Da liberdade ao direito à expressão: hegemonias e subalternidades (1)

          

… diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos.  (Michel de Certeau. A Invenção do Cotidiano)

  1. Introdução

Para escutar os murmúrios clandestinos e as invisibilidades, talvez seja instrutivo tentar encontrar as formas da construção barulhenta das hegemonias linguísticas que atravessam as relações entre os estados e os sujeitos políticos que os constituem, obviamente estes sujeitos distribuídos por diferentes geografias dentro de seu próprio território, já que não é dado a todos o direito de se fazerem ouvidos porque a distribuição social se sobrepõe ao pertencimento territorial.

No espaço em que se discutem direitos linguísticos, é sempre importante retornar às questões que fundam a necessidade de pensar em ‘direitos’ e de defendê-los, porque estas ações sempre apontam para a existência de alguma restrição, cerceamento, esgarçamento de relações que, supomos, deveriam se construir sobre outras bases e sob outras concepções.

A pergunta a se formular, então, seria a propósito das bases que construíram as barulhentas hegemonias que cerceiam a liberdade de cada um se exercer, em sua língua, como falante, como ouvinte, como autor ou como leitor, de formas distintas daquelas que os moldes já preveem, constringindo as diferenças para que se preencha o modelo, dentro das margens das previsibilidades estatuídas. Em outras palavras, trata-se de retomar, em outros termos, a pergunta que formulou Foucault (1996, p.8): “o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e seus discursos proliferarem indefinidamente?” Como resume Certeau(1994), “os poderes de nossas sociedades desenvolvidas dispõem de procedimentos bastante finos e firmes para vigiar todas as redes sociais: são os sistemas administrativos e ‘panópticos’ da polícia, da escola, da saúde, da seguridade social, etc.” Quais seriam, pois, os sistemas e procedimentos de vigia e punição que controlam a língua e seus usuários?

Impossível recuperar todas as indicações a respeito desta rede de controles, já visitada por inúmeras pesquisas. Aos estudos sobre os regimes de constrição internos ao funcionamento da linguagem entre os falantes, há que recordar os estudos das relações de subordinação econômica e social que mostraram como distintos momentos de desenvolvimento permitiram glotocídios e impuseram as formas linguísticas dos conquistadores (recuperemos as colonizações do passado e as colonizações do presente); os estudos históricos que mostraram como uma forma de fala se fez de prestígio e se impôs a outras formas, remetendo estas, primeiro, às margens, depois, à extinção (lembremos quantos ‘patois’ desapareceram na emergência do que chamamos hoje de ‘francês’). Línguas floresceram e morreram junto com seus impérios. A história da riqueza é também a história de nossa própria pobreza resultante das muitas perdas.

Para os objetivos desta reflexão, não podemos deixar de apontar três mitos fundadores de nossa civilização ocidental, de fundo judaico-cristão. Eles revelam que a reflexão sobre a língua nos acompanha desde nossa gênesis. Lembremos três pontos cruciais de nossas representações para aquilatar o peso da tradição em que se move a reflexão sobre a linguagem, as línguas e os direitos linguísticos.

  1. Conta a Bíblia, no livro de Gênesis, capítulo 11, versículos 1 a 9, a história da Torre de Babel. Num tempo remoto, “todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras”. Foi então que as pessoas decidiram construir “uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus”. Condenando tal obra, Deus a associa ao fato de que “todos constituem um só povo e falam uma só língua”. Decide, por isso, confundir a linguagem dos homens “para que não mais se entendam um ao outro”.
  2. Se Babel introduz as diferentes línguas, introduz também um outro conceito: o de estrangeiro, cujo sentido somente pode ser composto pelo seu inverso, aquele que é natural, aquele que pertence ao grupo. Assim, a diferença linguística diz também quem é o estrangeiro: aquele que fala diferente. É conhecido também outro episódio bíblico (Juízes, Capítulo 12, versículos 5 e 6): Galaad ocupou os vaus do Jordão, e cada vez que um fugitivo de Efraim queria passar, perguntavam-lhe: “És tu efraimita?” Ele respondia: “Não”. “Pois bem, diziam eles então, dize: Chibólet.” E ele dizia: “Sibólet”, não podendo pronunciar corretamente. Prendiam-no logo e o degolavam junto dos vaus do Jordão. Naquele dia pereceram quarenta e dois mil homens de Efraim. Há que se pronunciar adequadamente shibólet para escapar da morte e mostrar o pertencimento ao grupo. A diferença identifica.
  3. Cheguemos mais próximos ao nosso tempo. Podemos pensar sobre o mito de Pentecostes (Atos dos Apóstolos, 2, 3-5): Apareceram-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu. Ouvindo aquele ruído, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os ouvia falar na sua própria língua. Profundamente impressionados, manifestavam a sua admiração: “Não são porventura galileus todos estes que falam? Como então todos nós os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna?”

