A montanha branca, de Jorge Semprun
Na capa deste livro há um subtítulo: “Na arte e no amor a resistência às tiranias políticas e ideológicas”. Fica, assim, avisado o leitor: a história que lerá tem como pano de fundo os sistemas totalitários, aqui representados pelo nazismo e pelo regime de Stalin. No entanto, nenhum deles será descrito, nenhum deles será o tema: permanecerá sempre como uma referência e como o que tornou os personagens o que são: carregam em sua história consequências e resistências.
Para realizar seu projeto, o autor põe em contato três artistas: Juan Larrea, dramaturgo espanhol; Antoine de Stermaria, pintor francês descendente de nobres alemães que migraram para a Rússia no Século XVIII; Karel Kepela, tcheco, diretor de cinema e de teatro. Há uma personagem-símbolo que atravessará todo o enredo e que, em certo sentido, une estes três artistas: Franz Kafka. Como uma espécie de contraponto feminino, teremos: Lawrence, esposa e paixão de Juan que tendo sofrido uma acidente, vive numa cadeira de rodas sem sair de casa e por isso ela apenas aparece como ‘evocação’; Nadime Feuerabend, que fora ‘aluna’ num seminário conduzido por Karel, que será a amante de Juan e sua real companheira; Franca, esposa de Antoine, amante de Juan e aparentemente uma espécie de centro em torno do qual voejam os três personagens masculinos. Há outras mulheres: Mary Lou, por exemplo, que foi caso de Antoine, que a oferece como penhor de amizade a Juan… Ela somente será evocada por Stermaria e Juan e pelos ciúmes de Franca por um passado dos amigos a que não tem acesso.
Kafka, este símbolo, se faz presente não só nas remessas a suas obras ou em citações que dele fazem, principalmente Karel, mas também na estrutura própria deste romance, um tanto kafkiano, com idas, vindas, retornos, avanços, recuos, numa cronologia esgarçada e em episódios que se sobrepõem, com um narrador onisciente que parece ter fragmentado a vida de seus personagens, embaralhado os acontecimentos, exigindo que o leitor esteja atento porque nem bem termina de ler uma parte de um episódio de que não se dá o fim, e outro aparece. As suspensões também podem ser feitas ora por reflexões próprias de uma das personagens, ora num diálogo entre duas delas.
No entanto, ao final do livro, o leitor terá convivido tanto com suas personas que se sente abandonado por elas e pelo narrador: gostaria de conhecer uma continuidade da vida, saber o que não lhe é oferecido. Como disse Proust, o autor dá ao leitor uma parte, com sua arte. Caberá à arte do leitor continuar a história como história própria, já sua porque dela participou por um tempo.
Sendo absolutamente injusto com o enredo e com a arte de Jorge Semprun, resumamos: o motivo inicial será um cartão postal com uma péssima reprodução de Passagem de Estinge, de Patinir, cuja característica é o azul. O cartão chega precisamente quando Antoine acabara de pintar um quadro que chamará de Marinha clara, onde predomina o azul, cor com que pintou inúmeros nus de Franca. A mensagem assina por Juan é carregada de alusões. E vem de Madri, onde Juan se encontra com Nadine, fazendo o mesmo percurso que já fizera com Franca – isto obviamente despertará nela não só ciúmes, mas também reflexões sobre esta repetição dos mesmos caminhos que fazem os homens com suas mulheres! Depois deste primeiro episódio que acontece na casa em que vivem Franca e Antoine, em Freneuse, no interior francês, precisamente perto do rio Estinge, parece que ele decide convidar Juan para se reencontrarem depois de muitos anos. Afinal, o último encontro parece ter sido em Roma, onde Antoine fazia uma exposição de seus quadros, em 1965, a qual Juan compareceu para rever o amigo. A ela compareceu Franca: ambos se apaixonam pela mesma mulher, mas será com Juan que ela sumirá por um tempo. Depois disso, se tornará a companheira de Antoine. Entretanto não esquecerá Juan e com ele se encontrará em Madri e continuará tendo encontros furtivos e rápidos.
