A Base é o Professor?

 

Revirando alguns documentos de meus arquivos pessoais, encontrei o registro de uma campanha publicitária realizada pelo Ministério da Educação, no ano de 2009, que tinha como finalidade valorizar o papel do professor. Na primeira quinzena de outubro daquele ano, uma propaganda passou a ser veiculada com o objetivo de afirmar a importância do professor para o desenvolvimento do país. Transcrevo:

“A base de toda conquista é o professor

A fonte de sabedoria, um bom professor

Em cada descoberta, cada invenção,

Todo bom começo tem um bom professor.

No trilho de uma ferrovia,                             

No bisturi da cirurgia,

No tijolo da olaria,

No arranque do motor,

Tudo que se cria tem um bom professor.

No sonho que se realiza,

Cada nova ideia,

No que se aprende, o que se ensina,

Uma lição de vida, uma lição de amor,

Na nota de uma partitura,

No projeto de arquitetura,

Em toda a teoria,

Tudo que se inicia,

Todo bom começo tem um bom professor.”

Foi bem impactante retornar a esse material, em pleno ano 2018 e diante de todos os deslizamentos e terremotos já enfrentados. No cenário de reformas educacionais, o que geralmente acontece é que as leis são feitas, os regulamentos são elaborados, os livros didáticos são preparados, mas o que parece ser ignorado é o fato de que o professor é que tem que gerenciar tudo isso, e se ele continua desenvolvendo a mesma prática ao longo de sua vida, então dificilmente haverá mudanças que transformarão a fundo a tarefa educacional.

O professor é uma peça fundamental no funcionamento da escola, e se sua função não mudar, não será possível qualquer reforma educacional. Mas, a tendência é ocorrer uma adaptação de novas regras às mesmas práticas e, assim, as rotinas permanecem. Qual, então, seria o papel do professor nas instituições escolares? 

Em uma orquestra, o maestro age como intermediário entre o compositor e os músicos, conduz a leitura objetiva e expressiva de uma partitura a ser executada. Para isso, espera-se dele total dedicação em torno do estudo de cada obra, para que então desenvolva seu papel de conselheiro artístico e técnico de uma apresentação musical. Além disso, o maestro precisa conhecer a função de cada instrumento e fazer sugestões de interpretação com linguagem apropriada; deve apropriar-se da partitura para poder olhar os músicos enquanto rege. Mas quem de fato executa uma peça musical, valendo-se de seus conhecimentos, são os músicos e seus instrumentos.

No cenário escolar, é o professor quem faz o papel de intermediário e, de antemão, é preciso ter em mente que ele não ensina, pois a fala com rigor é apenas uma ilusão de que se está ensinando. O maestro se ocupa de organizar a execução de um trabalho que, a rigor, será realizado por cada membro da orquestra. E o que fazemos, como professores, é estabelecer as condições para que os alunos aprendam através de sua própria atividade, uma vez que o conhecimento deve ser construído pelo próprio sujeito.

A grande questão é que esse papel do professor não é concebido na mesma medida em que se pensam reformas educacionais: ele se torna o gestor de livros, gerente de atividades e aplicador de provas. Na maior parte do tempo, não possui as condições e os meios necessários para modificar suas práticas.

Não se muda a educação alterando apenas os meios e as regras. Assim como, não se realiza um recital, por melhores que sejam os instrumentos musicais, se não houver músicos capazes de produzir as melhores melodias.    

Mas, ao contrário do que se deveria, as reformas educacionais são postas abaixo e o professor parece ser o ponto menos relevante nas pretensas transformações. Exige-se que ele adote certas concepções, execute um modo de gerenciar suas classes, e que gradualmente se responsabilize por insucessos de um arranjo fracassado em sua concepção. Não há como negar, por exemplo, que a implantação da Base Nacional Comum Curricular esteja fortemente vinculada à política  de  avaliação em larga escala, e mais, que ela explicite uma disputa por noções de currículo defendidas por grupos acadêmicos com grandes interesses orçamentários.

Como já escreveu Alcântara e Stieg (2016), o que se pretende, em sucessivas políticas educacionais, é “conformar práticas, subjugar o trabalho dos professores em suas diferentes áreas a prescrições e as aprendizagens dos estudantes a uma perspectiva didático-pedagógica monológica/monofônica”.

ALCÂNTARA, R.G. e STIEG, V. “O que quer” a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil: o componente curricular língua portuguesa em questão. Revista Brasileira de Alfabetização – ABAlf. Vitória, ES. V. 1, n. 3, p. 119-141,  jan./jul. 2016.

Cristina Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.