por João Wanderley Geraldi | jan 26, 2020 | Blog
São duas as vidas que temos
uma para trazer às costas
outras pela trela.
A primeira não gostamos dela
e a outra pelo menos
se eu gosto tu não gostas.
São duas:
uma para fingir
outra para travestir
mas ambas andam nuas.
Ninguém engana ninguém
que não se queira enganar:
uma é de quem a tem
outra de quem a agarrar.
(José Soares. Poearte. Navegar contra o vento. Leiria : Magno Edições, 2001)
por João Wanderley Geraldi | jan 25, 2020 | Blog
Este é um estudo de fôlego, em que o autor ultrapassa os limites temporais e espaciais: traz mitos e heróis da Antiguidade, passa do Oriente para o Ocidente, reencontra mitos dos povos originários da América. Parece que nada lhe escapa.
Em certo sentido, este pode ser um livro de cabeceira, para retornar e buscar as narrativas mitológicas quando necessário. O viés analítico é a psicanálise. Trata-se de um estudo moderno que recupera as narrativas para compreender a psique humana.
É impressionante como os traços gerais do herói se repetem em diferentes civilizações! Sempre o ‘chamado’, o eleito dos deuses que precisa reconhecer-se como tal, sair em busca de algo ‘redentor’ (que pode ser uma princesa) enfrentando mil perigos, mas recebendo dos ‘auxiliares’ ajudas inesperadas e mágicas. O herói – seja ela do bem ou do mal – sempre sai vitorioso. E chega do outro lado. O problema será seu ‘retorno’ ao mundo dos homens, onde exercerá este mandato difícil de fazer a relação entre os dois mundos – aquele da vida e aquele do além da vida.
Conta-se a história de um erudito confuciano que suplicou ao vigésimo oitavo patriarca budista, Bodhidharma, “que pacificasse sua alma”. Bodhidharma retrucou: “Apresente-a e eu a pacificarei”. O confuciano replicou: “Eis o meu problema; não consigo encontrá-la”.Bodhidharma disse: “Seu desejo foi atendido”. O confuciano entendeu e partiu em paz.
Aqueles que sabem, não apenas que o Eterno vive neles, mas que eles mesmos, e todas as coisas, são verdadeiramente o Eterno, habitam os bosques de árvores que atendem aos desejos, bebem o licor da imortalidade e ouvem, em todos os lugares, a música silenciosa da harmonia universal.
Encontrar a harmonia cosmogânica! Encontrar a paz da alma. Nos mitos e heróis analisados, há sempre este encontro consigo mesmo. No entanto, para realizar a sua função como mitos e como heróis, eles necessariamente se voltam para os outros: a quem ensinam, a quem falam, a quem abençoam… Como se vê na pequena narrativa aqui transcrita: Budhidharma ouve, concede uma palavra-chave e pacifica.
O caminho do herói – que é o modelo prototípico que cada indivíduo tenta realizar, mas que não sabe de antemão se é ou não um dos “chamados” – passa sempre por sua auto-aniquilação e com seu renascimento. Todos os ritos iniciáticos apontam para este renascer, como outro.
… a passagem do limiar constitui uma forma de auto-aniquilação. […] Mas, neste caso [do herói grego Héracles que mergulhou pela bocarra do monstro, arrebendou-lhe a barriga e o deixou morto, salvando assim a bela Hesfone, filha do rei] em lugar de passar para fora, para além dos limites do mundo visível, o herói vai para dentro, para nascer de novo. O desaparecimento corresponde à entrada do fiel no templo – onde ele será revivificado pela lembrança de quem e do que é, isto é, pó e cinzas, exceto se for imortal. O interior do templo, ou ventre da baleia, e a terra celeste, que se encontra além, acima e abaixo dos limites do mundo, são uma só e mesma coisa. Eis por que as proximidades e entradas dos templos são flanqueadas e defendidas por colossais gárgulas: dragões, leões, matadores de demônios com as espadas desembainhadas, anões rancorosos e touros alados. Eles são guardiães do limiar, a quem cabe afastar todos os que forem incapazes de encontrar os silêncio mais elevados do interior do templo.
A análise, no entanto, insiste em dois aspectos: 1) A noção de uma lei cósmica, a que toda a existência serve e à qual o próprio homem deve curvar-se, passou desde então pelos estágios místicos preliminares representados na antiga astrologia, e hoje é simplesmente aceita, em termos mecânicos, como fato consumado. 2) A resolução do impasse da existência, a certeza da morte – uma das condições do herói é reconciliar-se com o túmulo – é sempre individual: o herói encontra o Eterno dentro de si; o herói se reconcilia consigo mesmo.
O ascetismo dos santos medievais e dos iogues da Índia, as iniciações nos mistérios helenísticos, as antigas filosofias do Oriente e do Ocidente são técnicas para levar a consciência individual a retirar a ênfase das vestes. As meditações preliminares do aspirante afastam-lhe a mente e os sentimentos dos acidadentes da vida, levando-o ao ponto essencial: “Não sou isto, nem aquilo”, ele medita, “não sou minha mãe, nem meu filho que acabou de morrer; nem meu corpo, que está enfermo ou velho; nem meu braço, meus olhos, minha cabeça; nem a soma de todas essas coisas. