Este excelente romance da portuguesa Lídia Jorge desenvolve-se em dois planos distintos, tendo por pano de fundo as revoltas pela independência de Moçambique (ou a chamada “guerra colonial portuguesa”) e a movimentação da tropa na repressão aos rebeldes.
No primeiro plano, uma novela completa, intitulada Os gafanhotos, focaliza o casamento do Alferes Luís Alex com Evita, recém-chegada de Portugal. A festa se dá no hotel Stella Maris, na cidade da Beira. A descrição do ambiente, dos convidados (todos oficiais, com a presença até do Comandante da Região) e principalmente das convidadas, seus cabelos – insistentemente ao longo de todo o romance há uma repetição do fato de que as mulheres dos alferes passam a ferro seus cabelos, alisam-nos com cuidado para depois penteá-los soltos, elevados, etc…
Tudo corre bem na recepção. Chama a atenção de todas o capitão Forza Leal, carregado de medalhas por atos de bravura na Guiné, em que foi ferido e cuja grande cicatriz faz questão de deixar à vista, usando camisas quase transparentes. Também todos o invejam, e por dois motivos: ter tido a chance de se destacar como herói e ter uma mulher – a que todos chamam de Helena de Troia – de uma beleza estupenda. Se elas todas a invejam por ele, eles todos o invejam por ela e pelas medalhas.
A certa altura, o capitão dá ao noivo as chaves do seu carro e os noivos se retiram para um passeio com a capota aberta, andando pela Beira, pelo litoral para depois voltarem ao hotel e irem para seu apartamento (casualmente, trata-se de um apartamento que é separado do vizinho apenas por um tabique, de modo que os sons ultrapassam as paredes, o que leva o casal a fazerem amor deitados no chão da ampla casa de banho).
Mas são acordados por gritos e por uma movimentação inusual. Vestem-se parcamente e vão para o hall onde ficam sabendo que todos estão no terraço observando os dumper carregando cadáveres que apareceram na praia. E em grande número. Aconteceu que os ‘blacks’, como são tratados pelos militares em função das assessorias que lhes prestam os brancos da África do Sul, estavam tomando álcool metílico que supostamente tinham roubado de um carregamento [bem mais tarde se saberá que é uma sabotagem, pois o álcool vinha engarrafado em garrafas com rótulos de vinho!]. Aqui aparecem claramente as manifestações de racismo enquanto se comentam as mortes. “São os senas e os chaganes esfaqueando-se. Que se esfaqueiem. São menos uns quantos que não vão ter a tentação de fazer aqui o que os macondes estão a fazer em Mueda. Felizmente que se odeiam mais uns aos outros do que a nós mesmo. Ah! Ah!…”. “As praias vão ficar coalhadas deles quando chegar a noite. Vocês vão ver. Os blacks! Vê-se mesmo que são ideias de blacks!”. Ou melhor ainda:
“África Austral? Que África Austral? Moçambique está para a África Austral como a Península Ibérica está para a Europa – estão ambas como a bainha está para as calças”.
E a culpa? E a culpa? – perguntou o major também já setnado, mostrando aqueles risonhos dentes sobre a mesa.
Deles, da qualidade dos blacks que nos calharam em sorte – disse o pára-quedista lesionado. Se tivéssemos tido uns blacks fortes, tesos, aguerridos, nós, os colonizadores, teríamos saído da nossa fraqueza. Eles é que são os culpados, e se lhes parecemos fortes é porque eles mesmos são extremamente fracos. Só temos de os recriminar…
No dia seguinte, os convidados – todos hóspedes do hotel – se reencontram no salão agora com suas marcas de uma festa que teria acabado. Mas mesmo sem a orquestra, os pares voltam a dançar… e ficam dançando até escurecer. Lâmpadas acesas, de repente elas começam a ficar verdes: uma chuva de gafanhotos toma conta de tudo… Voltam todos ao terraço para acompanhar o espetáculo, enquanto os nativos acendem fogueiras em que assam gafanhotos com que, segundo os militares, se deliciam…
De repente, aparece um jornalista que quer ver também do terraço o que está acontecendo, porque os corpos continuam a aparecer na praia junto com esta inusitada chuva de gafanhotos. Mas os militares não gostam da presença do estranho, afinal alguém da área das comunicações civis… “A informação, venha ela de que lado vier, sempre incomoda, porque sempre constitui um perigo de se ficar com uma parte do nosso corpo invisível à vista. Ninguém gosta que a informação chegue, sobretudo quando se está à vontade.”
Como a presença do jornalista incomoda, o capitão chama subordinados para retirá-lo do ambiente, mas é o noivo que se oferece. E o capitão lhe passa uma pistola. O noivo empurra o jornalista para fora, somem na mata e de repente ouve-se um tiro. O major avisa ao capitão que seu subordinado havia ultrapassado os limites e que ele deveria registrar o ocorrido. Todos esperam o retorno do noivo… ele não vem. E descem a sua procura, encontrando-o morto com um tiro na testa. Suicídio de tanta felicidade… acontece.
