Em muitos dos textos que escrevo, costumo fazer referência ao fato de que o cotidiano escolar poderia ser muito melhor explorado se sua dinamicidade institucional não fosse tomada apenas como uma preparação para a vida, mas sim, se ali se tornasse uma arena para a compreensão de importantes mudanças sociais ocorridas ao longo do século XX e que, ironicamente, orientam as ações para a denominada Escola do Século XXI (Tal expressão faz alusão ao pacto pelo movimento Educação para Todos, estabelecido a partir de duas conferências mundiais, convocadas pela Organização das Nações Unidas, realizadas em Jomtien/1990 e Dakar/2000).
É por essa razão que hoje pretendo sistematizar um pouco do que penso sobre essa possibilidade de escola como a própria experiência, sua possibilidade ética e estética.
Ao pensar em mudanças sociais, podemos mencionar que a mídia atingiu um desenvolvimento gigantesco que promoveu mudanças em nossa relação com a informação, e o que anteriormente era reservado para alguns e registrado especialmente em livros, agora pode ser acessado em diferentes lugares e é extraordinariamente abundante. Essa realidade desestabilizou, por exemplo, a função que a escola tinha de transmitir informações e valores, visto que agora isso é também realizado pela mídia e, muitas vezes, de forma mais eficaz. Diante disso, cabe nos perguntarmos que modificações deveriam ser introduzidas na escola, tendo em vista essa sociedade em mudança. Seria a mera incorporação das tecnologias de informação associada ao aumento da carga horária escolar, o desmembramento minucioso de conteúdos ou a especificação de sua dosagem?
Outra mudança de caráter mais profundo a se destacar é que a democracia se tornou, em alguma medida, uma forma desejável de governo e, em decorrência disso, vimos erigir a demanda pelo respeito aos direitos humanos e às liberdades básicas para todos, tais como a liberdade de expressão, de associação, de deslocamento, de crenças e religião. Mas escolas, que começaram a ser estabelecidas há cerca de cinco mil anos, especificamente dedicadas a transmitir às novas gerações o conhecimento anteriormente acumulado, foi uma invenção que ocorreu em sociedades como a egípcia, a mesopotâmica e a grega, consideradas de tipo escravo e, portanto, longe da democracia que se delineia atualmente. Só no decorrer do século XVII, iniciaram-se mudanças no sentido de estender a educação a todos, em sociedades muito diferentes nas quais se começa a falar sobre os direitos humanos e os direitos universais, que serão formulados explicitamente nas revoluções francesa e americana.
As mudanças vivenciadas na educação já assimilaram tantas características do funcionamento social que chegamos ao prolongamento da escolaridade como uma característica do nosso tempo: a escolaridade obrigatória significa permanecer nas escolas por mais horas e por mais anos, iniciando-se ainda o quanto antes, na Educação Infantil, anteriormente chamado período pré-escolar.
Mas quando penso, por exemplo, em uma educação democrática, acredito que esta deveria estar necessariamente relacionada a certos conteúdos e, sobretudo, a um modo de funcionamento das instituições escolares, porque a democracia não é um conjunto de conhecimentos, mas é antes de tudo uma prática. Muitas vezes, os conteúdos relacionados ao funcionamento das formas políticas, aparecem somente nas disciplinas referentes às ciências sociais, mas isso é insuficiente! Além disso, o modo como são desenvolvidos parece inadequado para a efetiva participação social. A participação em uma sociedade democrática como um membro responsável requer mudanças e renovações na organização da escola, bem como na mudança de papéis.
A escola, instituição social em que o estudante está inserido e ali permanece por horas, tem todas as características de outras instituições sociais e apresenta os mesmos conflitos semelhantes aos que nelas existem. Por que não começar a analisar o funcionamento da própria escola, refletir sobre o que acontece nela e os gêneros discursivos que ali circulam? Se na escola existem fenômenos semelhantes aos que existem nas instituições políticas, por que não estabelecer uma série de normas operacionais, construção de parâmetros para a tomada de decisões ou de arbitragem entre o corpo escolar?
Sem dúvida, quando esses problemas são transferidos para instâncias mais amplas da sociedade, eles são mais difíceis de entender. Por esta razão, é comum que muitos, dentro ou fora da escola, não compreendam a divisão de poderes necessária e simplifique a mobilização de recursos ao estabelecer suas opções e análises. Mas quando os problemas estão relacionados à própria experiência, e surgem como próprios do funcionamento escolar, é possível ver essas questões de maneira diferente e mais realista e, partindo dessa experiência, terá muito mais sentido ensinar sobre o funcionamento político e sobre a história, para ver como as formas de governo e de dominação mudam ou se rendem.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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