Desde 1983 venho participando do COLE e nestes doze anos de seis congressos encontrei, sempre, um batalhador, organizador e idealizador destes encontros, num vaivém contínuo entre os lugares públicos dos eventos – as luzes do primeiro plano das atividades plenárias – e os espaços dos bastidores que permitem a concretização de cada gesto deste diálogo nacional sobre a leitura. Ao colega Ezequiel Theodor da Silva dedico este texto e esta primeira conversa de abertura do 9º. COLE.
À atual diretoria da Associação de Leitura do Brasil, agradeço o convite – espinhoso – para ocupar este tempo inaugural do Congresso. Obviamente, tenho certeza absoluta de que tal convite se deve muito mais ao objetivo de salientar a necessária articulação entre militância e reflexão, a que tenho me dedicado, do que a possíveis resultados porventura alcançados com este mesmo trabalho.
Aos colegas professores destes diferentes brasis que aqui se (re)encontram, agradeço esta presença a demonstrar sobretudo que, como vergonha e esperança, sobrevivemos, para desespero para desespero daqueles poucos que tudo têm feito para construir a desesperança.
Iniciemos este 9º. COLE com um minuto de silêncio por
– Cláudio Pereira da Silva, 15 anos
-Carlos Henrique Aguiar dos Santos, 16 anos
-Marcos Vitorino Costa dos Santos, 19 anos
Que suas mortes inocentes, ocorridas no linchamento de 3 de julho de 1993, redimam a multidão ludibriada por aqueles que atribuem aos meninos de rua sua própria violência e desespero porque temos sobrevivido a suas manobras de manutenção de uma forma anacrônica de viver.
…para que a escrita advenha e subsista, insista, ela assenta sempre num processo de amnésia, no sentido em que ultrapassa a fixação na fobia do já-dito. (Maria Augusta Babo)
Falar em “momento de crise social” no Brasil e articular a este momento a questão da leitura exige um exercício de amnésia, para esquecer o que já se disse, recolhendo no já-dito fragmentos que iluminem o que está sempre por ainda dizer, neste esforço continuado e tenso de ir construindo compreensões novas nos cada vez menores intervalos do já-dito, re-articulando estes dizeres para constituir o ainda por dizer. O que se vai tecendo, a pouco e pouco, em cada ponto, em cada nó, é uma resposta atual a uma sucessão histórica de momentos de crise social, já que em nossa história a expressão momento de crise social somente tem sentido de atualidade por força de muita boa vontade.
Sem temor à repetição, para aqueles que preferem uma ética da expressão informulada e individual ao discurso explicativo já formulado e para sempre disponível na estéreo-tipização social (Osakabe, 1988), cada momento recoloca uma mesma e sempre irrespondida questão: como articular, aqui e agora, com as categorias de compreensão de que dispomos, uma resposta provisória, mas produtiva, às emergências cotidianas nas quais se mostra esta crise social brasileira, fundante de nosso próprio modo de estar no mundo?
Inescapavelmente, formulamos a cada ato, a cada gesto, a cada decisão, uma resposta e nas histórias destas respostas, relemos nossas categorias de compreensão e redefinimos o saber acumulado pela experiência humana, dialogando com múltiplas vozes que nos antecederam, para afirmar entre vozes alheias nossos roteiros de viagens. E no discurso da história estes roteiros dirão o que fomos. Recorramos à formulação poética desta mesma questão:
Agora, amadureço a questão
Nós, prontamente solidários com a memória
(compromissos sem perigos)
e o desespero irreparável dos mortos,
se, àquele tempo presentes e vivos,
como veríamos o III Reich?
Para responder, não te transfiras
a cômodo, como agora.
Busca adquirir a cidadania alemã
e depois, estável, responde,
ao curso de fuzis e verdades da época
– considerando o risco de tua estabilidade –
operário ou proprietário da Mercedes Benz
o que farias no III Reich?