Karel Kepela viveu em Praga onde caiu em desgraça durante o regime soviético. Teve que abandonar sua profissão e a única função que um agente da Gestapo encontra para ele será cuidar do novo cemitério judeu de Straschnitz, em Praga, precisamente onde se estão enterrados os membros da família Kafka. Será à borda deste túmulo que Karel receberá muitos visitantes, entre eles o escritor Josef Klims que reencontrará em Zurique, onde ocorrerá um passeio pelas casas em que moraram Johann Caspar Lavater, depois Goethe. Próximo dali, viveu por um ano Lenin. Este encontro entre Klims e Kepela será a parte mais erudita do livro, com inúmeras remessas a livros, quadros, peças teatrais, músicas… e algumas passagens em alemão que não estão traduzidas.
Juan Larrea é um sobrevivente de campo de concentração nazista. Ele jamais esquecerá a fumaça dos crematórios: os amigos que se tornaram fumaça no céu. Ele contará tudo para Antoine, depois silenciará este tempo de sua vida, buscando o esquecimento que jamais virá.
Estas serão as pessoas que se encontrarão em Freneuse, na casa de Antoine e Franca. Era para ter sido um encontro dos dois casais, mas Franca e Nadime trazem para o encontro também Karel Kepela, que afinal estava trabalhando com Juan numa peça de teatro, cujo título é precisamente A Montanha Branca: Juan escrevia, Karel a montaria.
Sobrecarregado de referências a obras, a autores, a músicas, a pintura, às vezes o romance deixa o leitor um pouco perdido, mas também curioso para ler as obras citadas… Trata-se de um romance em que o autor colocou toda sua erudição. Num mesmo parágrafo podem aparecer três ou quatro obras clássicas ou contemporâneas (A valsa dos adeuses, de Milan Kundera, por exemplo).
O romance termina no encontro de Freneuse, quando Juan fala por uma hora dos tempos do campo de concentração:
A fumaça, evidentemente.
Ele começou pela fumaça do crematório, pelo cheiro da fumaça sobre a colina do Ettersberg. Começou por onde tudo acaba, outrora: por esse momento em que a vida partia em fumaça. Começou pelo cheiro da vida partindo em fumaça, inesquecível. Por essa lembrança que ele não podia compartilhar com ninguém mais que não tivesse estado lá, não tivesse lá sobrevivido. Mesmo os antigos deportados do Goulag soviético, dizia Juan, cuja memória contém os mesmos tesouros abomináveis, sem dúvida ainda mais ricos, mais monstruosos que os nossos, mesmo eles, não conheciam o cheiro da fumaça dos crematórios sobre as paisagens da Europa. Isso é nosso bem, a essência de nossa vida!
Quase no final do romance, no diálogo entre Nadime e Franca, quando falam da primeira mulher e verdadeira paixão de Juan, aparece uma passagem que teria sido o ponto explicitado na relação deste com Franca ou com Nadime ou com qualquer outra mulher que não Lawrence:
O que é uma história, Juan? perguntara Franca, um dia. – Mas é uma história, literalmente: memória, cicatrizes, risos, ritos, um futuro! – Então, não há história entre nós, exclamara ela, já que não há futuro! Quero dizer: que o futuro não pode ser senão o dia presente, indefinidamente reproduzido. Mas como presente-passado, não como futuro. Uma série de espécies de horas fora do tempo!
Depois desta noite de encontro Freneuse, de rememoração do passado, de olhares cúpidos, da paixão repentina de Karel por Franca; do pedido de Antoine para que Juan lhe mandasse Nadine para dormir com ele como na juventude ele lhe havia mandado Mary Lou; depois de Juan explicitar ao amigo a traição que cometia com Franca; depois de uma bebedeira de Karel que o prostrou; depois do desabafo de Juan sobre seu tempo de deportado; depois de tudo, Franca prepara o café da manhã, olhando para o ar de satisfação de Nadime e imagina o que terá acontecido na cama com Juan; depois disto tudo, vem a cena final:
Juan Larrea se suicida nas águas geladas do rio Estinge. A descrição deste suicídio é página antológica.
Referência. Jorge Semprun. A montanha branca. Tradução de Edison Darci Heldt. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1987.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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