A pesquisa em linguagem na contemporaneidade

A atração, própria de todas as pessoas cultas, haverá de comungar na multidão, perder-se na multidão, dissolver-se na multidão, fundir-se com a multidão; não apenas com o povo mas com a multidão de populares, com a multidão na praça; haverá de entrar na esfera da comunicação familiar específica, fora de quaisquer distâncias, hierarquias e normas, de comunga no grande corpo (Bakhtin. Metodologia das Ciências Humanas)
 

Parece-me significativo que hoje usemos a expressão “pesquisa em linguagem” para nos perguntarmos sobre o desenvolvimento futuro de nossos estudos. O deslocamento da “língua” para a “linguagem” mostra um rearranjo profundo em andamento que cruza, de alto a baixo, os programas de pesquisa e os modos de definir seus objetos, suas metodologias e seus parentescos disciplinares. A Linguística não está infensa aos problemas enfrentados pelo esgotamento do modelo moderno de fazer ciência, o que não quer dizer que já conheçamos hoje os caminhos a trilhar. Mesmo um princípio de salutar prudência, como o de utilizar o melhor modelo disponível, apesar de suas insuficiências, enquanto outro modelo não existir, não se segue mais ao pé da letra: entre os resultados apontados pelas teses e dissertações recentes, inclui-se já a crítica ao próprio modelo utilizado, quando um modelo é efetivamente utilizado em seu todo. Mais comum do que isso ainda, parece estar ocorrendo uma certa aparente ‘frouxidão’ metodológica em benefício de fenômenos recém vislumbrados. Estes ganham as luzes mesmo quando sobre eles apenas conseguimos uma descrição imperfeita e um nível explicativo, quando muito, extremamente local.
Neste caminhar sem corrimãos, sem sequer caminhos, talvez possamos dizer, como o viajante de Antonio Machado:

He andado muchos caminhos
he abierto muchas veredas;
he navegado en cien mares,
y atracado en cien riberas.

Nestes novos caminhares, certamente estamos reconstruindo parentescos, reencontrando novas parcerias. O programa moderno, que se inaugura numa leitura de Saussure, ofereceu-nos a possibilidade do estudo rigoroso de um objeto que se fechou em si mesmo – a língua. Em consequência, inspirada numa vontade de verdade científica, a Linguística se associou às metodologias próprias das ciências duras, especialmente à matemática e, mais recentemente, à neurologia. Hoje, talvez estejamos fazendo outros pactos, com os estudos da ordem das humanidades e abandonando o sonho da cientificidade, da objetividade e das fórmulas prontas, os princípios de descoberta, com que falamos sobre a língua. Mas chegamos a estes novos tempos carregados de contrapalavras – aquelas que a pesquisa objetiva conseguiu produzir e aquelas com que queremos recensear noções para construir compreensões. Como estas sempre passam por duas etapas: o ponto de partida (um texto dado, um fenômeno localizado) e os contextos passados; e um ponto de chegada, à frente – presunção de um contexto futuro, é instrutivo para todos nós retomar, antes, como a Linguística se construiu como disciplina no meio universitário brasileiro, para depois ‘especular’ um pouco sobre os contextos futuros.
Creio que o tratamento destes dois contextos – o do passado e o do futuro – pode ser percorrido com duas perguntas, para cujas respostas apenas estarei esboçando alguns elementos.

a)    Que práticas sociais de reflexão sobre a linguagem eram predominantes quando da introdução da Linguística no Brasil e que força cultural tinham que puderam impor que uma ciência se justificasse (e se justifique) para existir?

b)      Que respostas os que praticaram e praticam a pesquisa linguística têm dado a esta exigência externa que lhes impuseram as práticas letradas brasileiras?
Obviamente, meu objetivo não é responder a estas duas questões, já que elas demandariam um estudo de sociologia da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um verdadeiro balanço da pesquisa e reflexão sobre a língua/linguagem nos últimos trinta anos. Como se sabe, embora recente em termos históricos, a inclusão dos estudos linguísticos nos cursos de Letras do Brasil, tal como os entendemos, ocorre na década de 1960 (em 1962 ela se torna disciplina obrigatória para os cursos de Letras) e desde então os linguistas não só sustentaram polêmicas internas (nos embates entre diferentes teorias e correntes) e externas (com o “mundo das letras” e com o espírito normativo que nele sempre imperou), mas também produziram um considerável conjunto de informações, descrições e explicações a propósito da língua portuguesa falada e escrita no Brasil.
 