Que em nós o tempo é o mais humano,
e hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
fração de um tempo maior
que a vagar se compõe tão árduo.
Por isso pergunto
em todos os tribunais do passado,
que lado ocuparíamos?
pois que somos e não somos ante o tempo
e também seus acidentes
históricos e geográficos,
as estações, a carência e os meses.
Se ainda fosse abril,
o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?
E agora que estimamos
a incerteza
ante o III Reich,
agora que estimamos
menos perigosa
a participação da memória
e muito menos eficaz
pergunto: tu, ante o presente,
como te define ao que será passado?
Há urgência na resposta, antes que a noite chegue
Carregarás fardos para evitar
(repara que o rio corre e a noite vem como onda)
ou deixarás que apenas sejamos o tempo
e irreparável memória?
José Carlos Capinan – Inquisitorial
Ante o presente, teçamos, neste Congresso, nossas respostas. Para iniciar tal construção – obrigação que me impõe o gesto de abertura que gostaríamos sempre de ter já ultrapassado, estando já na sequência do discurso e não nos seus inícios (Foucault, 1971), seleciono três formas de manifestação da crise brasileira contemporânea: um mesmo iceberg em três de suas faces.
O MENINO E O POEMA
Paulo Eduardo de Oliveira Berni, um menino de 10 anos, trouxe-me seus poemas. Olhos vivos e atentos a qualquer reação minha durante a leitura, esperou que os lesse, ao mesmo tempo lisonjeado e apreensivo. Quando percebeu que terminei a leitura, sapecou:
– Tio, tenho futuro? e imediatamente me explicou
– Eu quero ser poeta e jogador de futebol para viver…
Que responder ao autor de
Seres de planetas
Os seres dos planetas
viajam em diferentes cometas.
Mercúrio é mercuriano.
Marte, é marciano.
Vênus, é venusiano.
Urano, é uriano.
Netuno, é neturiano.
Saturno, é saturiano.
Plutão, é plutoriano.
Júpiter, é jupiteriano.
A imaginação corre solta.
E a terra
é terráqueo ou terrorista?
Na explicação de Paulinho, e num de seus poemas, encontro já indícios de uma resposta possível: enquanto na terra há os que se fazem terroristas – a elite econômica a semear a miséria para dela se beneficiar – é preciso ser jogador de futebol como estratégia de sobrevida do poeta. Mas dizer isso é também dizer:
– Desculpe, Paulinho, porque a única coisa que posso dizer sobre seu futuro d epoeta é ter vergonha do nosso presente.
Um presente que empareda sonhos, que fecha portas, que destrói alternativas, que exclui e depois culpabiliza individualmente por não reconhecer-se em seus produtos e para tentar justificá-los: homens gabirus construídos sob o tacanho império da propriedade privada improdutiva e intocável, da exploração extrema capaz de gerar recursos financiadores de fantasmas desde que estes, corporificados, sejam capazes de manter o sistema de exploração de forma constante e geométrica.
Esta a face individualmente dolorida da crise social: como sujeitos, constituímo-nos social e heterogeneamente, vivendo nos horizontes de possibilidades concretas de cada momento particular. Neles nos movemos e no movimento ampliamos tais horizontes à medida que no presente nossa memória do futuro nos permite agir não só limitados pelo passado, mas também orientados pelo futuro. As utopias, socialmente construídas, mobilizam o desejo individual e o desejo nos leva ao agir. Participantes na e da história, somos ao mesmo tempo seu produto e sua força de propulsão. Nosso momento de crise, ao impossibilitar que o leitor se construa também como autor, não resulta nem de uma falta de competência nacional nem do fato de virmos construindo nossa cultura a partir de modelos europeus ou americanos, mas do fato de a elite nacional com acesso aos bens culturais – e isto inclui a produção de cultura – ter de conciliar moralmente as vantagens de um modelo econômico e de exploração anacrônico e que a beneficia, segregando a maior parte da população brasileira do universo da cultura contemporânea (Schwarz, 1987).
