A nova identidade da escola face às novas tecnologias de informação e comunicação[1]
João Wanderley Geraldi [2]
Introdução
Compartilhando com Walter Benjamin (1994) a preocupação com a desvalorização e empobrecimento da experiência humana [3] que se revela pelo quase desaparecimento da narrativa, iniciemos nossa discussão com a referência a dois acontecimentos distintos e narrados de formas totalmente diferentes.
(a) No consultório do médico
Procurei, como paciente, meu já conhecido médico cirurgião, especialista em questões gastro-intestinais. Na conversa, entre um e outro sintoma com que esperava fazer o diagnóstico, começamos a conversar sobre os problemas que enfrentamos (na verdade, eu enfrentava, e ele ainda enfrenta) nos processos de ensino no meio universitário. Particularmente, tratava-se da diferença de focos de interesse entre o que o professor quer ensinar e o que os alunos estão dispostos a aprender. Como orientador de médicos residentes na área de cirurgia geral (uma residência obrigatória e pré-requisito para a residência em cirurgia plástica), estava enfrentando o desinteresse de seus residentes por técnicas cirúrgicas que não lhes dizia nada relativamente às cirurgias plásticas que no futuro queriam fazer. Esta a queixa do professor-orientador. E eis seu exemplo deste desinteresse: na sala de cirurgia, acompanhado de três residentes, ela passa a um deles o comando de uma cirurgia. Durante o ato de intervenção, o residente saiu-se muito bem, chegando à conclusão de seu trabalho, mas ocorreu-lhe algo não previsto e externo à cirurgia: a calça que estava usando foi ao chão, e ele continuou corretamente sua tarefa, até conclui-la seguindo o plano técnico de intervenção previsto. Cinco minutos após todos saírem da sala de cirurgia, o professor-orientador toma conhecimento, já em seu gabinete, de que no Facebook rolava uma fotografia de seu aluno com as calças arriadas durante a cirurgia. Convocou os três residentes a seu gabinete e foi direto a uma pergunta: qual a técnica que o colega havia usado na operação? A resposta veio pronta e correta. Então perguntou aos três residentes: qual seria o plano B, caso não desse certo o plano de cirurgia posto em execução? Nenhum dos três soube responder e nenhum deles imaginava a necessidade de conhecer um segundo plano antes de iniciar uma cirurgia. Mas, obviamente, um deles com seu celular havia feito a fotografia e tivera tempo de postar no Face o que realmente lhe interessara naquele momento de aprendizagem: o fact divers, o imprevisto das calças arriadas, que imediatamente compartilhou na rede, sem ter sequer percebido os riscos a submetera o paciente (pelo uso do celular durante a cirurgia) e o colega por transformar um acaso insólito num objeto de riso!
- Nas páginas do jornal, a manchete Conexão Harvard (caderno estadão.edu, 30.10.12)
Trata-se de uma curta reportagem sobre “aulas globais”, ministradas pelo Professor de Filosofia Política de Harvard, Michael Sandel, personagem conhecido nos meios mediáticos em função da série Justice. A aula em questão teve a participação de estudantes de São Paulo, Nova Délhi, Tóquio, Xangai e obviamente dos Estados Unidos. Todos com seus “tablets” na mão, os brasileiros reunidos na Escola de Direito da FGV/São Paulo. A aula se inicia com o professor contando aos participantes “a história de um casal americano que não podia ter filhos e pagou US$ 10 mil a uma mulher para gerar uma criança fertilizada pelo pai. Quando o bebê nasceu, a mãe de aluguel quis ficar com ele e apelou à Justiça para não entregá-lo. “Se você fosse o juiz e precisasse decidir a coisa certa a fazer, do ponto de vista moral, o que faria?” perguntou Sandel aos estudantes. “Quem romperia o contrato?” A discussão entre os participantes