O filósofo, nascido na Coreia (Seul), onde se formou em Metalurgia, tornou-se estrangeiro vivendo na Alemanha, onde atualmente é professor de Filosofia na Universidade das Artes de Berlim.
Trata-se de um livro extremamente denso, com uma análise arrasadora da sociedade contemporânea dirigida pelo produtivismo neoliberal. Não sobra pedra sobre pedra, e os temas mais candentes da vida contemporânea são visitados a partir da perspectiva geral da fabricação do “idêntico” e a expulsão da “alteridade” e da “singularidade”. A “expulsão do outro” pela globalização do idêntico acaba por produzir terrores e medos: o terror do idêntico que leva ao fastio, ao tédio, ao amorfo, ao blasé que gerará a depressão de tal magnitude que vivemos numa sociedade de deprimidos; o medo, por seu turno, não mais remete ao estrangeiro, ao outro a cuja violência se pode responder, mas é internalizado como medo de perder sua presença no consumo, sua capacidade de produzir sempre convocada pelas metas de produtividade das empresas ou dos sistemas avaliativos, tratando-se, pois, de um medo que não gera coragem, mas fracasso. O medo de fracassar, de não dar conta, de não produzir suficientemente. E mesmo o medo de não ser o idêntico diverso do outro pela aparência, pelas roupas, pelas grifes.
As referências mais constantes de Byung-Chul Han serão Kant (a questão da do estrangeiro e da hospitalidade), Heidegger (O mesmo conjuga o diferente numa união originária. O idêntico, em contrapartida, dispersa na unidade insípida do que só é uno por ser uniforme), Adorno (sua dialética da negatividade); Nietzsche, Baudrillard, Sartre, Elias Canetti e mesmo Marx… é de tirar o fôlego. No entanto, é mais interessante ainda a presença da literatura nas análises que faz, trazendo-nos Handke, Paul Celan, Orwell, Kafka!
Para o filósofo, a alteridade, “o outro como sedução, o outro como eros, o outro como desejo, o outro como inferno, o outro como dor estão a desaparecer.” Se o outro é a um só tempo uma possível violência e uma necessidade para que o mesmo se afirme no seu emparelhamento com o diferente, a ausência do outro torna presente o idêntico, que diferentemente da mesmidade, não se define em relação com o outro, mas eternamente consigo mesmo. Para ele “o terror do idêntico atinge hoje todas as áreas vitais. Viajamos por toda a parte sem ter experiência alguma. Ficamos ao corrente de tudo sem adquirir com isso conhecimento algum. Buscamos ansiosamente vivências e estímulos com os quais, todavia, cada um continua sempre idêntico a si mesmo. Acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Os meios sociais representam um grau zero do social.”
Em sua análise, o imperativo neoliberal do rendimento – todo o esforço busca uma renda, uma obtenção (de objetos, de imagens, de símbolos), em outras palavras, a produtividade como apanágio da vida – destruiu a contiguidade com a diferença em benefício da xenofobia, a uma sociedade do medo, com sua contraface, o ódio a tudo que não corresponde à repetição do idêntico. Até mesmo a “autenticidade” fomentada pelo neoliberalismo deixou de ser um valor para si, ou o que nos faz singulares, para se tornar meramente um território da comparabilidade com os restantes. Ora, a singularidade é incomparável, é um atopos, isto é, não se deixa comparar [por exemplo, no amor o ser amado não emerge para o amante como diferente das restantes, mas como singularidade avassaladora em que ele mergulha não para ocupar o lugar deste seu outro, mas para completar a si próprio pela proximidade deste outro, para obter a estabilidade instável constitutiva de si]. A autenticidade é obtida por comparação, não é lugar do singular, mas espaço das diferenças consumíveis, heterotópicas: “os indivíduos exprimem a sua autenticidade sobretudo através do consumo”, em que impera Narciso [O sujeito narcísico não percebe o mundo a não ser sob a forma de matizes de si mesmo] e não Eros [Só o eros está em condições de libertar o eu da depressão, do ficar narcisicamente enredodo em si mesmo. Deste ponto de vista, o outro é uma fórmula redentora. Só o eros que me arranca de mim mesmo e me arrebata no outro, conduzindo-me a ele, pode vencer a depressão].