E é com estes segregados que temos trabalhado enquanto professores destes diferentes brasis. Qualquer trabalho que procure tornar a leitura conquista de uma realidade não pode esquecer o contexto de sua luta e tampouco excluir de seus horizontes a realização da felicidade individual no projeto de construção de uma sociedade democrática em todos os sentidos desta expressão. Por isso, enquanto agentes deste processo de transformação, lutando diuturnamente com nossos alunos na sua caminhada de constituição de autores e leitores, constituímo-nos nós próprios em leitores-autores de nossa história presente. E para fazê-lo, nada melhor do que o projeto do poeta
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros,
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria,
o tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente
Carlos Drummond de Andrade
O ASSALTO E O ROUBO: DUAS INSTITUIÇÕES DESMORALIZADAS
Segundo os cálculos do jornalista Carlos Franscicato (Zero Hora, Porto Alegre, 11/07/1993)
Pela média dos últimos meses, para se igualar aos cerca de US$ 1 bilhão movimentado pelo esquema PC, os ladrões gaúchos precisariam amealhar 130 mil carros, o que levaria 82 anos. Ou assaltar 96 mil bancos, o que demoraria mais de mil anos. Se os assaltantes de banco pretendessem igualar ao total espoliado pelos sócios de Paulo César Farias nos 29 meses de governo Collor, precisariam ter assaltado, nesse mesmo período, mais de 300 bancos por mês, ou dez bancos por dia. Da mesma forma, teriam que desaparecer das ruas cerca de 1.500 carros por dia (4,5 mil ao mês), em uma proporção 30 vezes superior ao que ocorre atualmente.
Em um de seus sermões, Pe. Vieira, já no século XVII, apontava o verbo roubar como conjugado em todos os tempos, modos e pessoas no Brasil-Colônia (tempo de formação da ainda hoje elite econômica brasileira). Mas até esta mesma “instituição” nossa elite foi capaz de suplantar, desmoralizando “pequenos roubos” como assaltos a bancos ou furtos de carros. A mesma elite que não vivia uma crise ao desviar recursos para o tráfico de influência – expressão eufemística para enriquecimento ilícito às custas do trabalho de cada um de nós – mostra-se, pouco mais de três anos depois, depauperada por uma crise e recessão econômicas que, segundo ela, não lhe permite sequer indexar salários à inflação, embora mantenha seus altos índices de lucratividade.
Nós, mortais gabirus, habituados à rapina cotidiana, reagimos nas ruas ao excesso desmoralizante das atividades pcfarianas. É na atividade diária, na luta cotidiana e quase inglória que temos reagido à rápida diária: sobrevivendo e por sobrevivermos, impingindo-lhe nossa vitória por recusarmos sua proposta.
Expõe a mercadoria!
Sempre que vou
pela cidade deles
atrás de um ganha-pão, alguém me diz:
– Mostra o que trazes contigo,
abre em cima do balcão:
expõe a mercadoria!
– Conta uma coisa que nos empolgue!
Fala da nossa grandeza!
Descobre nossos secretos anelos!
Indica-nos a saída!
Expõe a mercadoria!
– Mistura-te conosco
para sobressaíres,
mostra-te igual a qualquer de nós
e nós diremos que és o maior!
Nós podemos pagar, temos recursos
e ninguém mais do que nós.
Expõe a mercadoria!
Fica sabendo: nossos grandes preceptores
são aqueles que ensinam o que queremos que ensinado seja!
Manda, enquanto obedeces!
Dura, enquanto nos leva a durar!
Entra no jogo conosco, vamos repartir os ganhos!
Expõe a mercadoria! Sê leal para conosco,
expõe a mercadoria!
