O suíço do cantão de Berna, falante de alemão, se notabilizou como dramaturgo, mas também escreveu romances ou novelas, contos, poemas, roteiros de cinema… Seu trabalho de modo geral é sarcástico, já que para ele “o mundo é alguma coisa monstruosa, um enigma de calamidade que tem de ser aceito, mas diante do qual não deve haver conformismo”.
Neste romance o tema é a caça aos nazistas, a calamidade que se abalou sobre a Alemanha e toda a Europa. O ambiente do romance é o trajeto de Berna e Zurique, na verdade dois hospitais e o ano é 1948, precisamente no tempo em que ainda se processavam os julgamentos dos crimes de guerra e a caça aos nazistas que praticaram infâmias nos campos de concentração permanecia extremamente ativa.
Nesta história, em Berna, o velho comissário Hans Baerlach sofreu uma intervenção cirúrgica efetuada pelo Dr. Samuel Hungertobel. Recuperando-se no leito do hospital, folheava velhos números da revista Life de 1945, e numa delas encontra uma reportagem, com fotografia, do médico nazistas que realizava cirurgias sem anestesia no campus de Stutthof. Vendo a foto, o Dr. Hungertobel ficou pálido, o que levou o paciente à suspeita de que seu médico conhecia o criminoso ou reconhecera sua fotografia. Está criado o fio condutor da narrativa.
Na verdade, Hungertobel reconheceu na foto o médico Emmenberger. O detalhe é uma cicatriz na sobrancelha direita, resultado de uma cirurgia que fizera o próprio Hungertobel no então seu colega Emmenberger. Neste tempo o médico dirigia uma clínica para ricos na cidade de Zurique, o que lhe proporcionou o apelido de “Tio rico”, pois muitos de seus pacientes antes de morrerem deixavam tudo o que tinham para sua clínica.
Segue-se, na primeira parte da narrativa, uma troca constante de informações – com empréstimo de revistas científicas médicas – entre o médico e o paciente. Emmenberger fizera uma intervenção sem anestesia em um colega quando subiam os Alpes, ainda estudante de medicina. Depois, oficialmente, teria ido para o Chile, donde mandara para publicação diversos artigos científicos para revistas suíças.
Oficialmente quem tinha realizado as cirurgias criminosas em Stutthof teria sido o médico do campo, Dr. Nehle, que teria se suicidado a 10 de agosto de 1945 num hotel de Hamburgo. Na autópsia, todos os detalhes foram confirmados: a cicatriz na sobrancelha e uma marca de queimadura no braço. De modo que não havia dúvidas quanto à identidade do nazista.
No entanto, Baerlach, o comissário que no hospital recebe a informação de seu chefe de que seria aposentado, mantém sua suspeita: afinal, seriam duas pessoas. Emmenberger se fizera passar por Nehle e este, com o nome de Emmenberger, teria vivido no Chile, sempre um álibi difícil de verificar. Ao retornar o verdadeiro Nehle para a Alemanha, depois da guerra, poderia ter sido assassinado por Emmenberger. Esta a suspeita de Baerlach.
Ainda no hospital de Berna o comissário recebe uma estranha visita, que chega ao quarto por subterfúgios, subindo pela parte externa do prédio usando as reentrâncias da construção: Gulliver (uma mais do que óbvia referência a As Viagens de Gulliver, de Swift). Misto de duende e investigador, dedica-se Gulliver à caça de nazistas, viajando incógnito pelo mundo e de uma forma mais ou menos maravilhosa. Gulliver explica a Baerlach quem foi Nehle, que ele próprio se deixou operar sem anestesia porque o médico oferecia a esperança de liberdade, que ele próprio havia fotografado Nehle em ação e que também ele tinha fornecido a foto à reportagem da Life. Gulliver deu certeza de que Nehle havia se suicidado, ele mesmo havia participado da verificação dos detalhes físicos do médico nazista.