No último episódio, escapam à diferença apenas aqueles enviados em pregação: unidade de pensamento e concepção na diversidade linguística ultrapassada pela intervenção do Espírito. A comunidade cristã se faz una em várias línguas, mas por breve tempo: a língua do império também se torna a língua de Deus e as celebrações rituais católicas somente foram conhecer as línguas vulgares muito recentemente. O tempo dos ritos em latim (que parece retornar agora sob Bento XVI) já não era para construir a unidade, mas para sobrepor à diversidade apenas uma língua – aquela do poder – para nela e com ela exercer o poder.

Estes três episódios bíblicos fundam três mitos que alicerçam os fazeres linguísticos hegemônicos, produzindo a subalternidade – o que lhes escapa é marginal e marginalizado.

Babel inaugura num só gesto dois movimentos: o mito da unidade perdida e o da diferença como castigo divino. Conviver com a diferença passa a ser uma condenação, não um enriquecimento das formas de experiência e compreensão do mundo e da vida.

O processo de ocupação das terras férteis junto ao Jordão não se daria pacificamente. Os habitantes de Galaad não se identificavam apenas por estarem sob a liderança do juiz Jefté, mas também por suas formas de falar. Funda-se aqui o mito da identidade que reuniria indistintamente a todos sob uma língua sempre mesma e sem variações. Este pertencimento à língua é também pertencimento ao grupo: identidade. E a identidade funda o estrangeiro e a exclusão.

Por fim, Pentecostes inaugura o convívio com a diferença das formas sob o mito da tradutibilidade. Um só significado discursivo para o mundo e para a vida que nele se vive. Esgotam-se os sentidos num suposto único sistema de referências ântropo-cultural. A variedade da vida se explica a partir de um só discurso: o múltiplo reduz-se ao uno. Todos os sentidos não dizíveis ou intraduzíveis constituem uma teratologia que é preciso apagar ou no mínimo esconder. O sentido das diferenças de formas lingüísticas torna-se um atributo (quando não milagre divino) da beleza da unidade.

Sob o atropelo dos sentidos únicos, das identidades imutáveis, do sonho da unidade perdida e da diferença como castigo, construíram-se as restrições às línguas, às variedades intralíngua e às concepções de mundo divergentes. Atropelaram-se os direitos linguísticos para construir somente as obrigações linguísticas. Sonho irrealizado de um mundo asséptico porque único. Como é impossível apagar as diferenças linguísticas, produz-se um outro nível no qual elas desapareceriam: o nível do discurso, onde os significados se fixam, permitindo, na diversidade de línguas, a tradução de uma pela outra, garantido para todo dizer o mesmo discurso.

  1. A liberdade de expressão

Foi com a modernidade que os discursos, múltiplos desde sempre, apareceram e reivindicaram novamente o direito de existência à luz do dia(2).  Concessões à parte, como mostra a história de Galileu, o discurso científico e leigo começa a circular. Mesmo Lutero, extremamente retrógrado na rejeição às novidades, especialmente aquelas introduzidas pelo papismo(3), contribui para a abertura das interpretações da palavra bíblica e, portanto, para a circulação de novos sentidos. Luta-se pela liberdade de expressão.

A emergência do capitalismo, primeiro mercantil, depois industrial, com sua forma de produção e as relações de classe que lhes são inerentes, precisou se estabelecer sob novas bases para que um conjunto de crenças, um conjunto de representações e seus discursos tivessem vez e voz. Na prática, dificilmente discursivizada, o próprio destino e sentido de homem se altera: não mais filho de deus, o que importa agora é pensá-lo como ser produtivo e consumidor. O resto são questões de fé que não dirigem a economia capitalista. Parece que o mundo se laiciza e os discursos religiosos se tornam então subalternos, mas não inexistentes(4).