1.      O pecado original: a opção pelo falante
Em suas origens, ainda que possa não ter realizado sempre este gesto, a linguística deste século se inicia com base me dois princípios: 1) o do corte sincrônico para a construção das explicações de um sistema que se basta a si mesmo; e 2) o informante adequado para dizer o que é a língua é o falante e não os velhos textos escavados por uma arqueologia que explicaria o presente somente por sua relação com o passado. Nada mais escandaloso para a cidade letrada do que estes princípios. Eles negam não a história, como às vezes têm sido interpretados, mas a autoridade que da história querem extrair aqueles que a exercem no presente. Deslocando a autoridade do texto para o falante e dando prioridade à língua presente, viva e em funcionamento, a linguística se propôs duas grandes tarefas: a descrição das línguas e a aplicação destas descrições à vida prática (ensino de línguas, tradução, funcionamento social e psicológico ou psicanalítico do simbólico, etc). Obviamente estes deslocamentos têm um preço. Percebendo os riscos que a radicalidade possível destes dois princípios poderia significar, a ‘cidade das letras’ se opôs, vigilante, à introdução dos estudos linguísticos entre nós. O primeiro ponto de vista que gostaria de defender aqui é que “no mundo letrado brasileiro, a linguística foi chamada a justificar-se para ter direito à existência”.
Admitindo com Foucault (1970) que “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”, “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, impossível não recuperar polêmicas do final do século passado e início deste pra traçar os laços que sustentaram (e ainda sustentam) a produção de enunciados a propósito da língua no mundo letrado brasileiro.  Nossa cultura letrada tradicional construiu, ao longo do tempo, duas autoridades que se complementavam: a do escritor e a do gramático(2). Era é com base em escritos daquele que o gramático fixou a regra da língua; com passagens daquele, ele também exemplificou suas regras; com textos literários se formou nossa intelectualidade, inclusive fazendo exercícios de reescrever seus textos, desfeitos para exercícios por professores que dispunham dos originais para com eles comparar as novas redações e a elas atribuir um valor (Franchi, 1988).
A língua e sua correção sempre forma um apanágio das elites intelectuais. São conhecidas as polêmicas a respeito do dialeto brasileiro ou brasileirismos (Macedo Soares, João Carneiro Ribeiro), ou da redação do Código Civil (João Carneiro Ribeiro, Rui Barbosa, Ernesto Carneiro, Clóvis Bevilácqua), ou ainda a polêmica sobre a questão da colocação de pronomes entre Paulino Brito (gramático paraense) e Cândido de Figueiredo (gramático português). E não esqueçamos a atualidade destas polêmicas: a Constituição de 1988 foi revisada por gramáticos contemporâneos e a imprensa continua a espinafrar estudantes e vestibulandos sempre que a ocasião se oferecer. Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo que é requerido para a construção de novos enunciados, porque à fala se aplica o princípio da disciplina gramatical: qualquer enunciado tem sua própria forma submetida a outro juízo: o do certo e errado, segundo uma regra gramatical específica elaborada não segundo os falares, mas segundo a escrita de autores tomados como modelos.
Certamente esta tradição é também caudatária da conquista humana do domínio da técnica da escrita, que alargou incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências, e deflagrou também todo um projeto de gramatização  (Auroux, 1992) para fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento possível. A leitura pressupõe uma escritura. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos.
Ao labirinto das produções fluidas da oralidade sobrepõe-se, com a escrita, o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável.  E antes mesmo que a escrita se torne tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, “o anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1984:43).
Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável para o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra se agrega à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociações de sentido e orientar através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos a serem trilhados.