Fim da novela. Na página seguinte, começa o romance que se desenvolverá por nove capítulos de rememorações, trinta anos depois dos fatos narrados na novela. Eva Lopo, antes Evita, é quem narra em primeira pessoa, às vezes interrompidas por outra voz, da “autora” da novela, a escritora a quem fala agora Eva Lopo. Com suas recordações, comparando com a “ficção” da novela precedente, ao mesmo tempo se conforma a narrativa novelística em todos os detalhes dos acontecimentos, de modo a produzir o efeito de que agora, sendo memória, fala-se o que efetivamente aconteceu, até porque frequentemente Eva Lopo se dirige à autora avaliando a novela, sua não veridicidade, mas como ela tornou os fatos mais dramáticos e que nada precisa ser mudado.
Assim, ficamos sabendo ao acompanhar as memórias de Eva Lopo, naquele tempo Evita, que três dias depois do casamento, a tropa foi para Mueda para debelar a revolta dos Macondes. Ficam em campo de batalha por três longos meses. Antes de viajar, o noivo pedira a Evita que lhe prometesse, se o amasse tanto, que não saísse de casa durante sua ausência, coisa que Evita não aceitou. Mas Helena de Troia aceitou isso mesmo que o Capitão lhe pediu… Durante os longos tempos de três meses, as coisas fluíram no Stella Maris e na cidade da Beira.
Helena constantemente ligava para Evita e lhe pedia que fosse à casa. Lá conversavam e nestas conversas, fica sabendo que Helena prometeu ao capitão ficar reclusa – e foi percebendo que seu “noivo” agia como cópia do capitão que estimava. Noutra visita foi apresentada ao acervo de fotos da guerra que o capitão guardava, pois eram em si uma bomba se chegassem ao conhecimento público: cenas de torturas, cenas em que o noivo não só executa um nativo, mas coloca a cabeça num pau e sobe ao alto do casebre para tentar mostra-lo a outros rebeldes. Descobre então Eva Lopo com quem efetivamente se casou: o Alferes Luís Alex não era o estudante de matemática por quem se apaixonou que vivia então às voltas de encontrar uma fórmula para resolver equações de qualquer grau, o que lhe valeu o apelido de Galois, mas um imitador do seu capitão. “Pobres daqueles que tendo vocação para imitarem alguém, nunca encontraram o modelo na vida”.
Numa das ocasiões de confidências, Helena lhe conta que tivera um verdadeiro amor, um despachante. Que o Capitão ficara sabendo. E como homem de honra, decidiu que um dos dois estava sobrando. E pela sorte da roleta russa, um deveria morrer. Morreu o despachante, e desde então Helena de Troia sofre a perda e apanha do marido.
Também descobre que as mortes por consumo de álcool metílico era causadas por um crime: o engarrafamento em garrafas com rótulo de vinho. Vai à sede do jornal fazer a denúncia. Nada é publicado pelo jornalista. Mas eles passam a se encontrar. O jornalista lhe mostra o que é efetivamente a cidade da Beira, o que é a África. E quando Evita depois de saber com que se casara, ficam amantes.
No retorno do Alferes, Evita tenta lhe contar que tinha outra relação, mas Luís Alex somente dorme em sobressaltos. Enquanto tem seu primeiro descanso, o general em conferência de imprensa diz que a operação foi um sucesso, mas Luís Alex revela a verdade: um fracasso total. Os macondes continuariam a sua revolta por muito tempo e outras tribos ainda haveriam de aderir no movimento pela independência, que o general queria que fosse, no modelo da África do Sul, uma independência de brancos, com ele de presidente…
A cena final: enfim Luís Alex sabe que fora traído, e copiando seu capitão, propõe a roleta russa. Neste jogo de morte, dos dois primeiros cliques não saiu qualquer tiro. Na segunda rodada, o jornalista de borra de medo, mas passa mais uma vez. O tiro coube ao Alferes…
Evita volta para Portugal… e trinta anos depois rememora toda história num diálogo com a autora do livro, a mesma que fora a criadora de Os gafanhotos com que se inicia o livro.
Trata-se, realmente, de um livro que merece leitura. Ao mesmo tempo faz uma crítica à guerra colonial, e na operação específica que aparece neste romance, o exército de ocupação, segundo o general em sua conferência de imprensa, tinha-se atingido os objetivos: “atingido os santuários fundamentais do inimigo, capturado armas, munições, víveres, desfeito cultura por incêndio e bombardeamento, afugentado vinte mil macondes espavoridos com a invasão – não era um êxito? O general não tropeçava numa única sílaba de tal modo que a verdade se impunha e a realidade borbotava. Aliás, era comovente dizer. Fazíamos o nosso Vietnam sozinhos, com o Mundo contra nós, quando defendíamos a Civilização Ocidental. Mas quando os americanos perdessem a guerra do Vietnam – porque eles haveriam de perder – Portugal teria há muito vencido a guerra das suas províncias por determinação dos altos comandos.”
E faz uma crítica às relações machistas existentes na tropa, ao racismo presente entre os brancos portugueses, a existência de uma divisão de interesses, alguns dos brancos defendendo uma independência “branca” que, a exemplo da África do Sul, manteria a ordem e o apartheid.
Sobretudo, neste pano de fundo que é a guerra colonial se sobressai, na vida privada de um casal recém formado, a mudança provocada no ‘noivo’ que de estudante de matemática torna-se um quase monstruoso torturador e um imitador nos mínimos detalhes de seu capitão da tropa. A tropa a que fora convocado se incrustou na alma de Luís Alex, não como um metal preciso, mas como um material corrosivo que destruiu a personalidade daquele que Evita amara.
Referência: Lídia Jorge. A costa dos murmúrios. Lisboa : Publicações Dom Quixote, 1988.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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