Na exploração da atividade produtiva, na acumulação do capital, na expansão do mundo conhecido anexando-se novos territórios e na fragmentação do tempo, organizando-o segundo as necessidades da produção, reduziram-se ao silêncio discursos divergentes, ora qualificados como ‘selvagens’ e ‘pagãos’, ora como ‘atrasados’ ou ‘inverídicos’. Junto com o desenvolvimento econômico, também se desenvolve uma vontade de verdade que se quer científica e laica, ainda que perdurem nas relações sociais os vínculos religiosos que amalgamam o tecido social e a construção das distâncias entre dominantes e dominados. Ciência e religião, aliadas no longo do processo de colonização dos povos – incluídos os povos rurais europeus(5) – servem como luvas para esculpir o homem ocidental contemporâneo.

Desta longa caminhada, interessa exemplificar como os sentidos de correção lingüística – os mitos da unidade e da identidade – se recuperam como procedimentos de controle dos modos de falar em defesa de uma forma gramatical autêntica. Como se sabe, somente nos fins do Século XV e na primeira metade do Século XVI as variedades lingüísticas, já escritas e associadas ao poder central dos estados ocidentais constituídos ao longo da história pós esfacelamento do Império Romano, passam a ter suas gramáticas escritas, num estudo que toma as línguas vernaculares – os vulgares – como objeto de descrição, obviamente sob os moldes das gramáticas das línguas clássicas, o grego e o latim.

É acompanhando a construção dos estados nacionais que estas línguas vão adquirindo importância e “foro de cidadania”. Associam-se, pois, a importantes feitos de definição de limites e de sua expansão pelos descobrimentos, os esforços de descrição de línguas longamente amadurecidas na história oral e também escrita.

Se os vulgares podem ser apontados como ‘revolucionários’, muito rapidamente os gramáticos e os falantes bem situados recuperaram os sentidos de correção e imposição lingüística. Já na Gramática de Antonio de Nebrija (1492) encontra-se como justificativa de existência da primeira gramática da língua espanhola – e a primeira de uma língua que não fosse o latim ou o grego – a utilidade da sistematização gramatical para a difusão da língua entre os povos “bárbaros”:

A língua sempre acompanhou a dominação e a seguiu, de           tal modo que juntas começaram, juntas cresceram, juntas floresceram e, afinal, sua queda foi comum  (Nebrija, apud Gnerre, 1985:13).

E João de Barros, cuja gramática é de 1539, assume explicitamente esta  posição em seu Diálogo em Louvor de nossa Linguagem já que para ele

A língua é […] um instrumento para a difusão da “doutrina” e dos “costumes”, mas não é somente instrumento de difusão, pois “as armas e padrões portugueses […] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram”. Quer dizer, a língua será o instrumento para perpetuar a presença portuguesa, também quando a dominação acabe. (Gnerre, op.cit., p.14)

O objetivo da recuperação destas breves passagens é salientar que sob o manto aparentemente neutro da gramática esconde-se um procedimento de unificação e exclusão. À necessária padronização que a interlocução obriga, acrescenta-se outro viés: a correção! E junto com a correção linguística vem todo o discurso hegemônico que, essencialmente, luta pela fixação dos sentidos.

É neste contexto de existência de uma forma adequada e correta de dizer – sob a qual também se esconde o dizível permitido – que a modernidade lutou pela liberdade de expressão. Esta é uma conquista a que se precisa estar sempre atento porque qualquer censura fere a todos nós que deixamos de ver circularem sentidos. No entanto, esta luta e este direito contém necessariamente uma consequência que não é explicitada: para haver liberdade de expressão há que haver meios disponíveis para se expressar. Ora, num sistema onde os meios são de propriedade privada, quando se defende a liberdade de expressão não se pode esquecer para quem esta liberdade faz sentido ou quem a pode exercer.

Aqui se instauram outras relações: são poucos os que têm acesso ao dizer, de modo que por vias transversas a própria liberdade de expressão,  submetida ao poder econômico, se torna espaço de circulação apenas dos discursos permitidos e mais uma vez as subalternidades precisam construir táticas de sobrevivência às escondidas. Nos meios de comunicação, por exemplo, o direito de resposta tem que ser conquistado por meios jurídicos.(6)

O mais comum mesmo é a imposição de discursos e de formas linguísticas. Talvez o mundo da arte tenha sido o único espaço em que se denuncia e se foge destas amarras. Por isso, recorramos à literatura para encerrar este tópico sobre a liberdade de expressão para poucos ou, mais explicitamente, liberdade de expressão para os proprietários dos meios de circulação de discursos e de seus asseclas.

O processo de desnacionalização total ou parcial dos povos, que era a tarefa principal do Arquivo do Estado, se consumava segundo a velha doutrina do “Cra-Cra” e transcorria em cinco fases principais: a primeira, a eliminação material da rebelião; a segunda, a eliminação da idéia de rebelião; a terceira, a erradicação da cultura, da arte e dos costumes; a quarta, a extinção ou mutilação da língua e a quinta, a extinção ou enfraquecimento da memória nacional.

