Bom-dia a todos. Antes de mais nada, parabenizo a Comissão de Educação e Cultura pela realização deste seminário e agradeço ao Deputado Ariosto Holanda o material com que nos brindou para estudarmos e ao INEDD o convite para ocupar esta posição um tanto ambígua de observador de uma área que não é a minha. A minha área é Letras, é literatura, é linguagem, e estar em um seminário sobre formação para o trabalho é um pouco surpreendente, mas também me dá o direito de falar externamente e observar mais de longe.
Nesta observação, muito rapidamente gostaria de retomar as três teses principais do Prof. Huisinga e a tese que entendi como principal da exposição do Dr. Ricardo Henriques, como também de tecer algumas considerações sobre esse tema, levantando de novo as questões, talvez quase como um debatedor.
Concordo realmente que os sistemas de produção e de reprodução crescem em temporalidades distintas.
Qual a grande novidade para nós em relação ao sistema de produção no mundo contemporâneo e as exigências que se estão fazendo aos mecanismos de reprodução?
Parece que duas coisas aconteceram no sistema de produção capitalista tal como estamos vivendo hoje. Não dá para escondermos isso, se quisermos pensar com certa seriedade qualquer formação para o trabalho.
O sistema capitalista de produção se quer libertado de qualquer prejuízo e risco. Portanto, não quer atalhos, sob hipótese alguma porque atalho pode produzir risco. Nesse sentido, liberou-se a mão-de-obra pela tecnologia. E, quanto àquelas coisas que as máquinas ainda não são capazes de fazer, tenta-se liberar o tempo todo de toda e qualquer relação de trabalho por meio da ideia de prestação de serviços. Quer dizer, toda relação de trabalho envolvida na produção efetiva, e que é necessária para a produção, hoje não passa de um serviço executado na corporação por uma outra empresa, de tal ordem que o setor de produção, o setor do fazer na sociedade contemporânea encontrou uma ética que não tem futuro. É uma ética preocupada só e unicamente com o hoje, aliada a uma preocupação extrema com a lucratividade, a realidade única em que tantos vivem.
É, portanto, impossível formar, pelo sistema de reprodução, sujeitos capazes de trabalhar nesse sistema de produção, seja qual for a escola, seja qual for a educação que possamos oferecer aos jovens.
A pergunta do Deputado Ariosto Holanda é fundamental: que solução apontar para milhões de jovens que estão for ada escola e fora desse sistema? O que oferece o sistema em que estão?
Se a sociedade perdeu o controle sobre a juventude, então há um paradoxo. Ao mesmo tempo em que a tese do Prof. Richard Huisinga, a da perda do controle da juventude se expõe, a tese principal defendida pelo Prof. Ricardo Henriques mostra, ao contrário, que o medo da perda desse controle produz na nossa sociedade a intolerância. E essa intolerância vai aliar-se à intolerância das diferenças, na medicalização, na criminalização da juventude e na invisibilidade dos sujeitos da periferia no sistema escolar e no sistema produtivo. Uma invisibilidade de tal ordem que, digamos, dá até para pensar se hoje ainda existe função econômica nesse sistema de produção a que no passado nos referíamos a categoria de “exército de reserva” de mão de obra. Talvez, o excluído hoje já não seja mais sequer exército de reserva, mas um descartado para o sistema. Mas ocorre que, nesse lugar do descarte social, que é o lugar da desigualdade, está-se produzindo uma heterogeneidade.
O Prof. Ricardo Henriques chama a atenção para a heterogeneidade, a diferença, e ainda mostrando a intolerância com a diferença. Vejam que uma sociedade como a nossa, intolerante com a diferença, mostra-se anestesiada diante da desigualdade. A desigualdade social nos anestesia! Estamos o tempo todo dizendo que o mercado é cada vez mais seletivo, e que, portanto, queremos soluções para um mercado de trabalho cada vez mais seletivo. Ora, se ele está cada vez mais seletivo, não há solução. A questão recai sobre os modos de construção da desigualdade social. É o sistema de produção que é problemático!
