O cotidiano, como todos sabemos, reflete, na sua singularidade, o que há de comum nas percepções e representações de mundo, mas também refrata e no seu caldeirão ao reproduzir também produz os primeiros elementos do novo que ainda não chegou, ou que vem vindo mas que não acreditamos que se tornará hegemônico.
Pensar acontecimentos do cotidiano vivido é uma função do cronista. É a ele que dedicarei meus próximos tempos e começo com a primeira vivência deste fim/começo do novo ciclo a que teremos de sobreviver.
Vivo numa praia. Estamos em alta temporada. Os caiçaras dizem que “os turistas chegaram”. Para mim, veraneio de quem vive longe daqui. Aproveitam o mar – cujas águas estão cálidas. Aproveitam o sol e sairão sobrecarregados de vitamina D, um estoque para o ano das sombras. A alguns, vejo-os vermelhos como camarões: é que todos buscam a cor do verão. Porque o verão tem cores.
Em cada entrada desta praia de Barequeçaba há um grande cartaz anunciando uma proibição: proibido levar animas para a praia. No desenhado, uma pessoa segurando a corda do cachorro com que passeia, dentro de um círculo, com a faixa transversal do “proibido” das placas de trânsito.
Obviamente, há cachorros na praia. Não muitos, mas o suficiente para mostrar que há aqueles que estão acima da lei, aqueles que fazem a lei segundo seus desejos – um costume bem típico de país sem civismo e sem civilidade, esta conquista difícil que não chegou a estas regiões do mundo.
Bocudo que sou, não deixo de reclamar. Aviso aos “passeantes” que cachorros são proibidos, que a praia, em sua democracia, não acolhe cães para que todos – incluindo as inúmeras crianças desta praia de águas calmas – possam usufruir da areia e do mar. Apenas uma vez fui contemplado: uma senhora levou seu cachorro para casa, seguida de seu marido resmungão.
Mas no dia 31 de dezembro me ocorreu uma novidade: pela primeira vez fui xingado de “VELHO!” E o motivo é o de sempre: quando voltava de minha caminhada, entravam na areia duas mocinhas crescidas, cada uma com seu cachorrinho de madame. Apontei-lhes a placa que estava bem à vista, à direita e repeti: “é proibido trazer cachorro para a praia. Está na placa. Sabem ler? Ou entendem o desenho?”
Acontece que um pouco adiantado, também saindo da praia, ia um senhor destes que são o orgulho da nação, ou seja, perfeitos idiotas bem sucedidos e grandes filhos da puta! Gritou que sabem ler e que nesta praia se aguenta muita coisa, e por isso não havia razão para suas rebentas deixarem de levar seus cachorrinhos à praia.
E começou o bate-boca. Respondi que se havia muito coisa a aguentar nesta praia, ele aumentava isso não cumprindo uma regra que era para todos. E lhe disse que ele sabia que não era eu quem estava aumentando esta carga, mas ele! Foi o que bastou para me gritar um “feliz ano novo” com o tom de voz que me mandava para o inferno. Eu Já havia seguido adiante quando ouvi os “bons” augúrios, mas levantei o braço com o dedo em riste, naquele sinal em que mandamos alguém “tomar no cu”. E foi então que ouvi o xingamento:
– Velho! Seu velho! Ficam velhos e ficam babacas! Seu babaca – tudo muito bem gritado.
Grito do meu lado:
– Feliz de você que não precisou esperar a idade!
E segui viagem para meu portão… com a certeza de que ele não entendeu! Afinal, “homens bem sucedidos” têm certas dificuldades para compreender implicaturas.
Mas fiquei pensando melhor: não seria mesmo babaquice querer cidadania numa região do globo terrestre em que cada um somente compreende seus próprios interesses? Não seria mesmo velhice isso de cidadania, de civismo, de civilidade? Babaquice de velho!
E então compreendi a lição: a “nova civilidade” retorna acelerada, tá OK?
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Uma história do cotidiano que leva à reflexão sobre os (des)valores da humanidade. “Assim eu quereria a minha última crônica”.
Ainda bem que você não mora ou faz veraneio aqui no Recife. Pelas bandas de cá, os “bem sucedidos orgulhos da nação” não se contentam em nos chamar de velhos; eles partem para a agressão física ou, às vezes, até para o assassinato.
Tristes tempos… em que velhice é motivo de xingamento ou de agressão física. Sempre pensei que em algum momento da história futura, os antropólogos se debruçarão sobre este tempo para tentar compreender este raciocínio introduzido pelo neoliberalismo de destruição da solidariedade intergeracional que se revela no cotidiano como consequência do martelo ideológico diário de que os velhos são os responsáveis pelos males da previdência e por isso da vida dos jovens e maduros senhores bem sucedidos (na maioria meros trabalhadores que vivem de um salário superior ao mínimo mas se acham enriquecidos e da elite…).
Uma crônica magistral para iniciar o novo ciclo a que teremos que sobreviver. Abaixo a nova civilidade! Viva os velhos babacas que falam coisas ininteligíveis para “homens bem sucedidos” acima da lei, orgulho da nação!
Obrigado,Cecília… estou tentando mudar o estilo!!! Não sei se aprenderei.