Este é o último livro do grande medievalista Le Goff (ele faleceu em 2013 e este seu livro foi publicado em 2014 pelas Editions du Seuil). Ao mesmo tempo, há neste ensaio duas teses: uma sobre a periodização na história de que o autor acaba nos fornecendo uma história e sua tese de uma Longa Idade Média de que o Renascimento não seria senão um subperíodo.
Comecemos com algumas informações sobre a questão da periodização: a sua resposta a pergunta-título do livro é afirmativa. Para dominar o tempo, é preciso dividi-lo em períodos que valem para civilizações determinadas – de modo que aqui já vemos que ele considera que se uma mundialização vier a acontecer, ela ainda não se deu: das duas etapas necessárias somente a comunicação e a relação de regiões e culturas se iniciou, mas ainda não se cumpriu a segunda etapa, aquela da absorção, da fusão, para se considerar que temos já um novo período da história, aquele que seria da mundialização.
Segundo o autor, os calendários resolvem as questões do domínio de tempo no cotidiano, do tempo curto, do ciclo do ano. Mas compreender o tempo precisa-se de períodos mais longos. A primeira periodização vem de Daniel (Século VI a.C.) no Antigo Testamento: o tempo dos quatro “reinos sucessivos, cujo conjunto constituirá o tempo completo do mundo”, ao final dos quais virá com as nuvens do céu um Filho de homem aquém o Ancião dará o Império, e seu império será eterno, não passará nem será destruído.
Santo Agostinho propôs também uma periodização em A cidade de Deus: a) de Adão a Noé; 2) de Noé a Abrãao; 3) de Abraão a Davi; 4) de Davi ao cativeiro da Babilônia; 5) do cativeiro da Babilônia ao nascimento de Jesus; 6) do nascimento de Jesus até o final dos tempos.
Há uma periodização de longo tempo, a que todos estamos habituados e que foi proposta por Denis, o Pequeno: um corte fundamental de antes e depois da Encarnação. As nossas siglas a.C. e d.C. representam estes dois grandes períodos.
O autor ainda se refere a periodizações feitas por Jacopo de Varazze (Legenda Áurea) que divide o tempo segundo dois princípios: o “sanctoral” e o “temporal”. A sanctoral se baseia na vida de 153 santos (supostamente o número igual ao dos peixes da pesca milagrosa do Novo Testamento) e o temporal é organizado pela liturgia e reflete as relações entre Deus e o Homem. A segunda periodização surpreendente é proposta por Voltaire com base no desenvolvimento das artes e a grandeza do espírito humano: 1) o da Grécia Antiga, de Filipe, Alexandre, Péricles, Demóstenes, Aristóteles, Platão, etc. 2) o de César e de Augusto; 3) o que se seguiu à tomada de Constantinopla e por 4) o século de Luís XIV que “talvez seja dos quatro aquele que mais se aproxima da perfeição”.
Depois desta retomada histórica, o autor passa a discutir “o nascimento da Renascimento” que como período histórico aparece tardiamente, na obra de Jules Michelet e seus cursos no Collège de France (iniciados em 1840), “definido como uma passagem ao mundo moderno”. Petrarca já havia se referido, no século XIV, a um novo período, pois para ele ao glorioso tempo greco-romano, segue-se a partir do século IV um período de barbárie e trevas e que era preciso retornar aos antigos, daí renascimento.
Inicia-se então o segundo tema e a segunda tese do livro. São retomados os fatos que dariam razão para pensar que em torno dos séculos XIV e XV teria havido uma mudança fundamental do mundo ocidental: o desenvolvimento da navegação que teria levado às descobertas das Américas; o desenvolvimento das artes, particularmente em Florença que se torna, neste sentido, a “capital do renascimento”; os humanistas e sua produção literária e científica; a vida social com festas: para além das festas religiosas com suas procissões, surgem as festas mundanas com as festas senhoriais no campo, com os saraus, com os círculos dos nobres etc. O autor mostra que todos os fatos apontados como a grande passagem para um novo período da história são na verdade continuidades da Idade Média. Por isso sua proposta de uma Longa Idade Média que conheceu inúmeros “renascimentos”, tomando cada um deles como um subperíodo, como o renascimento carolíngio e o Renascimento que considera como o último subperíodo da Idade Média.
Há um dado que Le Goff não considera, e que pode ser central na discussão: Ptolomeu e Copérnico. Esta mudança de compreensão da posição da Terra que deixa de ser o centro é fundamental porque toda a narrativa de um Deus que a criou passa a ser posta em questão: por que a colocou em posição periférica?
Le Goff situará o começo da modernidade no Século XVIII, toma como seu marco a Revolução Francesa no campo político e o surgimento do capitalismo que alterará efetivamente as relações entre os homens. Surgem então na política as Repúblicas e a cidadania: surge com o capitalismo nova relação de trabalho e a produção em série; no campo continuará a produção agrícola, que com maior atraso chegarão bem mais tarde à modernidade.
Para um leitor leigo, o livro é muito interessante. Mas a segunda tese, polêmica, acaba perdendo força quando o próprio autor tem que reconhecer o Renascimento como um subperíodo da sua longa Idade Média. Que diferença efetivamente pode ser apresentada para distinguir um “período” de um “subperíodo”? Se se trata de uma revolução, uma mudança nos costumes, nas relações de poder e nas relações econômicas, é inegável que isto ocorreu nos séculos XIV/XV… Ora, uma passagem de um período a outro na História não pode ser visto como se fosse cada um deles uma camada independente, diferente, como se estivéssemos fazendo uma arqueologia, mas sim pensada como genealogia, de modo que sempre haverá continuidades… como há continuidades da Idade Média nos porões das torturas das ditaduras modernas…
Talvez um pensamento franco-centrado leve a ver na Revolução Francesa como mais fundamental do que houve com a mudança de compreensão do sistema de mundo, as descobertas e as mudanças que as riquezas dos novos continentes carrearam para a Europa e particularmente para países nela periféricos: Espanha e Portugal.
Assim como se pode pensar o Renascimento como subperíodo da Idade Média, também se poderia propor uma periodização em que a partir do século XVIII se inicia um novo subperíodo da Idade Moderna. Por que não?
Referência. Jacques Le Goff. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo : Editora da Unesp, 2014 (o original é de 2014).
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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