A Princesa de Babilônia, de Voltaire

O exagero, o fantástico, o extravagante. Esta história de Voltaire (1ª. edição em 1786), em pleno Iluminismo francês e às vésperas da Revolução Francesa funciona como uma alegoria às idas e voltas da história.
O enredo não é complexo. Belus, o rei da Babilônia tinha uma bela filha – não se lê livros de princesas que não sejam belas. Beleza ímpar. Seu nome: Formosante. Note-se o jogo: o pai se chama Belus, a filha é belíssima é Formosante.
Como Belus precisava casá-la, armou um festão. Os candidatos deveriam retesar o arco de Nemrod. Candidatos oficiais: o faraó do Egito, o rei das Índias e o rei dos citas. Todos chegaram carregados de presentes, para concorrer com os exageros da Babilônia. Afinal a arena de luta era “um anfiteatro de mármore que podia conter quinhentos mil espectadores”! Assim, os presentes terão os mesmos exageros…
Mas nenhum deles consegue passar pela primeira prova: nenhum retesa o arco de Nemrod. Mas aparece um desconhecido e belo jovem – nestes contos de fadas sempre os príncipes são belos e este vem montado num unicórnio e não num cavalo branco, que já faz parte da natureza do príncipe encantado. Este desconhecido salta do meio do público e retesa o arco.
Na segunda prova, os candidatos deveriam enfrentar um leão faminto. O faraó e o rei das Índias desistiram. Somente o rei dos citas tenta enfrentar o leão, que o devoraria não fosse a intervenção de Amazon, é claro. Vitorioso, Amazon presenteia a princesa com muitos diamantes e com uma ave: Fênix, que já viveram milhões de anos, falava e continha toda a sabedoria do mundo.
E obviamente Formosante se apaixona por Amazon, que viera de longe, de reino desconhecido. No entanto, Amazon parte às pressas porque recebeu aviso de que seu pai estava morrendo. Foi o que bastou para então vir efetivamente o enredo desejado por Voltaire: Formosante corre o mundo para encontrar Amazon; Amazon avisado por um melro que sua amada beijara o rosto do faraó do Egito, um estratagema astuto elaborado pela princesa para escapar do faraó que a encontrara e a mantinha presa. Decepcionado, Amazon também parte mundo afora, numa fidelidade canina a seu amor…
Falando destas terras distantes, visitadas pelos dois, Voltaire na verdade vai dizendo o que realmente quer dizer. Críticas à monarquia francesa, ao se referir à grande festa oferecida por Belus, em que ao mesmo tempo aparece a futilidade da corte mas também teses caras ao Iluminismo:

Todos concordavam que os deuses só haviam instituído os reis para que dessem festas todos os dias, contando que fossem variadas; que a vida é demasiado curta pra que a empreguemos de outra forma; que os processos, as intrigas, a guerra, as disputas dos sacerdotes, que consomem a vida humana, são coisas absurdas e horríveis; que o homem nasceu para a alegria; que não amaria apaixonada e continuamente os prazes se não tivesse sido formado para eles; que a essência da natureza humana é alegrar-se e todo o resto é loucura. Essa excelente moral nunca foi desmentida senão pelos fatos.

Enquanto a princesa Formosante vai passando pelos mais diversos reinos, nesta busca sem fim do amado (a busca da felicidade), sempre chegando tarde por Amazon por ali já havia passado e saíra para outros reinos, vão aparecendo os pontos de vista políticos e morais de Voltaire. Eis o que diz da China e seu Imperador:

Era o monarca do mundo mais justo, mais polido e mais sábio. Foi ele que, por  primeiro, lavrou um pequeno campo com suas mãos imperiais, para tornar a agricultura respeitável a seu povo. Foi ele que, por primeiro, instituiu prêmios para a virtude. As leis, por toda parte aliás, eram vergonhosamente restritas a punir crimes. Este imperador acabava de expulsar de seus Estados um bando de bonzos estrangeiros que tinham vindo dos confins do Ocidente, na insensata esperança de forçar toda a China a pensar como eles e que, sob o pretexto de anunciar verdades, já tinham adquirido riquezas e honrarias. Ao expulsá-los, lhes havia dirigido estas palavras textuais, registradas nos anais do império:
“Vocês poderiam fazer aqui tanto mal quanto fizeram em outros locais: vieram pregar dogmas de intolerância na nação mais tolerante da terra. Eu os mando de volta para nunca me sentir forçado a puni-los. Serão reconduzidos honrosamente até minhas fronteiras; todo o necessário lhes será fornecido para voltarem aos limites do hemisfério de onde partiram. Vão em paz, e nunca mais voltem.”

