Estava em curso.
Ela podia sentir, desde muito pequena não se enganava sobre as coisas e pessoas. Tinham exceções, mas as aceitava como se fosse preciso mesmo errar, sabia ser uma tolice pensar que se aprende com erros, às vezes sim, das vezes que não. O acerto é que era generoso, afinal o estrago da espera só se desfaria com o encontro do esperado.
Muito bom que dessa vez estivesse certa, mais do que nunca desejou estar certa.
Essa coisa de desejo é muito ruim e bom ao mesmo tempo. Lembrou-se da capa do jornal: 80 tiros. Não era possível aquilo, o rapaz lia a sessão de esportes, seu time tinha perdido algo. Gostava das pessoas que liam a parte de dentro do jornal com ele aberto permitindo que s outros lêssem as manchetes da capa.
Estava escrito que em uma abordagem militar um pai de família fora morto por ser confundido com bandido. Não sei por que lembrou que só aprenderá a contar até 80 já fazia a segunda série. A professora explicava engraçado, dizia:
-Depois do vinte é tudo igual.Vocês falam vinte e um, vinte e dois, vinte e três, daí trinta, quarenta e um, cinquenta e quatro, cinquenta e cinco, sessenta, sessenta e um, sessenta e dois, setenta, oitenta. Vocês tem que entender a lógica.
Contou mentalmente até oitenta. Como poderia ser confusão? O rapaz dono do jornal que lia, fechou e guardou dentro da mochila. Embarcou no ônibus sem querer pensar sobre a leitura, era muito triste. Na noite anterior a gata tinha gritado muito na vizinhança, e por mais que as pessoas quisessem dormir, não fizeram nada coma a gata. Era engraçado pensar nisso.
Tentou sem sucesso não pensar na família destruída. A dor, assim sozinha a palavra se apequena, se pudesse colocar cada tiro, no lugar certo, quando pessoas sofreriam? que tamanho seria essa dor? Pensou nos filhos da vítima. É estranho sem nominar, como se fosse apenas mais um preto que morre, e é não sendo apenas. A vítima. Escolhida ao acaso racista. Antes não tivessem tido filhos, constituído família. Será que essa não é a ideia por detrás de tudo isso, que não sobrem negros, que não existam negros e negras. Que os assassinatos sejam exemplos aterrorizadores, capazes de matar sonhos, esperanças, famílias, relacionamentos, respeito, tolerância.
Lembrou da Marielle. Era triste demais. Uma moça tão jovem, valente. Morrer assim assassinada. Sim, é preciso que se diga: assassinato. Pensou que deveria existir uma lei para só se usar morto quando a pessoa não tiver sido assassinada, ou exterminada. Tinha pavor de pensar que pudessem confundir tudo. A gente é morto por doença, acidente, mas quando alguém nos mata somos assassinados.
Uma vez falou sobre isso com seu colega de trabalho, ele respondeu sem pensar muito que isso que ela dizia era uma bobagem:
-Não tem nada disso. Meu vizinho bateu na mulher, mas ela não foi assassinada, ela morreu sozinha. Para mim ela foi morta pela briga.
Não continuou a conversa, achou que nunca mais falaria com esse imbecil. A vizinha fora espancada e assassinada e ele acha que ela morreu sozinha. Na hora teve vontade de gritar, mas calou e se resignou.
É assim mesmo. Muitas vezes a gente silencia. Agora passa pela mesa do rapaz e fala um oi seco sem sequer abrir a boca. Sentiu raiva de já ter pensando em algo mais com ele. Era um dos erros que tinha cometido em avaliar pessoas.
O ônibus chegou ao seu ponto. O percurso foi demorado como de costume. Desceu e caminhou amedrontada por entre as pessoas nas calçadas. Parecia temer que fosse culpada por algo, sentiu a pele queimar no rosto. Vergonha dos cabelos arrepiados. Esfregou as mãos sobre eles, querendo abaixá-los, apressou o passo. Entrou no prédio, quando abriu a porta da repartição que trabalhava, o sujeito das memórias estava de pé próximo à entrada, sorriu miúdo e junto ao bom dia perguntou-lhe sobre o caso dos 80 tiros. Respondeu a tudo com um balançar de cabeça. Tinha medo de ouvir o prolongar das opiniões rasas.
Escreveu uma mesma frase oitenta vezes na tela do computador. Imprimiu e cortou cada uma. Abandonaria cada uma pelo caminho na hora de voltar para casa. A gente morre um pouco com tanta bala. A gente morre nos amigos negros, nos filhos, nos parentes, nos conhecidos. A gente morre nossa história, nossa verdade. A frase escolhida era um chamado.
Muitos ainda adormecidos, não sentem que só uma bala mataria, as outras todas foram pra mostrar poder e silêncio. Essa vitrine só mostra um lado.
Ela sabia que já estava em curso.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Muito bonito! Delicado e forte, ao mesmo tempo. E fica uma sensação de soco no estômago!
É dolorido, muito dolorido.”Será que essa não é a ideia por detrás de tudo isso, que não sobrem negros, que não existam negros e negras”.Brasil, Moçambique.
Forte e muito contudente! Grato por suas palavras e militância!!!
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