rolou, com posições e argumentações distintas. O professor apontou para duas das questões que estariam envolvidas: (a) a necessidade ter levado a mulher a aceitar o contrato e (b) a possibilidade ou não da capacidade reprodutiva da mulher ser posta à venda no mercado. Sobre a primeira questão, ao menos na reportagem, não aparece grande discussão entre participantes bem postos na vida, com seus iPad, câmeras e fluência em língua inglesa. Mas a segunda questão “botou fogo na aula”, aparecendo uma diferença sensível entre a cultura tradicional chinesa – defendendo que é aviltante a mulher colocar à venda no mercado sua capacidade reprodutiva – e a cultura liberal americana – “as mulheres deveriam ter a chance de escolher vender ou não essa capacidade reprodutiva de acordo com sua própria consciência”. Note-se que as classificações de “tradicional” e “liberal” desvelam posições, pois os acentos apreciativos são inerentes a estes adjetivos, equivalendo quase “ruim” e “bom”. Interfere o professor fazendo um panorama sobre o funcionamento da gravidez de aluguel no mundo, dizendo que uma americana recebe entre US$ 20 mil e US$ 25 mil enquanto na Índia o preço cai para US$ 7 mil. A discussão da moralidade da terceirização da gravidez em escala global passa a ser discutida em termos do valor dos diferentes mercados, e um voz americana defende: “Em um mercado, cada um tem o direito de escolher o preço pelo qual vende um serviço, no caso, a barriga”. Ao final da aula, o professor convoca seus alunos a pensarem “no quanto a desigualdade socioeconômica determina a liberdade da mulher na hora de “vender” ou não sua barriga para carregar o bebê de outras pessoas”.
1. Tecnologias: uma presença histórica incontestável
Ao longo de sua história, a humanidade sempre produziu instrumentos técnicos que lhe facilitaram a sobrevivência, em seu sentido amplo de atendimento de necessidades para além daquelas da mera reprodução física. Isto é um truísmo. Então, o que há de particular nas “novas tecnologias”?
Antes de tudo, é preciso distinguir entre estas “novas tecnologias” aquelas diretamente destinadas à produção daquelas indiretamente vinculadas a estes modos, mas essenciais na manutenção do sistema de produção tal como o conhecemos com sua relação hierarquizada entre capital e trabalho.
Na situação atual, quando a “máquina produtiva” vem se transformando muito rapidamente, dispensando a presença da força de trabalho humano em benefício da organização eletrônica e mecatrônica da produção, sem que o sistema de produção tenha se modificado, as novas tecnologias diretamente aplicadas no “chão da fábrica”, no “balcão de compras” hoje movido pela navegação em sites, com os objetos à venda ao alcance de um toque na tecla “enter”, e na transferência em tempo real de valores financeiros de um país para o outro sem praticamente qualquer restrição, as “novas tecnologias” têm diluído as relações sociais estáveis, dissolvendo tudo o que é sólido sem que a solidez do sistema seja atingida. Aumentou e globalizou-se a miséria; aumentou e globalizou-se a exclusão social a tal ponto que os “excluídos” de hoje são mais do que o necessário “exército de reserva” disponível para se transformarem em sobras humanas com as quais não se sabe como lidar além da decretação de guerras localizadas mesmo invocando falsos argumentos, como mostrou, por exemplo, a guerra do Iraque[4].
O exército dos desempregados, dos forçadamente desocupados, daqueles que ontem estavam no mercado de trabalho e amanhecerem “incompetentes”, recebe agora a mensagem das tecnologias mediáticas: terão sucesso em seu retorno ao mercado de trabalho se estiverem melhor preparados. E onde se deve buscar esta preparação? Nos sistemas de formação, escolares ou não.
