O ensino de língua portuguesa no Brasil tem passado por constantes períodos de reflexão, dentre os quais, sobre as questões em torno das mudanças de paradigma no ensino de gramática, da crise na escrita escolar, dos baixos índices obtidos em exames de leitura, além de propostas de reformulação da prática docente. Nos últimos tempos, temos assistido a intensas campanhas de (des)governo que têm por objetivo a implantação de uma Base Nacional Comum Curricular e de um Novo Ensino Médio. E o que percebo é o mesmo: na educação, de tempos em tempos, há uma necessidade de aparentar mudanças estruturais e teórico-metodológicas, e isso torna comum presumir que é chegada uma nova era à escola e que tudo o que se fazia precisa mudar! Por diferentes motivações, a sala de aula e o ensino parecem servir como objetos inertes para subsidiar alterações políticas, educacionais e científicas.
No caso, do ensino de língua portuguesa, além dos estudos que se centram nas concepções de linguagem e suas implicações no ensino, na leitura e na produção de textos, assistimos até mesmo ao aprimoramento da abordagem normativa de ensino dos gêneros, que ora são tratados como gêneros textuais, ora discursivos. E a fórmula parece proliferar: primeiro, para estudar o gênero X é preciso saber o que é, para que serve, onde usar; depois, conhece sua estrutura e visualiza alguns modelos; por fim, realiza-se a produção de algo nos mesmos moldes.
Parece-me que, na maioria desses casos, os estudos e as perspectivas de trabalho deixam às margens aquilo que instaura o cotidiano da escola: os sujeitos-participantes constituídos na/pela linguagem, as relações de poder que se estabelecem entre eles por meio do discurso, os interesses que permeiam suas relações, a apropriação institucionalizada do saber. Não há, necessariamente, uma preocupação em construir práticas de aprendizagem em torno de temas e de projetos de vida local, ou que seja marcado pela pluralidade metodológica, e que não separe o sujeito do que ele estuda.
Por tudo isso, penso que é necessário trilhar um caminho em que o cotidiano possa ser apreendido como uma via para fugir às respostas comumente dadas às perguntas e aos problemas na escola. E esse caminho não se trilha por características uniformes e constantes, mas, por aquilo que ele tem de inusitado e não-repetível e que pode contribuir para se pensar as práticas escolares a partir de seu interior e de sua dinamicidade.
Mas, qual seria essa lógica do cotidiano?
Aprendi, com Michel de Certeau, que “o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. […] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. […] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada”. (CERTEAU, 1994, p. 31).
Na acepção de Michel de Certeau, o cotidiano é atravessado por práticas construídas a partir da coexistência de ações institucionalizadas e não-institucionalizadas; entretanto, é por vezes interpretado apenas como afazeres assistemáticos e sem relevância alguma para o conhecimento científico. O cotidiano, para este autor, possibilita que as práticas dos sujeitos revelem suas astúcias diante das imposições oficiais, criando, assim, trajetórias ziguezagueantes ao olho do poder. Essa compreensão de que as ações cotidianas não podem passar despercebidas tem sido muito eficaz para uma pesquisa que envolva a esfera escolar. Em suas palavras, “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 1994, p. 38), e cria, assim, condições de possibilidade do exercício de microliberdades no interior de uma estrutura.
Espero, nas próximas publicações, continuar apresentando o que tenho elaborado sobre as possibilidades de se apreender a escola e sua complexidade a partir dessa perspectiva do cotidiano, isto é, inventando o possível.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. (Tradução de Ephraim Ferreira Alves). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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