Numa tal sociedade, a sexualidade se torna uma prestação de serviços, torna-se maquinal, exclui a ludicidade ou, em resumo, “o imperativo neoliberal de rendimento, de atrativos e de boa condição física acaba por reduzir o corpo a um objeto funcional que é preciso otimizar”. Deste ponto de vista, o “eu” faz-se empresário de si mesmo, “produz-se, representa-se e oferece-se como mercadoria. A autenticidade é um argumento de venda.”
Como se pode notar, a posição do filósofo em defesa de uma alteridade mantida enquanto tal para que o próprio, o singular possa existir, para que os acontecimentos tenham vez, leva-o à crítica arrasadora do que o neoliberalismo, o terror e poder do global vêm produzindo nas relações sociais. Hoje, fabrica-se o Gosto [todos devem gostar de e tudo o que se lhes oferece deve agradar], tudo deve trazer positividade [o valor da negatividade, do que é estrangeiro, do que fala outra língua, do que tem outra voz deve ser afastado para dar lugar a repetição do idêntico, do que não frustra e do que não exige o pensamento, que permite o acesso ao completamente outro pela interrogação de seus sentidos], nada deve alterar o funcionamento da máquina produtiva.
No entanto, e contrariamente ao martelar constante dos servidores do pensamento hegemônico, sejam eles jornalistas, comentaristas ou economistas,
Alexander Rüstow, que forjou o conceito de “neoliberalismo”, observou que, quando a sociedade se vincula unicamente à lei mercantil neoliberal, se denumaniza cada vez mais, o que faz com que as convulsões sociais cresçam. Por isso, assinala que o neoliberalismo terá de ser completado por uma “política vital” que crie solidariedade e civismo. Sem esta retificação do neoliberalismo da qual se deveria encarregar a “política vital”, terá lugar o aparecimento de massas inseguras, agindo movidas pelo medo e deixando-se captar facilmente por forças nacionalistas étnicas.
Como o neoliberalismo exige uma ótica exclusiva, tudo sendo visto pelo mesmo prisma do rendimento e da produtividade, ele exclui as pessoas indesejadas. Se o panóptico servia no passado para disciplinar os corpos, hoje esta ótica exclusiva, única, este “apótico” se encarrega de manter a segurança do sistema. Segurança particularmente necessária para uma sociedade que constrói a desigualdade abissal e o medo de cada um dos incluídos de cair para fora dos limites, tornar-se também ele um “excluído”.
Numa sociedade de pensamento único, de ótica única e exclusiva, bane-se o pensamento. Afinal
O pensamento “ama” o “abismo”. Traz consigo, inerente uma “coragem serena para enfrentar um medo essencial “[Heidegger]. Quando este medo falta, o idêntico permanece. O pensamento põe-se à mercê da “voz silenciosa” que o “acorda com os horrores do abismo”.
Uma distinção que o filósofo estabelece me parece bastante interessante para compreender nosso mundo virtual. Nas redes, há conexões, não relações. Enquanto as conexões representam apenas pontos de passagem que nada alteram no que lhe chega, devolvendo para o próximo nó o idêntico recebido, as relações exigem uma parada, uma análise, uma construção de uma compreensão. Assim, atrás do écran não há um corpo, porque a “ordem digital provoca uma descorporalização crescente do mundo”, apenas um ponto. Mesmo a contínua postagem de selfies para dar direito à cidadania digital para o corpo e para o indivíduo, todo self está na ordem do narcísico: apresenta-se a mercadoria em que cada um se transformou.
Isto me lembra um fato escolar: uma professora de crianças (8 a 10 anos) querendo aproveitar as “redes sociais” cria um grupo no whatsapp com seus alunos. Acontece que muitos deles não tem celulares, e usam o celular dos pais (em geral da mãe). Um menino de dez anos diz estar apaixonado por uma sua colega. Ela lhe pede uma prova de seu amor. Que faz o menino? Faz uma self de si próprio, nu frontal e encaminha para sua desejada namorada. E é a mãe que abre a mensagem. Vai à escola, reclama com a direção que adverte a professora. Esta, por seu turno, transfere a admoestação para seus alunos na forma de “bronca geral e irrestrita”, mas como a turma reclama porque nem sabia porque estava levando bronca. A professora, no auge do paroxismo, simplesmente transmite para todo o grupo a foto do menino para que saibam porque “não dá para confiar em vocês”. A história acabará com a professora respondendo a processo administrativo.