O anti-clericalismo dos iluministas franceses (ao contrário do Iluminismo alemão que se aliou à moral religiosa) está aí e reaparecerá com força quando Formosante chega à Roma. Nada lhe escapa neste sentido, desde a crítica à sagração dos reis pelo Papa até os inquisidores. Também as diferentes nações vão sendo caracterizadas – não poderia faltar alguma espinafração às terras de Albion (ridiculariza a fleuma dos ingleses) ou a Escandinávia (país insípido). Uma pequena passagem: “Os germânicos […] são os velhos da Europa; os povos de Albion são os homens feitos; os habitantes da Gália são as crianças e gosto de brincar com eles.”
Como não poderia deixar de ser, Amazon e Formasante chegam a Paris… e então as críticas se tornam mais pesadas:
Em seu recinto havia cerca de cem mil pessoas pelo menos que não tinham nada a fazer senão jogar e divertir-se. Esse povo de ociosos julgava as artes que os outros cultivavam. […] As amenidades da sociedade, a alegria, a frivolidade eram seu único e importante negócio: eram governados como crianças a quem se enche de brinquedos para que deixem de chorar. […] A decadência foi produzida pela facilidade de fazer e pela preguiça de fazer bem, pela sociedade do belo e pelo gosto do extravagante. A vaidade protegeu artistas que faziam voltar os tempos da barbárie: e essa mesma vaidade, perseguindo os verdadeiros talentos, forçou-os a deixar a pátria; os zangões fizeram desaparecer as abelhas.
Estamos chegando ao fim da aventura de Amazon e Formasante, que se encontrarão e por fim realizarão sua felicidade. Em contraponto, Voltaire parece deixar o fígado falar, e vai ao ataque direto de seus desafetos. No final do livro, invocando as Musas para que deem proteção a seu livro, começam a aparecer nominalmente seus inimigos:
Musas! […] Impedi que continuadores temerários estraguem com suas fábulas as verdades que ensinei aos mortais neta fiel narrativa, assim como ousaram falsifar Cândido, o Ingênuo.
Ó Musas! Reduzi ao silêncio o detestável Cogé, professor de palavrório no colégio Mazarino, que não ficou contente com os discursos morais de Belisáiro e do imperador Justiniano e escreveu infames libelos difamatórios contra esses dos grandes homens.
Pierre-Henri Larcher, que havia feito uma crítica acerba a seu livro Philosophie de l’histoire é ridicularizado. Ele pede que as Musas lhe coloquem uma mordaça. E vai mais longe dizendo que Larcher “derrama elogios à pederastia”:
Nobres e castas Musas, que detestais igualmente o pedantismo e a pederastia, protegei-me contra mestre Larcher!
Por fim, o parágrafo que encerra o livro:
Não te esquecerei aqui, jornalista eclesiástico, ilustre orador dos convulsionários, membro da igreja fundada pelo padre Bécherand e por Abraham Chaumeix: não deixes de dizer em tuas páginas, tão piedosas quanto eloquentes e sensatas que A Princesa de Babilônia é obre herética, deísta e ateia. Trata sobretudo de induzir no senhor Riballier a manda condenar A Princesa da Babilônia pela Sorbonne; darás um grande prazer ao meu livreiro, a quem dei esta pequena história como presente de Ano Novo.
 
Referência. Voltaire. A Princesa de Babilônia. Tradução de Antonio Geraldo da Silva. São Paulo : Escala, s/data. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, vol. 32)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.