência: Jorge Miguel Marinho. A visitação do amor. Uma história mágica em Dó Maior. São Paulo : Contexto, 1987.

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.