A sociedade só pôde ser assim construída, sob o império de uma separação radical, a partir de uma estrutura de exclusão. Sob qualquer das formas com que se organizaram politicamente o Estado e o Poder, soube a cidade letrada estar próxima, adequar-se às circunstâncias (Rama, 1984). Observando sempre sob o ângulo da produção da escritura, Rama aponta, ao longo desta história de convívio com o poder, uma cidade letrada que foi ordenada, foi escriturária, foi modernizada. Politizou-se e pode ser revolucionária. A cada momento, diferentes feitos históricos, mas sempre uma constante: a capacidade paradoxal de, ao mesmo tempo, expandir-se para as periferias supostamente acolhendo novos convivas e manter a distância das distinções erudito x popular; culto x não culto; alfabetizado x analfabeto; letrado x iletrado. Pelo prisma do letrado, ao outro sempre se atribuiu uma falta.
Neste universo de discursos, mesmo entre intelectuais que defenderam e defendem pontos de vista críticos, associados ou não à teoria crítica, ao marxismo ou a qualquer dos inúmeros projetos de vanguarda, predominou sempre uma escolha das formas linguísticas adequadas: aquelas que a filologia encontrou nos textos ou aquela que os gramáticos encontraram ainda hoje nas obras literárias de onde extraem suas regras e seus exemplos(3). Imagine-se, portanto, o escândalo para o mundo letrado quando a Linguística inicia seus discursos sobre as variedades linguísticas, inclui entre as manifestações linguísticas dignas de estudo a oralidade, eleva panfletos e textos de somenos importância à categoria de “gêneros” e, sobretudo, quando define que “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados” exclui qualquer julgamento entre o certo e o errado.
Como a escrita se popularizou e, em se popularizando, tornou-se heterogênea, outros artefatos verbais somam-se às clássicas obras recolhidas nas bibliotecas. Manifestos, panfletos, poemas soltos, páginas soltas, graffitis, orações, agendas, almanaques, cópias, paródias, paráfrases: o universo de discursos escritos expande-se, vulgariza-se, circula e faz circular sentidos(4).  E a linguística considera uns e outros como objetos legítimos de estudos. Nada poderia ser mais escandaloso para uma cidade das letras, acostumada a uma forma de violência sutil, a violência linguística (5).
Marcada pelos seus pecados originais, a Linguística, para nascer entre nós, teve que antes mostrar a que veio. Justificar sua utilidade. E inicialmente isso se fez pela rápida absorção entre nós da ‘linguística aplicada’ ao ensino de línguas estrangeiras, mas também pela presença dos linguistas em projetos de ensino de língua materna (6). Não podemos esquecer que a introdução da Linguística entre nós se dá enquanto vivíamos um quadro ideológico desenvolvimentista e nacionalista: há que fundar em novas bases a ciência e a tecnologia – o desenvolvimento nacional. Nada mais útil do que alicerçar os projetos de educação linguística numa ciência emergente, de solidez então confiável.
Introduzidos os estudos linguísticos, esta presença na definição de programas ou propostas curriculares só faz crescer, ainda que diversos sejam os matizes que inspiraram uns e outros. O inegável é que a Linguística, entre nós, está presente no discurso “oficial” sobre o ensino a partir dos anos 1970 e somente uma pesquisa dos contextos e das proposições apresentadas poderá esmiuçar as diferenças, as certezas e as incertezas, as negociações e as imposições que tal presença proporcionou. Também é inegável que a ‘democratização’ do acesso à escola e as tímidas tentativas de permanência na escola de segmentos populares são também vitórias das posições defendidas pelos linguistas (7). Está aberto, aqui, um campo inesgotável para a pesquisa linguística na contemporaneidade. Mas a mais importante pergunta a responder remete à radicalidade, ou não, dos princípios fundantes da disciplina: uma defesa da norma prevalecente nas classes hegemônicas, sejam elas quais forem, alinhará a Linguística à tradição normativa e gramatical de nossa cultura; uma defesa intransigente do direito de falar e escrever daqueles cujas histórias nunca foram contadas, escritas ou lida, aguçará os debates entre os linguistas e os ‘formadores de opinião’ sobre a língua (Britto, 1997).
 