Quando lhes olho bem os rostos corrompidos
lá se vai minha fome… (Bertoldo Brecht)
Não comerciando nossos sonhos, ousando ensinar e aprender no diálogo com nossos alunos, junto com os quais nos debruçamos sobre o que nos oferece cada autor em cada texto – apesar de todos os reveses – temos evoluído em nosso trabalho. Na surdina, nas profundezas de um mar social em ebulição na superfície, na desvalorizada escola, a maioria de nossos companheiros professores temos compartilhado textos e compreensões que ler e escrever não são atos mecânicos de reconhecimento, mas processos de construção de compreensões dos objetos, do mundo e das pessoas. E sobrevivemos porque só isto não nos satisfaz:
… um homem satisfeito nada faz, um homem satisfeito é preguiçoso, um homem satisfeito é um aposentado antes de ter começado a fazer alguma coisa. Um homem satisfeito sempre torna a fazer a mesma coisa, como um funcionário público. (Canetti, 1987)
E porque não estamos satisfeitos, vamos além. Se fomos por tanto tempo roubados, queremos hoje mais do que o necessário. Queremos o direito à literatura e sua fruição, porque literatura tratando de um mundo que não é nos fornece categorias de compreensão do mundo que é.
ELES NÃO SOBREVIVERÃO À NOSSA SOBREVIVÊNCIA
Para mostrar a terceira face da crise social que vivemos, recorro à narração literária de Francisco Dantas para lhe contrapor a narração jornalística de Marcelo Auler:
– Ai! meu amo… pelo leite de sua mãe… não judia mais do neguinho… – Mal fechou a boca, outra cacetada no ventre o obrigou a dobrar o tronco e os joelhos; repuxão terrível; solavanco de todos os diabos. O pretinho zonzo e machucado persistia a berrar de joelhos, mendigando a única esmola que queria: – não mais… amo de Deus… – E antes mesmo que pudesse terminar de novo a rogativa repetida, outra paulada atravessou os braços espichados em clemência e resvalou queimando os beiços, amassando a súplica num mugido de bicho que, de corpo inteiro, estatelou-se nas pedras. Mas, intuindo alumiado, como se de repente recebendo aviso, tratou de engatinhar meio tonto, se arrastando de asa quebrada, forcejando pela destreza que lhe fugia. Trotaria se fosse o burro que amansara, correria se as pernas o ajudassem, mas bom mesmo era se fosse carcará ou gavião. Pressentira, no atordoamento da última ripada, o destino que a fúria do amo lhe endereçara: os exemplos que já vira lhe bastavam. Ainda se sacudindo de gatinhas que melhor a tonteira não deixava, tratou de se largar dali manquitolando meio trombado, rechaçando o zumbido da cabeça só com o ímpeto de viver, que até mesmo se arrastar em trompaços de aleijado o corpo pesadão já não queria. Da boca afolozada, o sangue ia escorrendo por conta do amo que, na ponta da ira desatada, decidira de sua sina, laborando sobre o seu corpo a pauladas.
Retorcendo-se sobre as pedras em esgares de quem se fina, o negrinho parecia tomado do demônio para a morte. Ou porque agonizasse de verdade, ou porque simulasse os estertores só para ganhar tempo e se refazer, a verdade é que teve a trégua que merecia, e só mostrou que se recuperava depois de reagrupar as forças por dentro de uma lufada só. Mal foi se pondo equilibrado, o patrão que vigiava de pertinho tentou levantar o corpo bambo a pontadas de botas, testando assim a resistência do semi-morto, sequioso de outra vez agudizar-lhe o sofrimento, o porrete de pau d’arco já alevantado, prestes a abrir uma brecha vermelha na cara de carvão.
