A visita cruel do tempo

Nossa! Quando li na capa do livro o marketing “O melhor livro que você terá nas mãos” (Los Angeles Times), achei um exagero. E é! Mas que o livro é bom, não resta dúvida. Um romance para ler atento, desfrutar e, ao mesmo tempo, aprender um pouco sobre a vida: seus personagens ensinam o mal viver, mas apontam para saídas mínimas disponíveis dentro do stablishment.

Jennifer Egan usou de duas técnicas muito interessantes. Do ponto de vista narrativo, a técnica de mudança de narrador acontece sem que a gente espere. Há capítulos – a maioria deles – em que um narrador em 3ª. pessoa, onisciente e condutor do fio narrativo vai contando a história; mas há capítulos em que a narrativa vai para a primeira pessoa, narra um dos personagens! Estas mudanças repentinas de narradores faz o leitor dar um breque na leitura, recuperar o lido para avançar. Nem sempre o leitor identifica, de imediato, o novo narrador. Depois de algumas destas passagens de voz, percebe-se que antecipadamente o novo narrador apareceu de refilão no capítulo anterior. Há um capítulo, na forma de esquemas, que é até assinado por uma das personagens da trama. Escrita em gráficos, em flechas, em palavras-chave de um relacionamento entre pai e filha (Alison Blake) e desta com o irmão Lincoln. São relações familiares esquematizadas, com retomadas de falas do cotidiano.

Uma segunda técnica envolve o tempo, as rupturas com a cronologia. Se narrativa se inicia num tempo presente, faz retrocesso ao passado e aponta, em momentos de presente, o futuro da própria personagem. São momentos que levam o leitor a saber o que acontecerá com “alguém”, porque as informações lhe são antecipadas pelo narrador, como nos exemplos:

Charlie não conhece a si mesma. Dali a quatro anos, aos 18, vai entrar para um culto do outo lado da fronteira mexicana cujo carismático líder defende uma dieta de ovos crus, quase morrerá de intoxicação por salmonela antes de Lou a resgatar. O vício em cocaína exigirá uma reconstrução parcial de seu nariz, modificando sua aparência, e uma série de homens fracos e dominadores a deixará sozinha aos quase 30 anos tentando negociar a paz entre Rolph e Lou, que terão parado de se falar.

Lou e Mindy dançam colados, com o corpo inteiro se tocando, mas Mindy está pensando em Albert como fará periodicamente depois de se casar com Lou e ter duas meninas em rápida sucessão, os filhos número cinco e seis dele, como quem corre na direção contrária do inevitável declínio da atenção do marido. No papel, ele não terá um tostão, e Mindy acabará trabalhando como agente de viagem para sustentar as filhas.

O enredo é extremamente complexo. Como os tempos são entrecortados, somente no final da leitura pode o leitor tentar organizar alguma cronologia. O pano de fundo é o rock, a droga leve da época e as bandas de rock. As personagens-chaves são dois produtores de discos: Lou e Bennie. O segundo foi uma espécie de sucessor do primeiro. Ambos descobriram bandas de rock que levaram ao sucesso. E os componentes das bancas (particularmente da Conduits) se tornarão também personagens, particularmente o baterista desta banca, Alex. Consideremos alguns episódios:

  1. Sasha é secretária de Bennie. E com uma sessão de sua terapia que a narrativa se inicia. Ela é cleptomania. Em capítulos posteriores ela aparecerá num episódio em que num restaurante rouba a carteira de uma frequentadora e é por esta descoberta, mas tudo fica em segredo entre as duas mulheres. Alex (o baterista ainda promessa) acompanha Sasha até seu apartamento, e lá descobre as muitas coisas que ela surrupiou e que deixa expostas. Depois deste encontro furtivo, o casal jamais reaparecerá. Mas filhos de Sasha aparecerão no final do romance.
  2. Scotty é amigo de juventude de Bennie, também da banda. Será o exemplo do fracasso. Vive de um emprego e de catar lixo. Numa das revistas que lê numa banca, descobre que seu amigo Bennie é um bem sucedido empresário da música. Depois de uma pescaria em que fisga um robalo, resolve visitar o antigo amigo levando-lhe o peixe de presente. Este episódio é talvez o episódio mais cômico de todas as narrativas entremeadas pelas diferentes vozes de narradores. Scotty reaparecerá no final do romance.
  3. Bem sucedido, e saído de um casamento, Lou viaja para um safári na África, acompanhado por sua namorada Mindy, pelos dois filhos do primeiro casamento, Rolph e Cristie, e por duas assessoras da empresa, Jocelyn e Rhea. Estas personagens desaparecerão no romance. São deste safári os trechos citados acima.
  4. Como o advento da internet, em que qualquer um pirateia qualquer música e mesmo crianças de 3 anos são capazes de usar aplicativos para escutarem o que quiserem, a indústria que deu lucros e sucesso primeiro a Lou, depois a Bennie. O primeiro não conheceu este tipo de fracasso, mas o segundo cai para ficar sem um tostão. Esquecido do meio artístico-musical, ao final do romance ele convoca Alex (o antigo membro da banda mais famosa que ele lançou) para ajuda-lo a transformar Scotty num sucesso.
  5. A construção deste sucesso é espetacular: Alex se encarrega de arrumar 50 ‘papagaios’, isto é, aqueles que escrevem em sites, blogs, que estão nas redes sociais, para falarem bem de Scotty e de suas músicas e do show ao ar livre que este daria. Alex seleciona os papagaios a partir de três critérios que entrecruza: necessidade (de dinheiro), o respeito que tinham nas redes sociais (alcance) e quão passíveis eram de se vender essa influência (corruptibilidade). Postas em circulação os elogios, a fama de Scotty Hausmann está feita e o final do romance é a apoteose do show de um artista que ganha nome graças às mentiras que circularam pelas redes sociais, numa crítica em dois níveis: primeiro à música que deve ser tão suficientemente infantil que agrade a  bebês e a adultos, e em segundo lugar à pós-verdade que comanda as notícias que, mesmo falsas, ganham ares de verdade.