Neste processo de ideologização das relações sociais é que as tecnologias não diretamente utilizadas na produção material, mas essenciais na produção de bens simbólicos e na movimentação dos bens materiais têm papel fundamental. As tecnologias midiáticas, sobretudo a internet, são a grande novidade neste processo de transformação dos agentes sociais. É preciso investir em si para se tornar “mercadoria vendável” no mercado. Neste aparente mundo em que todos somos consumidores, nada mais do que consumidores: aquele que compra a força de trabalho não é mais um “patrão” mas um “consumidor” de trabalhadores capazes; aquele que compra a capacidade reprodutiva de uma mulher para que lhe gere um filho não é mais um aproveitador que submete à pressão uma mulher com necessidades, mas um consumidor que compra no mercado pelo melhor preço (e faz-se pensar que o preço é estabelecido por aquele que vende e não por aqueles que compram como mostra a afirmação da jovem norte-americana em nossa segunda narrativa); aquele que observa uma cirurgia já não é um aprendiz, mas um “caçador” de oportunidades extraordinárias que lhe permitam postar numa rede social algo inusitado e que merecerá inumeráveis visitas, dando-lhe uma fama momentânea.
A diferença essencial nas tecnologias do presente em relação àquelas construídas no passado está neste logro que faz cada um pensar que é individualmente livre, individualmente capaz, individualmente culpado por seu insucesso, individualmente herói de seu sucesso. Não há mais sociedade e interesses coletivos. Há indivíduos, cada um em luta contra todos para encontrar um lugar no mercado, “para permanecer desejável o suficiente para encontrar clientes interessados, quer esteja ou não lidando com dinheiro” (Bauman, op. Cit, p. 81).
2. As tecnologias e a escola
Como toda instituição social, a escola sofre as influências das estruturas sociais e das mudanças que nesta ocorrem. Também como toda instituição social, ao longo dos tempos incorporou tecnologias produzidas fora de seus muros ao mesmo tempo em que produziu tecnologia própria, específica, para realizar a sua função. Enumeremos algumas destas tecnologias da escola: (a) o estrado de onde se dita a lição; (b) a carteira escolar, onde deve sentar o aprendiz em posição acadêmica adequada; (c) a geografia própria de ocupação do espaço da sala, que nem sempre foi a mesma; (d) os materiais visuais para exposições; (e) o quadro de giz.
Mas a escola usou, sobretudo, tecnologias produzidas em seu exterior: o papel; a imprensa e o livro; a enciclopédia e o dicionário; a pena, o grafite, a caneta; o caderno e o giz. Aprendeu com a igreja a fórmula da pregação: o ensino do mesmo e ao mesmo tempo para muitos (tal como ocorre no sermão). Muitos destes instrumentos técnicos sofreram adaptações: do livro para o livro didático, e mais recentemente do cinema para o filme didático, do documentário para a aula televisiva. Nem todas estas adaptações foram bem sucedidas. Por exemplo, nada menos televisivo do que uma aula na televisão: as linguagens da televisão são distintas das linguagens da exposição didática. Um mesmo personagem o tempo todo na tela, falando e explicando foge por completo ao padrão de movimento da linguagem da televisão.
Face à presença das novas tecnologias, o que se tem demandado da escola é que utilize estas tecnologias, que inclua entre seus componentes curriculares disciplinas específicas que habilitem os sujeitos ao uso destas tecnologias. Certamente as novas tecnologias dos meios de comunicação e informação não foram produzidas para a escola, mas os clamores contemporâneos vão no sentido de que elas sejam usadas nas salas de aula, pensando-se que assim a escola estará se reformando, mudando. Exige-se da escola que seja camaleônica em relação às mídias. No entanto, esta exigência que “modernizaria e atualizaria” a escola e seu processo de ensino deixa as questões de fundo intocadas. A incorporação de novas tecnologias pela escola em suas metodologias torna a escola mais “eficiente”, mas mantém sua mesma função: a reprodução dos saberes (e dos valores sociais).
