Ensinar gramática ou não ensinar gramática? – eis um dilema que, aparentemente, e só aparentemente, surgiu nos últimos anos. Esquecemos que este é um problema antigo e que sua persistência mostra muito mais que um simples certo ou errado.
Nesse debate, optar por um sim ou por um não é expor-se, por revelar mais do que uma concepção sobre a língua (ou a linguagem). Escolher um lado ou outro é também se filiar a deferentes concepções dos modos de pensar a vida social e as relações entre os sujeitos e de ponderar o peso da pressão do passado sobre o futuro.
Até meados da Modernidade, viveu-se uma estrita separação entre uma língua supostamente fixa e imutável para a religião e a ciência e outros idiomas geridos na vida pública das feiras e das praças. Nesse tempo, o acesso à cultura exigia o aprendizado do latim. E para aprender o latim o caminho implicava conhecer sua gramática e seu vocabulário.
Aprender a língua que não se fala tem sua via crucis na gramática e no dicionário. Mata-se a língua para dominá-la em seu esqueleto: domínio paradoxal, porque, posto em movimento o saber adquirido por meio do uso da língua, ressuscita-se a diversidade. Mesmo o latim das ciências e da Igreja não se manteve uniforme ao longo do período histórico de alguns séculos em que foi a língua privilegiada e dominante.
Na experiência histórica de assimilar uma língua que não se fala, aprendeu-se um caminho para aprender: o estudo da gramática. Quando as línguas que se falam – as línguas maternas – tornam-se objeto de estudo, o modelo didático adotado é o do ensino do latim.
Mas por que surgiu a necessidade de ensinar um idioma para aqueles que já o falam como língua materna? Certamente porque se considera que essas pessoas o falam de um modo que não corresponde à imagem que os outros têm sobre como esse idioma é ou deveria ser. Mas cruza seu caminho a diversidade e reaparece o mito da unidade, agora no âmbito de uma mesma língua. Unidade que seria produto não do uso da língua, e sim do seu estudo, da sua descrição e da definição de suas normas do “bem dizer e escrever”.
Pode-se defender que esta unidade responde à necessária comunicação entre os membros de uma mesma comunidade. Nesse sentido, seria preciso exercer sobre os falantes certa pressão para a estabilização das formas da língua. No entanto, a vitalidade da língua expressa-se no fato de que seu uso implica mudança. É esse movimento contraente entre estabilidade e instabilidade que torna a língua o que ela é: uma atividade com que organizamos nossas próprias experiências, sempre únicas e irrepetíveis. Entre a necessária padronização e a partilha há uma divisão que institui o certo e o errado em termos de língua. Desliza-se do padrão para a norma. O padrão se fixa, se imobiliza, como se sua vocação fosse a esterilização da vitalidade da língua.
A origem do dilema
É nesse contexto e com essa história que o dilema “ensinar ou não ensinar gramática” aparece e se mantém, sempre a interrogar o que fazemos no ensino de língua materna. Em um sentido, ensinar gramática é ensinar as normas, na vã ilusão de que todos se adaptem a um só modo de dizer e de que o padrão não se altere no tempo e no espaço. Trata-se de pressionar o futuro com o padrão construído no passado, imaginando-o superior aos novos padrões que o tempo fará surgir.
Os novos guardiões da língua e da sua pureza equivocam-se num deslize que vai da padronização instável ao purismo linguístico. Quando um padrão é predicado como “certo”, como “correto”, já não se está falando da padronização que os falantes constroem para suas partilhas, mas da imposição imobilizadora do certo/errado construída nas relações de poder.
Reconheça-se, aqui, a força da escrita. Pelo fato de haver uma norma ortográfica – único lugar na língua em que há possibilidade de legislar, submetendo todos a uma mesma convenção – extrai-se a existência de “lei” para toda e qualquer forma da língua. Aprender ortografia é meramente aprender uma convenção: não é compreender uma língua. E muito menos ainda é saber escrever.
Até aqui, restringimos a discussão à gramática normativa, porque é a representação que se faz da função do ensino de língua materna: a de que lhe cabe produzir a correção no falar e no escrever. Quando se defende o ensino de gramática, imagina-se que disso resultarão estudantes com um desempenho linguístico dentro das normas eleitas como aquelas que devem ser o correto.
Apesar desta crença ser tão difundida entre nós, sabemos que a proficiência em língua resulta mais do convívio com o padrão – na leitura, na escuta, na produção – do que do conhecimento de normas. E entenda-se: o padrão é mutável e nem sempre é desejável, e por isso quando se fala no ensino da língua padrão, não se está definindo um específico, fixo, estabilizado. Ao contrário, pensar o padrão de uma língua é pensar sua vitalidade e movimento.
Teoria de descrição
Se o ensino da gramática conseguisse desvencilhar-se desse ranço normativista, restaria ainda alguma função para o ensino da gramática? Trata-se, agora, de pensar a gramática como uma teoria de descrição (e raramente de explicação) do funcionamento da língua.
