Devemos às Edições SESC este belíssimo livro, com inúmeras fotografias artísticas de bibliotecas do mundo, numa história da arquitetura de bibliotecas escrita por James W. P. Campbell com fotografias de Will Pryce. É impressionante passear por este mundo em que ficam disponíveis outros mundos, aqueles contidos nos livros.
Numa introdução em que os autores levantam alguns dos problemas gerais enfrentados nos projetos e na construção dos prédios de bibliotecas – que vão desde a forma dos livros, por exemplo, o conjunto de completo das escrituras budistas impressas em madeira que estão na Triptaka Koreana (de 1251) ou os rolos de papiro das bibliotecas da antiguidade ou os manuscritos da Idade Média realizados por copistas em conventos, até às questões que envolvem segurança (o problema do fogo e da humidade) e espaços de leitura nos diferentes momentos da história do acesso aos acervos até chegar aos depósitos de livros em função da expansão dos acervos – são rapidamente apresentados, pois estes fatores terão grande importância nas construções de bibliotecas ao longo do tempo: da Antiguidade aos tempos contemporâneos da internet e dos armazenamentos virtuais. Por isso dão ao livro o subtítulo de “uma história mundial”. Cada tempo e cada projeto e cada arquiteto acabam dando respostas a estas questões que envolvem inclusive os espaços de trânsito que para nós, leitores, passam desapercebidos. (Legenda: Biblioteca de Celso. 155 d.C., Éfeso, Turquia. Trata-se de uma reconstrução da fachada feita no Séc. XX.)
As fotos ilustram as explicações sobre diferentes prédios – os autores visitaram 80 bibliotecas pelo mundo e analisam grande parte deles. Não se trata de um livro sobre os acervos existentes, sobre a importância destes acervos ou sobre sua utilização na construção do conhecimento acumulado nestes prédios. Trata-se do estudo das questões arquitetônicas que envolvem tanto a construção em si e seus materiais, quanto as formas de guarda e acesso aos livros, o que implica as mobílias e as salas de leitura.
Da Antiguidade, ou “dos começos perdidos”, ressalta o fato de que já então havia grandes bibliotecas, ainda que seus acervos fossem, para os termos de hoje, diminutos. E o material era guardado em “nichos”, como mostram aqueles ainda visíveis na Biblioteca de Celso (Éfeso, atualmente na Turquia). Das ruínas existentes, pouco se consegue obter como informação arquitetônica absolutamente confiável. Há inúmeras histórias, como o presente de uma quantidade suspeita de “livros” dados por Marco Antônio à Cleópatra. Para além do reconstruído prédio da Biblioteca de Celso (abaixo), talvez os restos mais interessantes em ruínas são da biblioteca nas termas de Trajano, em Roma.
Entre os anos 600 e 1500 d.C., foram as bibliotecas dos conventos tanto orientais quanto ocidentais que chamaram atenção dos autores. Lembremos que por esta época tínhamos “livros” em pergaminho, em papiro (cuja durabilidade exigia um armazenamento cuidadoso e ainda assim sucessivas cópias para irem substituindo aquelas que se decomponham), em madeira e ainda persistiam algumas “impressões” em argila. Ao contrário do que dá a entender o romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, as bibliotecas dos conventos não tinham grande acervo, até pelo que isso significaria de custo para as abadias e conventos. NO filme e no livro, a biblioteca da “ficção” se baseou na planta da biblioteca de St. Gallen (Suíça) que efetivamente nunca chegou a ser construída como um todo. Quando a visitei, a comparação entre a planta exposta e o prédio em que ntam os autores.
Desde período chamam atenção as bibliotecas orientais, particularmente a Triptaka Koreana (1251), o Salão de Sutras do Templo de Mii-Dera (abaixo), em que a solução de acesso é notável: uma estante octogonal fixada sobre um eixo que permitia movê-la. A própria estante tem a forma de uma “casa” com teto – artisticamente trabalhado – de modo que o visitante entra no prédio que cobre a estante e tem a sensação de que há um prédio dentro de outro. Nada mais enganoso do que imaginar que bibliotecas são instituições ocidentais. “Bagdá tinha 36 bibliotecas, mas a mais famosa era a Casa da Sabedoria, fundada pelo Califa Al Ma’mun (813-33 d.C.), que combinava biblioteca, escola e centro de pesquisa em uma única instituição, uma espécie antepassada das universidades modernas, e acreditava-se que possuísse 1,5 milhão de livros”.
Também é preciso recordar: a técnica de impressão começou no Oriente: compunha-se em blocos
demadeira e imprimia-se em papel já em 700 d.C. e provavelmente a impressão já existia na Mesopotânia. Tecnicamente, as civilizações coreana, chinesa e japonesa eram muito mais avançadas neste aspecto do que o Ocidente medieval.
Dentre as bibliotecas europeias, são analisadas no livro a Biblioteca Malatestina (1452) em Casena, Itália, em que se introduziu o atriz, com os livros guardados na prateleira de baixo, acorrentados para evitar roubos. A foto a seguir mostra os livros acorrentados para evitar roubos:
O sistema de atriz foi copiado por inúmeras outras bibliotecas e permaneceu em uso por muito tempo. Havia também a guarda em baús e estantes abertas, precursoras das estantes de parede que são mais conhecidas no mundo de hoje. Neste período, no Ocidente, também foram construídas muitas bibliotecas junto a Catedrais.