Talvez a nossa sociedade ocidental tenha transformado aquilo que sempre nos dignifica e que também dignificamos, que é o trabalho humano, para fazer referência a uma frase do Exmo. Sr. Presidente da Câmara dos Deputados. Se o homem dignifica o trabalho, talvez nossa sociedade tenha transformado o trabalho não mais em “trabalho”, mas em tarefa, em mera execução de ações. E enquanto há somente execução de ações [previstas] estamos condenados a esta espécie de produção em série, para dar conta do fato de que a população cada vez aumenta mais. Como esta produção em série já é executada pelas máquinas, isto nos torna a nós, seres humanos, desnecessários à produção. Talvez nós nos tenhamos acostumados a considerar somente o fazer e as práticas. E quando não há mais práticas, mas apenas tarefas? Aquelas práticas, que implicam aprender que remete ao conhecimento, à área da cognição, e envolvem o ontem, não o hoje. Como a realidade é outra, digamos, abstraída aquela realidade vivida nos moldes do fazer, da prática, restam apenas tarefas que não demandam o aprendiz, mas apenas o autômato.
A terceira ponta deste triângulo – as primeiras foram o controle da juventude através do fazer e do ensino do fazer e a intolerância à heterogeneidade, sendo esta a sede e fonte do conhecimento – estaria no campo do projetar ou do sonhar, do imaginar futuros. Estamos na área da estética, da ficção que produz memória do futuro, e portanto, fora do lugar da realidade vivida, única e repetitiva do fazer, tão pouco estamos na realidade abstraída do conhecimento científico: é a realidade como projeto que efetivamente se preocupa com o amanhã.
Talvez tenhamos que inverter isso um pouco. Sempre consideramos as relações com o fazer. Se produzo conhecimento, aprendo. Aliás, aprender para fazer é a ideia da formação. Então, talvez tenhamos que colocar no ápice desse nosso triângulo não mais o fazer, mas talvez o projetar e o sonhar. Uma das incompetências levantadas pelo Prof. Richard Huisinga é a incapacidade do sistema educacional de projetar utopias, ou seja, o lugar onde efetivamente devemos nos sentar para refletir, porque, quem sabe, o que esteja faltando à nossa sociedade e, consequente, para nossos jovens, é um conjunto de utopias que não sejam mais utopias modernas de homogeneização [todos uniformes] nem utopias que tinham o trabalho como tarefa [a produção capitalista em série], mas outra utopia, uma que podemos criar, que é uma utopia das possibilidades de investimento nos potenciais, repetindo uma expressão do Prof. Huisinga e não um investimento nas faltas.
Temos excessivamente pensado em investimento nas faltas e pouco no social, nas potencialidades do homem. Talvez isso nos leve a pensar, como cientistas, que tenhamos que levar mais a sério a ideia de atalhos, ou a ideia de inéditos viáveis de Paulo Freire. Eu traduzo e compreendo a noção de atalhos, trazida pelo Deputado Ariosto Holanda, como um lugar social fundamental nessa relação. Quer dizer, tal como estamos nesse sistema de produção e nesses mecanismos de reprodução, não há formação para um trabalho possível, porque nesta sociedade não há trabalho, mas apenas tarefas. Portanto, o mundo do trabalho se transformou num mundo de tarefas. E ao mundo de tarefas, o homem não é chamado. Nossa parte mais ‘autômata’ é chamada. E para recuperar ou para corrigir isso, talvez tenhamos de reorganizar nossas relações entre o fazer, o conhecer e o projetar, ou entre a ética, a estética e a cognição.
Muito obrigado.
Nota
- Este texto é transcrição de minha participação em Seminário da Comissão de Educação e Cultura Câmara de Deputados, realizada em 31 de maio de 2007. Minha participação se deu graças ao fato de ser então professor visitante da Universitat Siegen, no Programa Internacional de Doutorado em Educação – INEDD. Foi o coordenador deste programa que me convidou para o Seminário. Foi a primeira e única vez em que estive na Câmara – Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. Durante os governos do meu partido, jamais fui chamado a qualquer atividade em Brasília – e penso que poderia ter colaborado com alguma coisa da minha experiência de formação continuada de professores. Devo esta ida ao centro do poder político ao fato de ser professor de um programa na Alemanha! Meu papel seria o de ‘observador’ das exposições, fazendo a partir delas uma exposição própria para abrir o debate. Como o leitor notará, ponho em questão a própria possibilidade de uma formação para o mundo do trabalho porque deste restaram apenas resquícios numa sociedade de produção capitalista: tudo virou tarefa e mercadoria. A fala foi transcrita e publicada pela Comissão de Educação e Cultura, em livro sob o título Perspectivas e propostas na formação para o mundo do trabalho. Brasília : Câmara dos Deputados; Edições Câmara, 2008, p. 50-53. Fiz aqui pequenos reparos em relação à publicação, complementando passagens para torna-las compreensíveis fora das entonações próprias da oralidade.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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