A performance do diálogo

Nunca tivemos tanta informação disponível, nunca ouvimos falar tanto em tendências e indicadores, em DIY (Faça Você Mesmo) etc.. Sabemos tanto sobre temas e pessoas que é como se conhecêssemos quase tudo sobre a vida de quase todos.

Somos frequentemente interpelados a falar, opinar, questionar. É preciso dizer onde está, no que está pensando, como está se sentindo, e se possível provar com fotos ou ‘fazendo uma live’.

Como escreveu o professor Wanderley, “estamos obesos de informação e anoréxicos de reflexão”.

A reflexão exige o câmbio de posições, exige um esforço exotópico em que ouvir o outro não pode significar apenas dar espaço ou voz a ele. Trata-se de um momento essencial em que há uma identificação com o pensamento do outro, e que possibilita nesse ponto de empatia alguma reflexão que coloque o sujeito em outra posição. É nessa dimensão alteritária por excelência que o eu deixa de coincidir consigo mesmo.

Muitas vezes, não temos a reflexão nas redes sociais, em grupos de discussões, nem mesmo nas salas de aula. E por que não? Porque nem sempre conseguimos exercitar o câmbio de bolhas; porque nem sempre estamos dispostos a nos dirigir a quem pensa diferentemente de nós; porque muitas vezes ficamos apegados às explicações já esquematizadas ou aos rituais escolarizados em que o produto desejado nem sempre é o pensar.

A reflexão está na capacidade de se distanciar e estranhar o outro em relação a si mesmo, a fim de construí-lo, isto é, colocar-se do lado de fora da individualidade percebida pela empatia, separar-se e, depois, promover um retorno a si mesmo.

Experimente dar ao pensamento de alguém um empurrão e verá que ele logo cai, e tanto o que empurra quanto aquele que é empurrado produzem algo chamado discussão, diálogo.

Quando penso em polifonia, a partir das notações musicais, é fascinante pensar que mesmo uma monofonia pode ser polifônica, ou seja, onde há alguma produção de melodia pode haver polifonia. A elaboração de melodias demanda regularidades e exige que se cumpram algumas exigências harmônicas; é necessário levar em conta elementos como linearidade, textura, proporcionalidade, alternância etc.. É sempre uma tarefa que responde ao disciplinamento musical de tons, de tempos e de chaves.

Só não há polifonia musical, pode-se dizer, quando ocorre a monodia: quando há um único canto, a uma só voz, sem acompanhamento instrumental. E mesmo assim, quando o estilo monódico é colocado no corpo de uma ópera, ele também passa a construir certa polifonia.

E por que falo disso?

 

Estou pensando que a subjetividade moderna está vinculada a um modo de exercício do poder que tem entre suas principais táticas a exposição do indivíduo comum à tamanha visibilidade, que o impede de enxergar o outro e o faz seguir isolado.

Parece uma ilha de entre-tenimento, em que todos falam sem parar, sem alternância, sem textura ou profundidade, não há melodias que possam construir campos harmônicos. Desrazão.

O mesmo se repete em outros espaços, onde se proliferam as publicações, os periódicos, os eventos, os grupos…

Riobaldo Tatarana já nos advertiu: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

 

Cristina Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.