O processo educativo é permeado por diferentes interesses e intimamente ligado às finalidades institucionais, e a elaboração de um currículo não pode ser vista apenas como um conjunto de conhecimentos. Ela é parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção e da visão que um grupo tenha sobre o que seja conhecimento legítimo.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz à tona, no campo da educação, práticas nada novas: por um lado, solidificar a ideia de que a existência de parâmetros comuns nos diferentes modos de ensino e nas múltiplas realidades escolares possa garantir a qualidade de ensino ou a construção de uma sociedade justa; por outro lado, minimizar a compreensão de que os currículos são produzidos por diferentes articulações que englobam demandas de comunidades disciplinares, de equipes técnicas de governo, do empresariado, de partidos políticos, de associações, etc. etc.. Há ainda a estratégia de criação de um suposto consenso, quando o MEC abre à consulta o documento preliminar da BNCC. Esse ato parece querer legitimar e encerrar o debate em torno da política de currículo. Aliás, política remete muito mais a produção de sentidos e de interpretação do que a definição de universalismos e de aprendizagens essenciais, conjuntas e progressivas, que todos os alunos devem desenvolver.
Não se produz debates onde se abre espaço apenas para comentários ou complementos ao que está sendo proposto. É preciso propor outras perguntas, outros processos, outras formas de pensar a política de currículo.
A que serve a uniformização curricular? Então, o conhecimento é um objeto que pode ser transmitido e distribuído indiferentemente? O que fazer de sujeitos diferentes, em contextos diferentes, (re)interpretando e (re)significando os saberes de formas diferentes, em função de existências diferentes?
A que serve a testagem em larga escala como avaliação do que se aprende? Então, uma vez feita a seleção dos conhecimentos a serem ensinados, é possível verificar, em uma única avaliação, o que efetivamente foi ensinado e aprendido? Tais processos de avaliação não estariam transformando o direito de aprender em dever de produzir resultados? O trabalho empreendido para criação de um currículo comum e consumível não poderia ser revertido para a criação de propostas curriculares locais que evidenciassem a diversidade e a produção na diferença?
Se há problemas na educação brasileira, não é porque as professoras e professores careçam de um manual detalhado do que ensinar. Se “os alunos de hoje não aprendem o que precisam a cada ano”, não se pode atribuir levianamente ao discurso do fracasso que leva à naturalização da constante falta e da impotência. Os profissionais da educação são responsabilizados mesmo quando as dificuldades de realização das atividades escolares passam por questões fora do âmbito pedagógico, por violências impetradas em diferentes esferas, e por falta de condições de vida da população de uma maneira geral.
Na altura das discussões, questionar a Base Nacional Curricular Comum pode soar em vão, já que sua homologação parece inevitável. Mas, insisto em dizer que garantir uma educação democrática não significa uniformizar o que todos devem aprender, e que as singularidades e imprevisibilidades, quando articuladas, são capazes de produzir conhecimento na diferença.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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