A segunda narrativa com que iniciamos esta exposição mostra muito bem isso: uma questão polêmica como “a venda da capacidade reprodutiva” no mercado de serviços, que faz reagirem sociedades conservadoras (os estudantes chineses) ou de pensamento católico (os estudantes brasileiros), mas que é aceita por sociedades mais liberais (leia-se, EEUU) de questão principal no debate, passa a ser uma questão secundária para que emerja como essencial não o fato em si, mas as desigualdades socioeconômicas que permitem preços diferenciados no mercado global, com “concorrências desleais”: uma barriga de aluguel indiana é mais barata do que uma barriga americana! Ainda assim, o uso da tecnologia que permite “aulas globais” é extremamente interessante porque permite contrapontos face às diferentes culturas; mas é também o espaço de uma ideologização e uniformização do pensamento fazendo tábula rasa precisamente das diferenças para construir um pensamento único: todas as nações querem ser modernas, e nada mais moderno do que o modo de vida norte-americano, no qual o repórter se espelha e fala como se todos nele se espelhassem. A verdade para a mídia é aquela do mercado e de seus preços…
A primeira narrativa nos mostra, ao contrário, um uso inadequado da tecnologia: o celular com que se fotografou o fato e a rede social em que se compartilhou a imagem mostram o quanto de infantil navega pelas redes. Todos nós já recebemos as perguntas indiscretas (tipicamente de colegiais norte-americanos) para respondermos dando nossas opiniões sobre nossos amigos! As perguntas são ridículas e infantis e a privacidade, uma conquista social importante, perde-se na ligeireza das informações superficiais que consumimos na maioria das redes sociais.
3. Quando não se quer o mero consumo das tecnologias
Obviamente não sou contra o uso das novas tecnologias de informação na escola. Mas não acredito que seu simples uso, como meros consumidores e formadores de consumidores, seja a questão essencial. Na contramão dos clamores de emprego das novas tecnologias midiáticas na escola, a pergunta que me interessa é outra: não me interessa como usar estas tecnologias, mas sim que demandas faz à escola a existência das novas mídias, particularmente da internet.
Não me parece que se trate simplesmente de usar a internet na escola – o que não quer dizer que este uso não possa ser feito. Trata-se de saber que deslocamentos nas funções históricas da instituição escolar a internet vem provocar. Aqui está a questão de fundo.
Ainda que às pressas, consideremos as funções sociais que desempenhou a escola ao longo do tempo:
a) uma escola evangelizadora: as origens da escola moderna estão nas escolas dominicais, onde se ensinou o catecismo, assim como as origens das universidades contemporâneas estão nos mosteiros e conventos. Desde a laicização já não cabe à escola este papel evangelizador;
b) uma escola civilizadora: os conhecimentos e os saberes tomaram o lugar do catecismo. A escola torna-se o lugar de aprender os conhecimentos produzidos na história, de socializar estes conhecimentos, partindo-se do pressuposto de que quanto mais o homem conhece, mais civilizado se torna (mas não esqueçamos: o holocausto acontece na civilizada e escolarizada sociedade alemã);
c) uma escola socializadora: em certas perspectivas pedagógicas, mais do que os conhecimentos já disponíveis em outros espaços – os livros, as enciclopédias, as bibliotecas – cabia à escola a socialização das crianças para além da família e da rua. O convívio de crianças e jovens de diferentes procedências (mais espaciais do que sociais, certamente, porque há escolas e há outras escolas nas periferias) permitiria a constituição de uma cumplicidade, a construção de um destino comum. Nesta perspectiva, mais do que socializar conhecimentos – ainda que isto ocorra – o importante é a construção das relações entre os sujeitos compartilhando seus destinos;
d) uma escola de formação profissional – o desenvolvimento capitalista exigiu também da escola sua participação formando trabalhadores mais ou menos especializados para o exercício de funções auxiliares ou técnicas. Isto se deu num sistema escolar duplo, como no caso da Alemanha, em que alunos “menos dotados” são encaminhados à formação técnica e os bem dotados à formação acadêmica superior ou num sistema mais ou menos paralelo, com as duas redes de ensino existindo concomitantemente, em que os formados pelas escolas técnicas, além da profissão, poderiam continuar seus estudos em nível superior, como no caso do Brasil.