Mas o que mais doía no condenado era morrer inteiro vendo que morria! Por isso o patrão esperava… queria o desinfeliz de olho bem aberto para que mais o matasse a última golpeada desferida. Se aquele porretão já alçado despencasse em iras lá de cima… era uma vez um negrinho que engatinhava…Mas desta vez a seu favor se conjugaram sorte e agilidade: assim que a cacetada retiniu nas pedras com uma violência de arrancas faíscas, o renascido acabara de escorregar o corpo e se firma de pé. E no clarão do mesmíssimo relâmpago, mal o porrete voava das mãos do amo, sobre este o negrinho se arremessava a marradas de novilho alucinado, acertando na barriga duras cabeçadas, até que o grande corpo branco foi se desgovernando e desabou de vez. Bicho ainda desvairado, o negrinho malhou, com os calos das mãos, os rins e a cara do amo. Depois, ainda aterrado e fungando forte, mas já dono de uma pontinha de alívio, fez uma invocação a seu Deus… que ele fosse maior do que a desgraça em que acabara de cair. E nu da cintura para cima, sem os seus teréns e a mochila da matutagem, fugiu para o oco do mundo, desabalado e de cabeça no tempo, bicho para sempre caçado pelos cachorros. (Francisco J. Dantas. Coivara da Memória)
A mesma sorte não tiveram Cláudio, Carlos e Marcos:
Na volta do futebol de praia… esperavam o ônibus da linha 906, que os levaria de Olaria para o Jardim América, para casa. O ônibus não parou no ponto. Os rapazes fizeram uma algazarra. Gritaram palavrões, provocaram. Um policial resolveu revista-los. Não encontrou nada. Os três acabavam de ser liberados pelo PM quando apareceram quatro homens num Bugre vermelho. Desceram do carro para bater nos forasteiros que faziam bagunça. Desceram distribuindo safanões. Os três rapazes correram, tentando fugir. O Bugre foi atrás. Eram 3 e meia da tarde. Da rua onde estavam, a Noemia Nunes, os rapazes dobraram à esquerda, na rua Angélica Motta. Atrás do Bugre já corria uma pequena multidão. “Eu vi os rapazes correndo. Um bando vinha na perseguição gritando ‘pega ladrão!” conta um frentista do posto de gasolina. Triunfo. Correram 200 metros. O Bugre os alcançou. Derrubou-os no chão. A multidão chegou. Começou o linchamento. […] Francisco Lins Monteiro, 24 anos, desempregado, pegou um paralelepípedo. Bateu com ele no peito de um dos rapazes que tentava se levantar. […] Josefa Alexandrina da Fonseca, 53 anos, viúva e analfabeta, encontrou um cabo de vassoura, com a ponta lascada como uma lança. Enfiou-o na boca de um dos jovens caídos. Com a ponta do pau, dava-lhe estocadas fortes. […] Tentou furar os olhos de um. Não conseguiu. Cravou-lhe a vara numa veia do pescoço. “O sangue jorrou” […] Uns desciam e iam bater também […] os corpos estavam estirados no chão. A multidão olhando. Quando um dava sinal de vida, levava mais chutes e pedradas. […] Um senhor surgiu com dois litros de álcool.. Espalhou o líquido sobre os corpos dos rapazes. Jogou um palito de fósforo. Caiu apagado. Um menino de uns 14 anos riscou outro fósforo. Deu certo. As labaredas ergueram três fogueiras humanas. […] Mas os três rapazes continuavam vivo. Um deles se levantou, o corpo em chamas. Correu 20 metros. Tirou o calção. Depois a camisa. Tentou agarrar-se à janela de um carro que passava. A senhora que o dirigia fechou o vidro, assustada. O rapaz cambaleava. Estava nu. O adolescente tombou numa calçada. A multidão correu para lá. A cada sinal de vida, um chute, uma pedrada. O rapaz gemeu. A multidão parou para escutar. Ele pediu água. Ofereceram-lhe água sanitária. A multidão gritou, como num estádio de futebol. Justiça fora feita. (Marcelo Auler. Sangue dos Inocentes. Veja, 14.07.1993)
Que dizer de uma sociedade assim tomada pela violência? Como resistir à chacina da Candelária na madrugada de sexta-feira passada (23.07.1993) quando o braço armado da polícia que nos protegeria torna-se ela própria a assassina de meninos de rua? Que valeu para eles serem alfabetizados, leitores e autores de textos, quando a autoria da própria vida lhe sé sonegada?