No Séc. XVII, como a impressão se tornando cada vez mais comum, as bibliotecas tiveram que se adaptar até porque cresceram vertiginosamente os acervos. Surgem então uma forma de guarda de livros que se chamou de “baias”, isto é, estantes em fileiras, muitas com atriz para leitura. O leitor sentava-se em frente aos livros que ficavam acima, retirava-os para ler ali mesmo. Não havia sala de leitura em separado dos livros. Exemplo típico é a
O passo seguinte se aproxima muito do que conhecemos hoje, particularmente em bibliotecas particulares: o sistema de estantes de parede, de um único nível. O Salão Teológico do Mosteiro de Strahov, em Praga (1679) mostra esta passagem para o sistema de paredes. É interessante que esta passagem mantém vínculo com o sistema de baias, pois os livros guardados nas estantes das paredes que circundam as janelas formam uma ‘baia’, com bancos em que os leitores podem se sentar. A foto mostra o sistema de paredes introduzido nesta época e que perdura até hoje.
Ao longo do século XVII ao XX, foram aparecendo novas soluções com a introdução dos espaços de leitura a que se começou a atribuir grande importância. A biblioteca não era apenas um lugar de acesso para poucos, mas deveria se tornar de acesso amplo, um lugar de pesquisa, de estudos, de leitura e de encontro. Os interiores das bibliotecas passam a exibir obras de arte – há inclusive espaços de exposições. O luxo das bibliotecas representa também o poder, que do rei, do nobre ou da própria nação. Os tetos são com afrescos – talvez a mais conhecida delas é a Biblioteca de Vaticano, um longo e largo corredor em que o acervo ainda é armazenado em armários fechados de acesso restritíssimo. O visitante passa pelo acervo e se não for alertado, não percebe que está dentro da biblioteca, porque o que lhe chamará atenção será o teto, não os armários de livros. Dentre as inúmeras bibliotecas analisadas por James Campbell e Will Pryee, seleciono duas fotos das bibliotecas que conheci: a Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra e a Biblioteca de St. Gallen e de uma terceira biblioteca, para trazer um exemplo do período rococó:
Entre as bibliotecas modernas, em que já se começa a abandonar o ferro pelo aço, e em que os traços e em que os computadores passam a fazer parte das salas de leitura, talvez a mais original seja a biblioteca da Universidade Técnica de Delft, Holanda (1997), em que se ressalta a solução arquitetônica: como o projeto previa um porão e como isso se tornaria muito caro, os arquitetos construíram o piso térreo e por fora ‘produziram’ uma elevação do terreno, de modo que a entrada fica sob a terra. Um cone ao centro fecha a paisagem assim produzida, reunindo grama e prédio. As duas fotos mostram: a parte externa da biblioteca e uma visão interna, em que o sistema de paredes repete o que se começou a fazer já no início deste período: as prateleiras em níveis, com acesso por escadas e com passeios, no caso da biblioteca doa Universidade Técnica de Delft (Holanda, 1997), o piso é de vidro.
Com o advento da internet e com as formas de ‘armazenamento’ em nuvens, muitos decretaram o fim das bibliotecas. Fala-se muito nos “escritórios sem papel”. No entanto, nunca foram editados tantos livros impressos e nunca o consumo de papel foi tão grande e vem crescendo vertiginosamente. Assim, o decreto de fim do livro parece não estar chegando ao mundo real e continua uma virtualidade. Certamente as bibliotecas sofreram e continuaram a sofrer os impactos das novas tecnologias. Mas elas continuam a ser construídas e continuam a conter livros. Neste século XXI continuam a ser construídas bibliotecas e os acervos continuam a aumentar, criando problemas para a expansão das bibliotecas, particularmente aquelas que recebem os depósitos legais (isto é, a doação legal de um ou mais exemplares de cada livro impresso por toda e qualquer editora do país ou da região, conforme as respectivas legislações). No Brasil, a Biblioteca Nacional é uma biblioteca de depósito legal, e o crescimento constante dos acervos tem levado a soluções como a construção de grandes depósitos (como aquele da Biblioteca Bodleiana, Oxford. O depósito tem 262 km. de estantes!).
Arquitetonicamente, duas bibliotecas chamam atenção do leitor deste livro: A Biblioteca Nacional da China(2008) e a Biblioteca José Vasconcelos,
México (2006). A primeira impressiona pelo espaço (seus espaços de leitura podem acomodar 2.900 leitores ao mesmo tempo e junto com a antiga biblioteca, estão projetadas para atender a 12 mil pessoas por dia) e pelo seu catálogo (são mais de 1,9 milhão de itens); a segunda impressiona pela solução dada ao ‘armazenamento’ dos livros em estantes de aço penduradas no teto do prédio de 26 metros de altura, deixando todo o piso térreo como um grande salão de atendimento e leitura de 210m de comprimento por 30m de largura! Corredores e escadas permitem o acesso a todo seu acervo, mas “pegar um livro de uma das prateleiras penduradas, tão alto, com apenas um fino painel de vidro sob os pés e uma balaustrada de fios separando a queda, é uma experiência excitante e assustadora”. (Biblioteca José Vasconcelos, Cidade do México, 2006. As estantes dos livros são penduradas no teto e os corredores são com piso de vidro…)
Por fim, é preciso confessar: ler este livro dá uma vontade de ir conhecer estes monumentos arquitetônicos e estes espaços de permanência e acúmulo do conhecimento produzido pela humanidade, particularmente para uma pessoa que conheceu, dentre as bibliotecas descritas neste livro, somente a Biblioteca Nacional (Brasil), a Biblioteca Joanina (Coimbra) e a Biblioteca da Abadia de St. Gallen (Suíça). Quando viajando, visito museus, mas depois da leitura deste livro, começarei a procurar também as bibliotecas!
Referência: Campbell, James W.P.; fotografias de Will Pryce. A Biblioteca: uma história mundial. São Paulo : Edições SESC São Paulo, 2015.
* As fotos deste texto foram feitas por mim de fotos de Will Pryce.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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