A escola contemporânea pode ser caracterizada pelo trabalho de socialização dos conhecimentos e dos sujeitos, ainda que a primeira parte possa deixar a desejar. O capitalismo contemporâneo, neoliberal, tem demandado que a escola assuma também a formação profissional inicial, permitindo que a aprendizagem no exercício do trabalho se dê mais rapidamente e, portanto, com menores riscos para os lucros das empresas.
Quando os processos de armazenamento e socialização dos conhecimentos passam a serem outros – nenhum professor é capaz de dispor a seus alunos o mesmo nível de informações que um clicar sobre um programa de buscas é capaz de oferecer na internet; quando a socialização dos indivíduos para a construção de um destino comum se torna obsoleta diante das teses hegemônicas de inexistência de outros caminhos para sociedade que não aquelas do mercado, que função pode ainda ter a escola para este sistema de produção?
A primeira e mais visível resposta é “formação profissional” para que seus egressos tenham condições de disputar as poucas vagas existentes no mercado. Nenhuma outra função interessa ao capital. Os tempos pós-modernos além de decretarem o fim da história, a liquidificação dos sólidos, a fluidez do consumo, a livre escolha de mercadorias como sinônima de liberdade, não decretaram o fim da escola, mas lhe transferiram a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso no mercado de trabalho. Para um sistema gerador de exclusões sociais, era preciso encontrar um “bode expiatório”, transferindo as exclusões à responsabilidade tanto do indivíduo quanto de uma instituição social com a qual aquele poderá partilhar seu insucesso ou a qual poderá retornar para melhor se preparar para o mercado do qual foi excluído. Ou seja, a responsabilidade pelo desemprego (assumidamente não mais conjuntural), a responsabilidade pela exclusão (necessária num sistema de transferência da produção social para as mãos de poucos) deixa de ser uma questão do sistema, apresentado como única alternativa, para se tornar uma questão individual, de formação, de preparo, de habilidade. E é nestas três últimas que entra a escola e sua função dentro do sistema.
Bauman (2008), que tem analisado a sociedade a partir da categoria do consumo, sobrepondo-o à produção (e fazendo tábula rasa das relações que nestas se estabelecem) chega a afirmar:
Os consumidores falhos, donos de recursos demasiado escassos para reagirem de forma adequada aos “apelos” dos mercados de bens de consumo, ou mais exatamente a seus passes sedutores, são pessoas “desnecessárias” para a sociedade de consumidores, que estaria melhor sem elas. Numa sociedade que avalia seu sucesso ou fracasso pelas estatísticas do PIB (ou seja, a soma total de dinheiros que troca de mãos nas transações de compra e venda), esses consumidores deficientes e defeituosos são descartados por serem perigosos.
O pressuposto tácito subjacente a esse raciocínio é, uma vez mais, a fórmula “não há consumidor sem mercadoria”. (op. cit.p. 88)
No contexto da economia globalizada, a escola deve formar consumidores e ser também ela consumidora: particularmente de computadores e seus componentes. E deve acompanhar a obsolescência, trocando a cada novidade todo o seu parque de máquinas formadoras de consumidores. Mas como para consumir é preciso ter renda (ter sucesso no mercado), apela-se à formação profissional no sistema escolar (ou a uma nova formação a cada vez que o trabalhador perde seu posto de trabalho). Produzir para consumir. Consumir para que a produção continue, num círculo aparentemente sem fim.
Mas e se quisermos fugir a este círculo vicioso? Que função dar à escola que não seja a da preparação para o sucesso no mercado tanto como mercadoria desejável por suas capacidades ou mesmo beleza física, uma mercadoria comprável pelo “empregador/consumidor”, mas também como consumidor constante que o mantenha sempre à frente das tendências para se fazer sempre desejável? Como pensar subjetividades que fujam da vergonha atual de portar um Smartphone ou um Blackberry, quando o mercado já está oferecendo o iPhone? Em outras palavras, como pensar uma função social para a escola, neste contexto, fugindo às seduções do mercado, mas aceitando que a informação está hoje disponível em outras instituições, mormente na internet e que, portanto, não cabe mais à escola os papéis tradicionais de socialização dos conhecimentos?