O diálogo entre Alex e a jovem Lulu (filha de uma personagem do início da narrativa e que fora assessora de imprensa de sucesso) é extremamente interessante, porque confronta dois mundos diferentes, aquele de um homem vindo dos tempos do rock e da verdade com a jovem dos tempos das ambivalências.

Vale a pena conferir alguns dos ensinamentos de Lulu para que Alex não se sinta culpado por estar construindo do nada um mito:

… O Bennie falou que a gente vai formar um time cego, e que você vai ser o capitão anônimo.

Ele usou esses termos?

Lulu riu.

– Não, esses são termos de marketing. Aprendi na faculdade.

– Na verdade, são expressões esportivas. Elas vêm… do esporte – disse Alex.[…]

– As metáforas esportivas ainda funcionam – ponderou Lulu.

– Então isso é uma coisa conhecida? – perguntou ele. – Time cego? – Alex tinha pensado que essa fosse uma ideia sua: minimizar a vergonha e a culpa de montar um grupo de papagaios reunindo um time que não sabe que é um time, nem que tem um capitão. […]

– Ah, claro – respondeu Lulu. – Os TCs ou times cegos funcionam especialmente bem com gente mais velha. Quer ndizer… – Ela sorriu – Com mais de 30.

– E por quê?

– Os mais velhos resistem mais a … – Ela parecia hesitar.

– Serem comprados?

Lulu sorriu.

– Está vendo, é isso que nós chamamos de metáfora dissimulada – disse ela. As MDs parecem descrições, mas na verdade são juízos de valor. Quer dizer, alguém que vende laranjas por acaso está sendo comprado? A pessoa que conserta eletrodomésticos por acaso está se vendendo?

-Não, porque elas fazem isso às claras – disse Alex, consciente de que estava sendo condescendente. – É tudo abertamente.

– Essas metáforas, “às claras” e “abertamente” fazem parte de um sistema que a gente chama de purismo atávico, entende?

– Você acha que não tem nada de inerentemente errado no fato de se acreditar em alguma coisa, ou de dizer que acredita, em troca de dinheiro?

– “Inerentemente errado” – repetiu ela [Lulu] – Meu Deus, como é ótimo exemplo de moralidade calcificada! Preciso me lembrar disso para contar ao meu professor de ética moderna antiga, o Sr. Bastie, ele coleciona estes exemplos. Olha aqui – disse ela, ao endireitar as costas e piscar os olhos cinzentos um tanto sérios (apesar da expressão amistosa do rosto) para Alex. – Se eu acredito, acredito e pronto. Quem é você para julgar os meus motivos?

AE: ambivalência ética frente a uma ação de marketing forte. […] Acho que a AE é uma espécie de vacina, uma forma de se redimir por antecedência de algo que você na realidade quer fazer.

 

Trata-se da nova ética dos tempos virtuais, em que tudo se reduz à linguagem. Não por acaso este último capítulo tem por título “Linguagem pura”. Com isto tudo dá para recuperar o que é “a visita cruel do tempo”: de um lado, o tempo que envelhece também descarta as pessoas e seus sucessos; de outro lado, o tempo novo que aparece tem a crueldade de uma ambiguidade ética que perpassa a sociedade como um todo, indo bem além das redes sociais e seu tempo virtual. Cruéis, ambos os tempos. Como se vê, ao livro não falta mordacidade!

Só por estas pequenas indicações, o leitor poderá antecipar o prazer da leitura deste romance que mereceu o prêmio Pulitzer de Ficção em 2011.   

Referência: Egan, Jennifer. A visita cruel do tempo. Tradução de Fernando Abreu. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2011.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.