Mas o que interessa do acontecimento é precisamente o que levou um menino de 10 anos a oferecer uma imagem de seu próprio corpo como mercadoria de sedução para a desejada namorada? É da mesma ordem o que hoje se vive, no Brasil, nas campanhas eleitorais pela televisão: inúmeras inserções ao longo do dia louvando o candidato e seus feitos. A política se tornou “marketing”, a venda de uma mercadoria, o candidato, e não mais o espaço da discussão de diferentes propostas. Na prática, nenhuma propaganda responde à propagando do outro, porque o outro é dado como inexistente quando se faz o esforço de vender uma mercadoria. Nenhum anúncio de mercadoria cita o anúncio da mercadoria concorrente, simplesmente diz de si (e claro ao dizer, remete a um discurso conhecido e propagandístico do outro, mas com ele não dialoga, seu projeto é silenciá-lo).
Esta análise das redes sociais, do mundo digital, faz perceber que suas potencialidades inovadoras, enquanto tecnologia, ao serem apropriadas por uma sociedade conduzida por um pensamento que reduz tudo à produção e à eficácia, destoem-se aquilo que poderia ser o espaço do encontro com o outro para produzir um espaço do idêntico, da bolha a que cada um pertence e por onde circula.
Há muito, muito mais neste ensaio curto mas incisivo. Trago mais uma passagem, porque ela apresenta uma perspectiva de análise importante para compreendermos como uma sociedade de classes produz o efeito de sentido de que não mais há exploração, não mais há qualquer contraposição entre uma e outra classe, não mais existe alienação do trabalho pela des-identificação com o produto:
Devido à alienação na situação de trabalho, não é possível que o trabalhador se realize. O seu trabalho é uma constante desrealização de si mesmo.
Vivemos numa época pós-marxista. No regime neoliberal, a exploração já não se produz como alienação e desrealização de si mesmo, mas como liberdade, como autorrealização e auto-otimização. Aqui já não existe o outro enquanto explorador que me força a trabalhar e me aliena de mim mesmo. Sou eu que, antes, me exploro a mim mesmo voluntariamente, acreditando estar a realizar-me. Tal é a lógica perversa do neoliberalismo. E tal é também a primeira fase da euforia do processo burnout ou síndrome do esgotamento profissional. Precipito-me, eufórico, no trabalho até acabar por soçobraçar. Mato-me a realizar-me. Mato-me a otimizar-me. Por trás da miragem da liberdade esconde-se a dominação neoliberal.
Esta perspectiva de uma exploração e maximização de resultados através do desejo livre do próprio trabalhador é facilmente contatável nos ambientes por que circulam gerentes e supervisores na prestação de serviços, incluindo aí a venda de mercadorias. No meio universitário, a submissão se percebe quando cada instituição ou cada programa de formação incorpora como seus e nas suas exigências o que lhe ditam os órgãos de avaliação e fomento: produzir tantos artigos, publicá-los em revistas com um nível X de qualidade aferida por estes mesmos órgãos, etc. etc.
Não saberia aquilatar o valor desta afirmação do filósofo quanto a sua aplicabilidade no chão da fábrica. Na produção de mercadorias físicas… Sabemos que o taylorismo foi suplantado, aí, pelo toyotismo, onde equipes de trabalho são constituídas e que rivalizam com outras equipes para alcançar um máximo de produtividade. Ou seja, numa dedicação e esforço que livremente traz o trabalhador para sua equipe sair vitoriosa e cada um poder autorealizar-se e autoproclamar-se ciente e consciente do que produz! Neste sentido, a mercadoria de hoje contém mais do que a mais-valia: contém a alegria voluntária da produtividade a que se entrega cada um em particular, em benefício aparente da sua equipe, mas efetivamente em benefício de uma exploração de outra ordem, de um outro patrão que se esconde na forma das “ações” negociadas nas bolsas de valores. No valor de mercado da “minha” empresa”, da “minha” companhia agrega-se esta “liberdade” do trabalhador.
Referência: Byung-Chul Han. A expulsão do outro. Scoiedade, percepção e comunicação hoje. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa : Relógio d’Água Editores, 2018.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Nossa! Que caro. E não há edição brasileira? Que a propriedade privada nos desculpe, mas o negócio é tirar cópia!