Sobreviventes, façamos de nossos mortos nossos heróis! Porque sobrevivemos, apesar de tudo. E é por isso que nos temem aqueles que sempre se beneficiaram da violência, no passado e no presente. Não nos deixemos enganar pelos discursos com explicações já formuladas, que culpabilizam indivíduos em supostos inquéritos judiciais, pois a violência está nas ruas, ela foi sendo construída por aqueles que se beneficiaram e se beneficiam da miséria e fome de muitos.
Professores, leitores e autores na formação de outros leitores e autores, articulemos ao cotidiano de nosso trabalho a construção de uma compreensão de nós mesmos e de nossa sociedade, forjando os caminhos de uma mudança, porque, como ensina Paulo Freire, a tarefa do ensinante
É uma tarefa que requer de quem com ela se compromete um gosto especial de querer b em não só aos outros mas ao próp0rio processo que ela implica. É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos que insistem mil vezes antes de uma desistência. É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar. […] É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blamente que estudamos, aprendemos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-lo, com vantagens materiais. (Paulo Freire, 1993)
Se a hora de ser feliz ainda não é agora, agora é a hora de ousarmos construir sonhos, enuncia-los, concretizando-os nos riscos das pequenas ações para que a hora de ser feliz seja num breve agora.
Nota
Este texto foi escrito para a conferência proferida no 9º. COLE. Trata-se aqui de uma colagem de notícias e de comentários, entrelaçados com poemas. Pretendia a um só tempo dar um panorama da crise e trazer as reflexões dos poetas que sempre estão a desvendar o mundo que habitamos. Lembro que iniciamos esta conferência com um minuto de silêncio pelas vítimas do linchamento de 03.07.1993. Vivíamos então sob os começos da ditadura do pensamento único, o neoliberalismo que FHC traz ao governo de Itamar Franco quando ministro da fazenda e que aprofunda a partir de sua eleição em 1993. No mesmo mês, e um pouco mais tarde (23.07.1993) ocorre a Chacina da Candelária em que policiais assassinaram 8 crianças e jovens que dormiam nas escadarias da igreja, no centro do Rio de Janeiro. Parece que o linchamento prenunciou o crime absurdo da Candelária. Este texto é também consequência do ambiente em que estávamos vivendo de mudanças que vieram a aprofundar a abismal desigualdade social.
Bibliografia
Andrade, Carlos Drummond de. “Mãos dadas” in. Barata, Manoel Sarmento. Canto melhor. Uma perspectiva da poesia brasielria. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1969.
Auler, Marcelo. “Sangue dos inocentes”. Revista Veja, 14.07.1993
Brecht, Bertold. Poemas e canções. Seleção, tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1966.
Canetti, Elias. A língua absolvida: história de uma juventude. São Paulo : Cia. das Letras, 1987.
Capinan, José Carlos. “Inquisitorial” in. Barata, M. S. (op.cit.)
Dantas, Francisco J. C. Coivara da memória. São Paulo : Estação Liberdade, 1991.
Franciscato, Carlos. “Corrupção: punição de PC começa pelo crime menor”. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 11.07.1993.
Freire, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo : Editora Olho d’Água, 1993.
Osakabe, Haquira. “Ensino da gramática e ensino da literatura. A propósito do texto de Lígia Chiappini Moraes Leite. Linha d’Água, Revista da APLL, São Paulo, 1988.
Schwarz, Roberto. “Nacional por subtração”. In. Que horas são? São Paulo : Cia das Letras, 1987.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Triste constatar que, de lá para cá, mais de meio milhão de jovens foram mortos vítimas das mais diversas formas de violência.
Texto que evoca uma triste e persistente realidade…
Abraços!
Querido Paulinho, é muito, muito triste constatar isso! E mais uma vez ter que levantar a cabeça contra matanças e golpes e ditaduras (e a gora a pior delas, a do judiciário que chafurda cada vez mais na lama(.