É inegável o valor da teoria para compreender os fenômenos, e qualquer um deles pode ser reduzido a objeto de estudos. Uma teoria constrói modelos, faz abstrações, deixa resíduos. Se entendermos a gramática como uma teoria, com suas falhas e suas vantagens, o seu ensino teria o mesmo sentido que tem o ensino da teoria física do cosmo, ou das teorias sociológicas que tentam descrever e explicar o funcionamento da sociedade.
Mas deve haver um cuidado enorme para não deslizar da descrição para a prescrição. Enquanto as ciências físicas e exatas apresentam suas descrições e explicações e fazem concluir que o mundo “é assim e não de outra forma”, as ciências sociais podem cair num prescritivismo atroz.
É o que acontece com os conhecimentos gramaticais: a descrição de uma estrutura linguística de certo momento, por exemplo, de que uma oração normalmente se compõe de sujeito e predicado – extrai-se que toda oração deve ter sujeito e predicado. Ora, sabemos que hoje a estrutura da frase, no uso corrente, mesmo jornalístico, já não obedece à estrutura sujeito/predicado, mas tópico/comentário. O tópico aponta para o conhecido, expõe o assunto, o foco de que se falará algo no comentário. De qualquer forma, para aqueles que defendem um purismo gramatical, exigindo que cada frase tenha seu sujeito e seu predicado, deixo a questão: qual o sujeito na oração “Chega de fazer exercícios”?
Consideremos apenas alguns exemplos de boa intenção no ensino de gramática descritiva. Ensina-se a classificar palavras ou orações de um período, e pretende-se justificar este ensino com a necessidade que têm os estudantes de aprender a classificar. O essencial do raciocínio classificatório, no entanto, é a aprendizagem da construção de critérios que sirvam como base para a classificação. Aprender a definição de uma classe e depois procurar exemplares da mesma é um exercício mecânico e normalmente de difícil resolução quando o critério a partir do qual as classes foram obtidas não é estudado.
As gramáticas escolares, todas inspiradas na gramática tradicional, vão muito pouco além das classificações. Estudam funções sintáticas, sem que efetivamente o processo de construção sintática seja focalizado, de modo que do estudo das funções resulta novamente uma classificação “funcional” dos componentes de uma oração ou período. Quando vai além, este ensino infelizmente cai na normatização.
Todos os raciocínios que poderiam ser desenvolvidos no ensino gramatical poderiam também ser desenvolvidos no ensino de outras disciplinas científicas, e com maior proveito para a capacidade de observação, abstração e generalização. Assim, o ensino de gramática na escola pode ser uma perda de tempo lastimável.
Em seu lugar, há muito para refletir sobre a linguagem e sobre o funcionamento da língua portuguesa, de modo a desenvolver a competência linguística dos já falantes da língua, permitindo-lhes um convívio salutar com os mais variados discursos e textos e com a observação dos recursos expressivos neles empregados.
Muito mais do que descrever, trata-se de usar os recursos expressivos. Muito mais do que classificar, trata-se de perceber relações de semelhança e diferença. Nesse sentido, o que teoricamente se chamam de “atividades epilinguísticas” (aquelas que exploram o conhecimento linguístico intuitivo dos estudante, por meio da reflexão e da manipulação dos recursos expressivos) são mais produtivas, até mesmo para o desenvolvimento de um purismo linguístico. Apenas para ficarmos no terreno extremamente produtivo do cotejo das diferentes formas de dizer alguma coisa a alguém, e das seleções entre estas variações que necessariamente as condições da situação impõem, pense-se por exemplo nas inúmeras formas de dizer” em educação, importa pouco chegar ao que já foi, porque seu compromisso é trabalhar para se chegar ao que sempre está por vir”.
Nota
Este texto curto resultou das inúmeras provocações sobre o que fazer com a gramática na sala de aula, da sua necessidade, da sua conveniência. As provocações eram uma resposta às propostas que defendia de “análise linguística” dos textos dos alunos como ensino das diferentes formas de uso dos recursos expressivos na língua, sem que houvesse necessidade de um conhecimento metalinguístico resultante de uma teoria de descrição da língua. Escrito para publicação numa revista que pretendia circular entre professores de língua portuguesa, não apresenta novidades em relação a pontos de vista que sempre defendi. Publicado na seção de “Polêmica”, em Discutindo Língua Portuguesa. Ano 1, número 3, 2006. São Paulo : Escala Editorial, p. 28-33. Na edição da revista, há chamada para o assunto e janelas em cor verde com impressão em branco: uma delas é parte de um texto meu sobre a linguagem e os mitos bíblicos, e outra janela com um texto de Paulo Bearzoti Filho sobre o alfabetismo funcional, além das ilustrações.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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