2.  O refúgio inseguro: o argumento da autoridade científica
 
Para fazer frente aos descontentamentos de várias ordens que provocou na ‘cidade das letras’, a Linguística e os linguistas refugiaram-se ou encastelaram-se em sua ‘torre de marfim’, a concepção de ciências que recobriu seu discurso e que somente agora, no final do século, vem sendo posta em questão(8) . Sabemos que
A orientação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância. (Ginzburg, 1989:178)
Sabemos também como a Linguística respondeu a este desafio e a fama que passou a usufruir entre as ciências humanas, como mostra a sequência do parágrafo do mesmo autor:
 Só a Linguística conseguiu, no decorrer deste século, subtrair-se a esse dilema, por isso pondo-se como modelo, mais ou menos atingido, também para outras disciplinas. (Ginzburg, 1989:178)
Mas sabemos, sobretudo nós linguistas, que ao ultrapassarmos o nível da frase – e já dentro deste nível em muitos casos – temos inúmeras dificuldades com o modelo científico que herdamos, já que
A interpretação das estrutura simbólicas tem de entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas.
A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. Pode servir diretamente à prática vinculada às coisas.
!Cumpre reconhecer a simbologia não como forma não científica mas como forma heterocientífica do saber, dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão! (Aviérintsieve) (Bakhtin, 1974:399).
 
 
Se queremos incluir entre nossos objetos de estudos os modos de construção das significações, dos sentidos, das compreensões e das interpretações, mantendo discursos e textos como nossos objetos preferenciais, aos quais chegamos com um custo considerável para nossa fama de cientistas bem sucedidos, talvez tenhamos que reconhecer que nosso objeto – agora a linguagem e seu funcionamento e não mais a língua e seu sistema de relações internas – faz parte de tipo de atividade humana que não deixa reduzir aos positivismo. Ela se acrescentaria a outros tipos de atividades já reconhecidas no passado como não redutíveis a um tratamento positivista:   
No último texto que escreveu, Freud pesarosamente reconheceu, como tinha feito em várias ocasiões anteriores, os limites e as frustrações de seu trabalho: “è quase como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ nas quais se pode estar antecipadamente certo de que se vai obter resultados pouco satisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo” […] Talvez ele estivesse pensando na perplexidade de um filósofo mais antigo: “Existem duas invenções humanas que podem ser consideradas mais difíceis que qualquer outras” havia advertido Kant, “a arte do governo e a arte da educação; e as pessoas continuam a discutir inclusive seu significado” (Donald, 2000:63).
Não por acaso, as três artes – governo, educação, psicanálise – operam com a linguagem e todas elas têm como seu lugar de existência o sujeito que através da linguagem se constitui e constitui governo, educação e subjetividade e por estar neste universo discursos, é por ele constituído. Por que a linguagem, esta atividade constitutiva das três práticas apontadas por Kant e Freud, deveria ser redutível ao positivismo científico?
Em consequência, as pretensões de conhecimento sistemático na área dos sentidos, das significações ou das interpretações mostram-se cada vez mais como veleidades. Talvez por isso os linguistas estejam sendo chamados:

a)      ou ao alinhamento à cidade das letras, integrando-se e se deixando encorpar à tradição letrada, com o abandono de sua escolha original da autoridade do falante para fornecer os elementos necessários à compreensão da língua e de seu funcionamento (inclusive político) ou a decidir-se pela exclusão da maioria destes falantes em benefício das formas de falar (e escrever) de um grupo específico – ‘as camadas cultas’ – o que não passa de outra forma de inscrever seu alinhamento à tradição;

b)      ou radicalizar suas posições, sem se sustentar no argumento de ‘autoridade científica’, mas no argumento ético que suas demonstrações invocam e provocam: a linguagem é mais um modo de constituição das subjetividades do que uma forma de expressão de representações de mundo. Dizer que uma variedade linguística é errada ou inadequada é dizer que o modo como os sujeitos que a falam se constituíram de forma errada e inadequada: interditar formas linguísticas é interditar sujeitos. Corrigir formas linguísticas é trabalhar pela uniformidade, em benefício do mito da unidade, com prejuízos incalculáveis para a multiplicidade das formas de compreensão da vida.
Para concluir – e retomar agora um aspecto do contexto futuro – a pesquisa linguística que se seguirá talvez tenha que reconhecer, radicalmente, a realidade opaca da linguagem e que para compreendê-la é preciso aprender que “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (Ginzburg, 1989:179) .
Para fazer isso, antes de tudo cada pesquisador precisará equipar-se com sua opção (política, é claro) de alinhamento à tradição ou radicalização na defesa de outras manifestações verbais como tão importantes ou até mesmo mais importantes do que aquelas que a tradição elevou à categoria de cânone. Nesse lugar da opção, pesquisa e ética se reencontram e, enfim, talvez nos tornemos livres para nos darmos um lei, sabendo que nossa liberdade de nos darmos uma lei implica que lei alguma é imutável porque outra lei pode ser elaborada nesta história que não tem qualquer porto de chegada que não o próprio percurso da caminhada.
 