De todas elas, a mais breve era a fase de eliminação física da rebeldia, que não consiste em mais do que a guerra, enquanto que a mais demorada era a eliminação da língua, ou a Não-língua, como era chamada para abreviar.

(…) Imediatamente depois começava o outro processo, ainda mais demorado e difícil, a eliminação da língua oral, que atravessava várias subfases. Por exemplo, a última e definitiva fase consistia em sufocar a língua em seus últimos redutos: as velhas. Estava comprovado que, de modo geral, a língua vivia mais tempo nas mulheres, sobretudo nas que haviam tido filhos. Mais tarde, quando a língua havia sido apagada da face da terra, chegava um tempo em que diminuía também o número de anciãs que, como as antigas urnas, mantinham as cinzas dos últimos despojos da língua. Elas eram anotadas em registros especiais como “velhas com língua” e submetidas à constante vigilância até sua morte. Depois disso, o processo de liquidação da língua, ou o processo da Não-língua, era tido por consumado.

(…)

Pois bem, o expediente das línguas mortas eram escassos e suas datas habitualmente muito distantes. Uma língua morta, inclusive nos tempos de maior florescimento do “Cra-Cra”, era considerada uma vitória absoluta. Mas as coisas haviam mudado muito desde então. Ainda que a doutrina da eliminação das nações tenha permanecido a mesma, muitas de suas disposições não eram aplicadas há muito tempo. Há tempos o Arquivo se conformava com vitórias de menor dimensão que, no entanto, eram consideradas importantes. A realização, inclusive apenas de partes, do processo de Não-língua era considerada um logro extraordinário. Ele se iniciava com a interrupção do desenvolvimento normal de uma língua, com o objetivo de deixá-la esquálida tal como uma criança raquítica; e prosseguia depois com sua mutilação. (…) Lentamente a língua começava a entumecer-se; a assemelhar-se à fala balbuciante. Uma língua assim era praticamente inofensiva, pois, tal como uma mulher sem matriz, perdia a capacidade de gestar relatos e lendas. Quanto muito, poderia dar, de geração em geração, algum testemunho grosseiro de existência, com tão pouca inspiração que dificilmente sobreviveria ao passar dos tempos.

(…)

Era na esfera da desnacionalização das culturas que se davam as mais ásperas polêmicas. Havia velhos conservadores que se negavam a mover uma só vírgula dos preceitos seculares. A semelhança da prática do maldizer o alfabeto de uma língua (cujas regras haviam sido estabelecidas em sombrias cerimônias de quatro séculos atrás), defendiam, por exemplo, a maldição das regras poéticas, da prosa em forma de narração, dos saltos rápidos no bailar das chaminés etc. (Kadaré, 2001)

É no campo da arte que as formas de caça não autorizada encontram guarida. E não é por acaso que justamente na arte literária é mais difícil, se não impossível, a tradução: os discursos que a arte põe em circulação não se deixam expressar por inteiro dentro do discurso hegemônico em que se garante a permanência e a imutabilidade dos sentidos e das coisas. Não é por acaso que o senso comum afirma que traduzir é trair (7). A arte tem esta potência de expressar o recôndito, o subalterno, o que se esconde, dando-lhe alma e nova substância. E por isso a tradutibilidade para um discurso do instituído se torna uma impossibilidade. Para compreender a arte, há que se deslocar para este outro discurso e, mesmo assim, cometer pequenas ou grandes traições porque não lhe podemos oferecer senão as palavras de que dispomos.

  1. Negociar sentidos: possibilidades do direito à expressão

A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas.

A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. Pode servir diretamente à prática vinculada às coisas.

“Cumpre reconhecer a simbologia não como forma não científica mas como forma heterocientífica do saber, dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão”(Aviérintsiev). (Bakhtin, 2003:399)

Se o tempo que atualmente se encerra exigiu sempre a presença deste discurso hegemônico avassalador onde tudo adquire sentido e se a liberdade de expressão não passou de uma liberdade de poucos precisamente para implantar este mesmo discurso, porque não é gratuito ter acesso aos meios de fazer circular discursos, talvez o próprio desenvolvimento das condições técnicas de vida esteja apontando para uma virada não prevista. As novas tecnologias, especialmente a Internet, estão permitindo um acesso à possibilidade de dizer, de fazer circular sentidos. Abre-se o exercício da expressão para uma grande parcela de vozes silenciadas(8).