Se os meios de comunicação se tornaram os lugares sociais da distribuição, da circulação das informações, restando à escola contemporânea uma suposta sistematização das informações, agora a internet oferece tudo organizado, à disposição de um clique no mouse, trazendo distintas vozes que falam sobre o mesmo assunto, permitindo cotejar textos e vozes antes inacessíveis. Hoje afogamo-nos num excesso de informação.
Estas possibilidades oferecidas pela internet nos permitem retornar à lógica da leitura: os sentidos são múltiplos, são construções e, portanto, mais do que certezas o de que dispomos são de possibilidades. Os horizontes de mundos possíveis se ampliam à medida que nossas construções de sentidos se tornam mais polifônicas. Com a internet o universo se saturou de textos e sua acessibilidade nos permite elevar a enésima potência as compreensões possíveis.
Neste universo de textos, resta à escola ser o tempo de possibilidades de leituras. De leituras transgressoras. Ser o tempo de aprender a refletir sobre um cotidiano que nos assombra e em que habitamos. A escola é a única instituição social em que se pode, reunindo pessoas (crianças, jovens, adultos), fazer uma pequena parada no corre-corre que nos oprime, deixar o pó assentar, para refazer perguntas essenciais – para que estamos aqui? Que felicidade buscamos? Quem é o outro que vejo apenas como concorrente no mercado? O que nos une nas diferenças?
Fazer isso implica outra lógica, não mais aquela da informação e da organização sistemática das informações – que já está disponível na rede – mas aquela da criação de sentidos. A transgressão de suspeitar das verdades do mercado, a exemplo da segunda narrativa com que iniciamos esta discussão, mas sem cair na lógica dos preços globais e concorrentes das “barrigas de aluguel”, para manter a pergunta: o que faz alguém vender seu próprio corpo? Que sistema é este em que está à venda o corpo: não só para gravidez, mas para a representação de uma felicidade consumidora para a qual querem nos atrair “os tanquinhos” de jovens moldados nas academias ou a esbelta figura que veste o último modelo de biquíni?
Uma escola de perguntas nos permitiria caminhar na busca de instrumentos para realizar a principal tarefa a que fomos chamados nestes tempos: “a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana” (Mészáros, 2005, p.45), nesta teimosia de sermos humanos. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008
BENJAMIN, Walter. O narrador. In. _____ Magia e técnica, arte e política (Obras Escolhidas vol.I). São Paulo : Brasiliense, 1994
GERALDI, C. & GERALDI, J.W. “Tecnologias na escola, tecnologias da escola” in. BENITES, Maria. Janelas para o mundo: um projeto de pesquisa e ação. Diálogos com outras vozes. Porto Alegre : Livraria do Arquiteto, 206.
LORDELO, Carlos. Aulas globais. In. O Estado de S. Paulo, caderno Estadão.edu, 30.10.2012, p. 12-14
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo : Boitempo, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo : Cortez Editora, 2ª. Edição, 2000,
[1] TExto apresentado no III ENTEL, na UNIJUÍ, em 05.11.2012.
[2] Professor Titular aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. jwgeraldi@yahoo.com.br
[3] Boaventura de Sousa Santos (2000) trabalha com esta questão na área da sociologia, proclamando que o mundo contemporâneo desperdiça a experiência.
[4] Como mostrou Bauman (2008, p. 139-140): “As correntes que se afastam do rio não são revertidas e levadas de volta ao leito principal com facilidade: Bush e Blair puderam ir à guerra sob falsos pretextos, ainda que não faltassem sites denunciando o blefe deles. […] No que se refere à “política real”, quando a discordância viaja em direção a armazéns eletrônicos, ela é esterilizada e tornada irrelevante. Aqueles que remexem a água dos lagos de armazenamento podem se congratular por sua inspiração e vivacidade , comprovando sua boa forma, mas os que estão nos corredores do verdadeiro poder dificilmente serão forçados a prestar atenção.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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