Notas

(1)   Este texto foi escrito para minha participação em mesa-redonda  no XI SETA – Seminário de Teses em Andamento, realizada no Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, em 17 de outubro de 2005 quando ainda era professor colaborador no programa de pós-graduação em Linguística. O Prof. Luiz Percival leme Britto o incluiu em 2006 num dos volumes da revista Quaestio (Vol. 8) do programa de mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba, programa de que fui professor quando sob a coordenação da Profa. Dra. Rosália Aragão. A revista da Associação de Professores de Português de Portugal o publicou em sua revista Palavras (Lisboa, n. 31, 2007). Posteriormente, fazendo alguns ajustes e revisões, inclui-o em minha coletânea Ancoragens. Estudos Bakhtinianos (São Carlos : Pedro & João, 2010), com algumas modificações no texto. Esta a versão que publico aqui.

(2)   Marina Mendonça analisa a polêmica, travada através da imprensa, provocada pelo projeto de lei de Aldo Rebelo que proibiria, em nome do patrimônio linguístico nacional, o uso de expressões estrangeiras. Em sua análise da luta pelo poder de dizer a língua, encontra elementos históricos para mostrar que este lugar foi ocupado pelo escritor e pelo gramático.

(3)   Que sirvam de exemplo as posições do filólogo e lexicólogo Antonio Houaiss, socialista perseguido pela ditadura militar e os textos do poeta de esquerda Ferreira Gullar publicados pela Folha de s. Paulo (setembro e outubor de 2005).

(4)   Tomando por base apenas um conjunto aleatório de 420 teses e dissertações defendidas em programas de pós-graduação nas áreas de linguística e educação, constituído, na verdade, por minha participação em bancas de defesa ou pela deferência dos autores que me presentearam com exemplares de seus trabalhos, podemos observar que os ‘objetos escritos’ sobre que se debruçaram os pesquisadores fogem ao estudo dos textos canônicos, com base nos quais as normas gramaticais forma assentadas: de um conjunto de 78 teses e dissertação que focalizam textos escritos, 72 deles trabalham com textos não canônicos: redações de alunos, redações de vestibulandos, textos jornalísticos, textos de revistas, escritas populares, almanaques, rótulos e propagandas, cartas pessoas (de pessoas comuns), cordel e folhetos, panfletos, depoimentos, canções sertanejas, classificados etc. 

(5)   Osvaldo Piedade Pereira Silva analisa episódios de preconceito linguístico demonstrando que eles são efetivamente práticas sociais de violência.

(6)   Sem qualquer outra pretensão que o registro – saendo que tais registros têm força retórico – lembremos o Centro de Linguística Aplicada do Yázigi, da década de 1960; o surgimento do LAEL, da PUC/São Paulo, um de nossos mais importantes centros de pesquisa; a publicação por Mattoso Câmara do Manual de Expressão Oral e Escrita; uma significativa mudança na perspectiva das obras sobre leitura e escrita, que se revela nos títulos deste tipo de publicações: de “A arte de…” para “O ensino de …” (sirvam de exemplos: A arte da leitura e A arte de redigir, ambos do português Mário Gonçalves Viana; A Arte de Escrever e A Arte de Conversar, ambos do português Cruz Malpique, todos eles da década de 1950; Como aprender a redigir, de José Guerreiro Murta, de 1926; e a influência ainda na década de 50 e 60 da obra de Antoine Albalat, L’art d’écrire, cuja 12ª. ed. É de 1906!); e pro fim a presença de textos de linguistas nos “Subsídios metodológicos para a implantação da proposta curricular de ensino médio” editada em oito volumes distribuídos pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

(7)   Apenas a título de exemplo, leia-se E as crianças eram difíceis… A redação na escola, de Eglê Franchi, S. Paulo, Martins Fontes, 1984.

(8)   Não vou retomar aqui as questões postas pela crise do paradigma moderno de fazer ciência. Remento o leito a Boaventura de Sousa Santos (1987, 1989, 2000, 2004); Michael Peters (2000); Dora F. Schnitman (1996), entre outros.
 
 
Referências bibliográficas
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João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.