Lastreados nas possibilidades de intercompreensão, muitos projetos de uso da Internet na aprendizagem de línguas vem mostrando que o esforço de construção conjunta de sentidos ultrapassa a aprendizagem estanque de uma língua estrangeira. Como afirma Araújo e Sá (2008):

Diríamos que a intercompeensão, quando integrada num paradigma critico-reflexivo, humanista e accional da DL (Didáctica das Línguas), mobiliza a preocupação de reintroduzir o sujeito na construção da linguagem, confrontando-o com a diversidade linguística e cultural (múltiplos códigos, linguagens, culturas e sujeitos), em contextos onde essa mesma diversidade é não simplesmente reconhecida, valorizada e apreendida, mas também reconstruída com o outro através das actividades intersubjectivas de linguagem.

Particularmente, é preciso apontar o projeto Plataforma Galanet – www.galanet.eu – em que os falantes de seis diferentes línguas românicas  (incluindo catalão e romeno), de vários continentes, se aproximam num esforço de negociação de sentidos das diferentes expressões e seus conteúdos postos em circulação por este universo de falantes de línguas maternas distintas, mas negociadores que constroem algo novo em função da possibilidade de fazer coisas imprevistas, no limiar das utopias dos próprios sujeitos que saem da interação enriquecidos nas formas de ver o mundo e sua própria língua. Obviamente, como diz a autora citada, “uma educação para a intercompreensão não é, não pode ser, ideologicamente neutra” (idem).

A encruzilhada tecnológica oferece caminhos de riscos, mas também a possibilidade do retorno ao bom aprisco! O pensamento único, o esforço de guerra, a propaganda barulhenta da impossibilidade de outras formas de viver, o hiperconsumismo e sua felicidade paradoxal(9), a força do império e a globalização de uma Novilíngua(10) de uso comum a todos, tudo isso se reúne para que a tecnologia não se torne caminho de desvios. O que se lê/ouve na grande imprensa e o que se alardeia aos quatro ventos como a verdade não estariam, de fato, desvelando um medo recôndito do novo que pode ser construído? Este martelar constante do discurso hegemônico, da economia, do ‘estamos à beira do caos’, da contenção do Estado, das demissões, da falta de alimentos e, paradoxalmente, também do espetáculo, do circo, não estariam apontando o medo de que a concentração de tudo na mão de tão poucos acabe por produzir o esgotamento do modelo de vida, caro ao discurso onde isto tudo faz sentido?

Entre o risco e o aprisco, há que apostar no risco. Pela primeira vez na história há, tecnicamente, a possibilidade de dizer e deixar à disposição dos outros um discurso, cujas profundezas são intraduzíveis, mas que se abrem como espaço de diálogo de palavras e contrapalavras(11). À tradução dos sentidos para o sentido do discurso oficial, opõe-se a negociação de sentidos, através do diálogo hoje possível tecnicamente, e do qual saem enriquecidas as culturas que entram em contato. Traduzir tudo para um mesmo sentido é empobrecer a humanidade. Negociar sentidos é enriquecer a experiência humana como um todo e a vida de cada um.

Neste sentido, os Estados multilíngues africanos, asiáticos e latino-americanos (ou seja, Estados hoje periféricos) oferecem as maiores oportunidades deste enriquecimento. Onde há múltiplas línguas, há múltiplas formas de ver o mundo. Onde há múltiplas formas de conceber a vida, há que se instaurar o diálogo dos dominados para construírem, juntos, outras perspectivas de futuro.

As práticas escolares de trabalho com a linguagem, na escola que conhecemos, têm apontado para a padronização, para a ‘conquista’ da língua única ou mesmo para a ‘correção’ das formas de falar não autorizadas porque consideradas dialetais (num sentido mais preconceituoso do que científico). Na perspectiva aqui defendida, é pelo inverso disto que precisamos lutar: há que alfabetizar na língua conhecida e falada pelos alfabetizandos; há que lutar pela escrita das histórias e culturas expressas em línguas ágrafas, mas não numa língua outra que não aquela mesma em que estas culturas se gestaram. A potência inovadora do convívio e diálogo entre diferentes línguas pode, mais uma vez, ser explorada para o enriquecimento da humanidade(12).

Estamos, sim, submetidos à linguagem ordinária e ela carrega todos os produtos dos mecanismos de constrições que tentamos apontar nas seções precedentes. Mas não estamos paralisados e identificados com o discurso de sentido único, porque é da natureza do simbólico a infinidade de sentidos, sua fluidez, sua não fixação, sua flexibilidade.