Na longa conversa regada a vodca, Gulliver confirma que Nehle tinha sido um torturador, um dos anjos mais malvados e impiedosos daquele paraíso de juízes e carrascos e que ele próprio se deixou operar sem anestesia, porque acontecia que as vítimas de Nehle se ofereciam para a tortura com a esperança de liberdade que ele oferecia:
– A esperança – riu o gigante. Seu peito arfou. – A esperança cristã. – Seus olhos brilharam com uma ferocidade impenetrável, bestial, as cicatrizes de seu rosto elevaram-se perceptivelmente, as mãos jaziam como patas sobre a coberta da cama de Baerlach. A boca rasgada, que insaciável absorvia sempre mais vodca naquele corpo torturado, gemeu num lamento distante: – Fé, esperança e amor, os três, como se diz tão bem no capítulo XIII da epístola aos coríntios. Mas a esperança é a mais tenaz deles, está gravada em mim, o judeu Gulliver, em minha carne, com marcas vermelhas. O amor e a fé iam para o diabo em Stutthof, mas a esperança permanecia, com ela ia-se para o diabo. A esperança, a esperança! Nehle a tinha pronta no bolso e a oferecia a quem quisesse tê-la, e muitos queriam. É inacreditável, comissário, mas centenas deixavam-se operar sem anestesia, depois que, tremendo e com a palidez da morte, tinham visto outros perecerem sobre a mesa de operações, e podiam ainda recusar. Tudo isso pela esperança de obter liberdade, como lhes prometia Nehle. A liberdade! como o homem deve amá-la, a ponto de estar disposto a suportar tudo para recebe-la, tanto que naquela época em Sutthof descia voluntariamente ao inferno mais torturante para abraçar esse miserável fantasma de liberdade que lhe era oferecido.
Como Baerlach continuasse firme em sua suspeita e como comissário queria fazer uma investigação ainda que solitária, pede ao médico Hungertobel que lhe arrume uma vaga na Clínica Sonnenstein, dirigida por Emmenberger. Antes de sair para Zurique toma a providência de chamar um jornalista fracassado que publica uma revista sem periodicidade, fornece-lhe todos os dados para um texto sobre a suspeita de que na verdade sob o nome de Nehle se escondia um médico suíço que hoje dirige uma famosa clínica de Zurique, num texto em que o jornalista deveria enfatizar que dispunha de todas as provas para incriminar tal médico. Ao mesmo tempo, o comissário financia uma fuga para Paris imediatamente depois que a revista fosse distribuída, pois temia por sua vida após a publicação.
A segunda parte do romance se inicia com a internação do comissário na Clínica Sonnenstein, com o nome de Kramer. No entanto, ele é reconhecido pelo médico, pois havia saído em jornal de Berna uma foto sua noticiando a aposentadoria. O comissário nem desconfia que seu nome falso de nada lhe adiantaria.
Nesta parte, tudo vai rápido: o comissário é “posto fora de combate” por cinco dias depois da aplicação de uma injeção. Ao acordar, lê os jornais e fica sabendo que o jornalista Fortschig havia morrido, e a morte fora atribuída pela polícia a uma queda dentro do banheiro.
O médico Emmenberger o visita neste mesmo dia e lhe avisa que será operado dentro de 11 horas e meia, e sem anestesia. Confirma que ele mesmo se fez passar por Nehle, que mandou para o Chile. No retorno deste, assassinou-o em Hamburgo, fêz-lhe as marcas na sobrancelha e da queimadura no braço, para que o identificassem. Assim, reassume seu nome efetivo e dirige agora com sucesso clínica. Com a morte do jornalista e com a operação que sofreria o comissário, mais uma vez Emmenberger lograria a busca que lhe faziam os caçadores de nazistas.
As horas passam, o comissário começa a entrar em desespero, até que, milagrosamente e mais uma vez aparece Gulliver! Desde que compreendeu a suspeita do comissário, Gulliver passou a acompanhar tudo o que ele fazia. Não conseguira salvar o jornalista, mas recuperara o anão que Emmenberger/Nehle usava em seus crimes, um anão que vivera com Gulliver nos campos de concentração e lhe servia de “mascote”. As passagens que se referem ao anão estão sobrecarregadas de preconceitos… Enfim, Gulliver mata Emmenberger, e liberta da morte seu amigo, o comissário Baerlach.
Esta segunda parte do romance deixa muito a desejar, e a intervenção nada verossímel de Gulliver nos dois momentos cruciais da “investigação”, num expediente típico de romancistas inexperientes que precisam apelar para uma força externa para dar conta da trama, não fazem jus ao escritor que é Friedrich Dürrenmatt.
Referência. Friedrich Dürrenmatt. A suspeita. São Paulo : Círculo do Livro, s/data.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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