O texto de hoje é um parênteses. Um fôlego nada nostálgico que tenta recuperar a capacidade de enxergar beleza na humanidade. Não posso falar de tempo outros, quando olhar o futuro se tornou frio e solitário (sem essa de mãos dadas), então me atento à beleza de não enxergar.
É por assim dizer um mergulho no raso.
Entendendo tardiamente que percorremos os dias em fotos que escolhemos os melhores ângulos, cores, gestos que traduzem uma vida não vivida, mas eficientemente capaz de fabricar versões de nossas próprias emoções, ao tempo em que somos ignorantes de ver os que estão ao nosso lado.
É exatamente assim que produzimos o nosso passado glorioso: sobre os cadáveres exaustos de nossos antepassados, negligenciando o nosso presente e o futuro já deixará de ser importante.
Se nenhum discurso interessa mais, nada poderá acontecer de novo que não caiba na tela do smartphone, na pesquisa do google, e na decisão de nos tornarmos alheios ao que se quiser.
Transferimos para as nossas vidas a mágica de escolher o que queremos ver, o que queremos curtir, e o que desejamos que vejam e saibam de nós. Somos autores de uma narrativa sem pedra no caminho, meu caro Drummond. Embora não sejamos senhores sequer do nosso próprio tempo. Isso não parece estranho?
Se pudéssemos escolher uma imagem que traduzisse o futuro dos muitos que não terão o que comer com a aprovação da reforma da previdência, dos que voltaram ao mapa da fome e miséria, das crianças subnutridas, dos milhões de doentes que ficaram sem remédios dado o cancelamento do governo do programa de medicamentos gratuitos, das vítimas dos agrotóxicos adicionados aos produtos que com sorte e um tanto de dinheiro consumiremos, da intolerância, do machismo, do racismo, do fim da educação pública gratuita, da embaixada fast food, da justiça parcial, do assassinato sem conhecimento dos mandantes, da prisão sem provas e com delações forjadas. Que fotos seriam afinal?
Precisaríamos de imagens que não temos acesso, dos cotidianos que não nos pertencem. Pertencem aos 1% que equivalem ao patrimônio de 50% da população. Pessoas encasteladas com seus dias cheios de descanso e diversão, cheias do que há de melhor no mundo: paraísos naturais, tecnologias de ponta, e tempo.
E talvez o tempo seja dinheiro, e o dinheiro seja um deus bem maior que outros.
Ainda assim produzimos nossa própria decadência. Qual imagem pode ilustrar a cegueira escolhida, que literatura pode acalentar o coração sem compaixão, que música terá poder de fazer dançar as dores alheias?
– As mentiras não se opõem a verdade, criança! – disse o senhor Tempo.
Prestamos nossas mais sinceras homenagens a nossa incapacidade de ser reflexivo sobre a morte dos outros: As fotos de nossas alegrias? Nossas vitórias pessoais? Nosso fazer de conta que está tudo bem enquanto me esforço para não ver o outro.
É mesmo preciso se afastar para não adoecer. Então escrevo quando escrever se torna ofício de ingratidão, antes fosse possível a mim dizer coisas amenas, sem incomodar. Falar do belo e do bom, destacar exemplos que reforçam nossas faíscas homeopáticas de ver o outro.
Cabe ao parêntese guardar na narrativa o sentido que se quer dar, mas seu conteúdo quase sempre é dispensável.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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