Abertos aos riscos, podemos hoje lutar pelo direito à expressão (consequência necessária da liberdade de expressão ou esta de fato não existe a não ser como privilégio) para que os sentidos da vida possam ser negociados entre as diferentes culturas num diálogo de que saem todas diferentes porque enriquecidas com as experiências das alteridades. Este é o mundo global, um mundo de diferenças, em que, enfim, os direitos linguísticos podem ser exercidos como princípio de vida.

Notas

  1. Conferência ministrada por ocasião do encerramento da 11a. Conferência da Academia Internacional de Direitos Linguísticos, realizada em Lisboa em julho de 2008. Como texto de conferência, ele ‘recolhe’ e rearticula temas de outros textos. Daí o leitor perceber repetições, retomadas, modificações, ajustes. Posteriormente, o texto foi publicado Carmen Sanches Sampaio e Carmen Lúcia Vidal Perez. Nós e a escola. Sujeitos, saberes e fazeres cotidianos. Rio de Janeiro : Rovelle, 2009, p. 37-51.
  2. Novamente, porque a liberdade de expressão, e a luta por ela, é anterior à modernidade: ela já foi reivindicada entre os filósofos gregos; ela atravessou os séculos da Idade Média às escuras e às apalpadelas. Basta lembrar, por exemplo, as iluminuras como espaços de circulação de discursos marginalizados ou a necessidade do Santo Ofício para fazer calar vozes e discursos destoantes.
  3. Para Jean Delumeau, o propósito de Lutero era “recolocar as coisas da cristandade em seu verdadeiro lugar” (p.57)
  4. Talvez valesse a pena investigar com mais cuidado fatos contemporâneos, do tardo capitalismo ou do capitalismo neoliberal. O que pode estar significando este ressurgimento potente dos diversos fundamentalismos e das inúmeras igrejas pentecostais? Seria este o indício de que uma nova ordem se está gestando?
  5. Na História do Medo no Ocidente, Delumeau vai mostrando como perduram no interior da Europa crenças, medos e relações tipicamente não modernas.
  6. É muito raro que haja contraposição de palavras com a mesma publicidade. Ainda que no mundo da reportagem-ficção, dificilmente os leitores podem ouvir dois discursos como aconteceu, na literatura de consumo recente, entre os livros O Livreiro de Cabul (de Äsne Seierstad) e Eu sou o livreiro de Cabul (de Shah Muhammad Rais)
  7. Seguramente podem ser incluídas aqui as artes plásticas: a imitação não seria também uma forma de traição?
  8. A título de exemplo, considere-se que no Brasil, um país de terceiro mundo e com grandes distâncias no acesso à riqueza (somos campeões em concentração de renda), há mais de 40 milhões de internautas! Agiganta-se, e gesta-se, um mundo de discursos que não temos a menor possibilidade de antever ou calcular quais suas consequências.
  9. Cfe Gilles Lepovetsky (2007)
  10. A expressão é de Kadaré: novilíngua é a língua que os conquistados devem dominar, que a trouxe de Orwell.
  11. Para além da experiência do projeto Galanet, são inúmeras as experiências de diálogos através da internet. A título de exemplo, veja-se também o projeto Janelas para o mundo, coordenado por Maria Benites. Cfe Benites (2006).
  12. A passagem da Idade Média para a Modernidade, que não se fez num só século, foi acompanhada por um extraordinário enriquecimento lingüístico da Europa, cuja multiplicidade acabou sendo reconhecida e oficializada no processo mesmo da construção da Modernidade.

Referências bibliográficas

ARAÚJO E SÁ, Maria Helena. É uma língua multo bella!! Intercompreensão em língua portuguesa num contexto de romanofonia”. Exposição no Simpósio “Lugares e Culturas da Língua Portuguesa”, XIV ENDIPE, Porto Alegre, abril de 2008.

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 4a. edição, 2003 (edição original de 1974).

BENITES, Maria. Janelas para o mundo. Porto Alegre : Livraria do Arquiteto, 2006.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante a versão dos Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. 62a. edição. São Paulo : Ed. “Ave Maria”, Edição Claretiana, 1988.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800. São Paulo : Cia das Letras, 1989.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo : Edições Loyola, 1996.

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

KADARÉ, Ismail. El nicho de la vergüenza. Madrid : Alianza Editorial, 2001.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo : Cia das Letras, 2007.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.