Como são habitantes dos campos do sul da América Latina, particularmente nos pampas, fico imaginando que viagem fizeram aqueles poucos quero-queros que habitam a praia de Barequeçaba. Teriam sido trazidos por alguém? Teriam voado para cá e ficaram perdidos numa praia? Algum navio os trouxe e os largou por aqui?
Não vou pesquisar a origem desses nossos quero-queros. Antigamente eram 5 ou 6 que via passeando pela praia. Foram diminuindo: só vejo dois ou três.
Ontem, no entanto, dois deles gritavam toda vez que eu me aproximava da ponta esquerda da praia: pareciam irritados e querendo atacar a todos os banhistas. E como sempre vinham os “kero-kero-kero-kero” além de um chiado estridente, o grito de guerra dos quero-queros.
Vivi nos pampas, então sei: fizeram ninho por aqui. E temendo um ataque, gritam e pedem ‘briga’ para salvarem os ovos e a prole.
Mal sabem eles que anunciam aos predadores que aqui há alimento. Como temos muitos gambás por aqui – seus predadores estão desaparecendo, particularmente a jaguatirica – os quero-queros com seus rompantes dão a pista!
Pois hoje já não estavam por lá. Certamente já perderam o ninho. Anunciaram o produto, os predadores chegaram. Os rompantes anunciam o que se esconde.
O casal já não estava na praia nesta manhã, mas nesta tarde encontro um deles em seu caminhar elegante no meu trajeto de casa à padaria. Vejo-o andando de um lado para outro, em passos rápidos, olhar desconfiado. E pousado num muro, um gavião – ave que raramente vejo por aqui. Espanto-a querendo a continuidade da vida do quero-quero.
É que os quero-queros, como gentes, sempre estão querendo, querendo. E tanto querem que acreditam em seus gritos. As gentes querem mitos, salvadores e descobrem que encontraram e apostaram em predadores. As aves querem se reproduzir sem serem incomodadas: aqui, não conseguem.
É que o mundo está preenchido: os predadores já tomaram conta, e agem como gambás: bebem o sangue de suas vítimas, embebedam-se e acreditam que são eles próprios “mitos” capazes de esconder suas garras de predadores.
Pedrar e depredar, irracionalidade da natureza a que a racionalidade humana se subjuga? Neste século, parece que sim. Como escreveu Imre Kertész, no século XX aperfeiçoamos tudo:
“O soldado tornou-se assassino profissional, a política virou criminalidade, o capital virou uma grande indústria equipada de incineradores de cadáveres para exterminar seres humanos, a lei virou a regra do jogo sujo, a liberdade mundial virou a prisão dos povos, o anti-semitismo virou Auschwitz, o patriotismo virou genocídio. Nossa época é a época da verdade, quanto a isso não há dúvida. No entanto, todos continuam mentindo, pela pura força do hábito, mas ninguém se deixa enganar mais; quando se ouve o grito: amor – todos sabem que chegou a hora do assassínio; ao ouvir: lei – é a hora do furto, do roubo”.
Acrescento: Marielle para o bem, para o amor: assassinada. Flávio Bolsonaro para o mal: fez leis, fará leis.
Somente os elegantes quero-queros ainda não compreenderam o novo espírito, o novo ciclo, a divisão entre o cor-de-rosa e o azul das pregações da moralidade no templo e na imoralidade no tempo.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Gostei muito deste seu texto .Alias , gosto sempre de muitos deles mas este me tocou .
Obrigado.
Ele me tocou! Gosto muito desse seu tipo de texto!
Gostei muito do texto, mas fiquei triste, porque sou Marielle. Estive ao lado dela no Congresso de mulheres em Florianópolis. Quanta tristeza! A esperança está morrendo.
Adorei!
Como vc escreve bem!!! Adoro ler seus textos.
À Corinta, Maci, Lúcia Izabel e Myriam, meu muito obrigado pelo incentivo… Com a Lúcia Izabel partilho as mesmas tristezas e desesperanças.