Todos os dias ela acordava cedo, e como se pudesse, permitia-se tomar um café demoradamente, esvaziava-se de seus desejos ali mesmo, gole após gole. Ao fim, estava vestida de toda sociedade: Cada sorriso, cada olhar, cada gesto, cada cor e desbotar, os cabelos bem presos, sem nenhum alvoroço possível, um par de brincos que alguém havia lhe dado, uma sandália de fivelas douradas, a mesma saia jeans escuro em tamanho clássico, uma camisa de tecido floral miudinho, as peças limpinhas e cheirando a sabão se misturando ao perfume de uma água de colônia que durava o dia trabalhado. Doze horas, entre o sair de casa, o trabalho e voltar no fim do dia. Doze horas.
Gostava de pensar que sobravam doze horas por dia para fazer suas coisinhas. Dormia pouco porque gostava de deixar tudo no lugar, e quando todos dormiam era livre que só, murmurou baixinho para si mesma:
– Livre que só.
Não foi durante esse lapso de liberdade que teve uma ideia, ao contrário, na semana anterior tantas notícias ruins a deixaram muito quieta, a palavra certa era depressiva, sem esperanças. Pensou até no mais trágico, não tinha coragem. Tanta gente assim: – cruz credo! Foi no dia que a moça do trabalho tinha feito aniversário e pediu uma caixinha de comida chinesa – só para ela mesma, porque todos ali eram pobres. mas um luxo de vez em quando não seria assim tão impossível, viu quando ela deu o biscoito da sorte para a amiga da mesa do lado. Também queria um pouquinho, mas era só um e tudo bem. Elas não eram amigas.
Achou engraçado essa coisa de sorte vendida dentro dos biscoitos. Então viu quando a outra comeu o biscoito, colocando-o para dentro da boca com fome quase violenta, sem sequer deliciar esses pequenos prazeres, e jogou fora entre migalhas e farelos que caíram de sua boca o papelzinho. Esperou que todos saíssem e pegou-o no lixo escondidamente. Quase um crime.
Naquele dia, errou o caminho de sempre e passou pela porta da loteria, desdobrou o papel com vergonha que alguém espiasse e lá estava ele. Quis jogar os números, tentar a tal da sorte, mas não teria o dinheiro para pagar a condução.
Dobrou o papel novamente e guardou-o.
Dali para frente, todos os dias o abriria, transformou o papel em um diploma. Sonhava sonhos possíveis já com o prêmio: não trabalharia tanto, compraria, viajaria, quem sabe plástica? Com certeza teria um namorado, ou até casaria outra vez. Outro dia pensava em piscina, em outro conhecer o mar. Intercalava isso com coisas ainda mais simples: experimentar camarão, mas e se tivesse alergia, sua colega de trabalho tinha e disse que era comum… Sentiu enrubescer a face, envergonhada, abriu um botão a mais na camisa. Parece que já não cabia mais tanto desejo.
Então, enquanto tomava o café demoradamente, ria sozinha pensando que era muita sorte ter aquele papelzinho. Guardava-o como uma preciosidade. Tão simples e pequeno, e ali preso, como se fosse um crime o que tivesse feito. Deixava-o ali, entre seus documentos e guardados, acompanhando-a por onde quer que fosse. De um lado números preciosos, do outro escrito forte: Lula livre!
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Gostei Mara!
O outro lado, “Lula livre”, é mais difícil de acontecer do que sua personagem ganhar jogando na loteria… tentando a sorte. O subcomandante Toffoli mais uma vez obedece ao general assessor e adia a decisão do STF. Previsível. Quando pensávamos ter visto tudo com a Dona Carmen, vem este subcomandante a pior um pouco mais a imagem do apequenado e obediente Supremo. Moro nem precisa abrir a boca, ele obedece antes.
Maria Emília, seu texto é lindo, o final surpreendente LULA LIVRE, embora mais difícil como disse Geraldi, tem a força da utopia que nos move para além desses tempos sombrios. As sementes dos pequenos gestos e palavras germinarão um dia. Abraço grande no seu coração!
Você é incrível. Sempre em alerta para todos os movimentos da nossa sociedade.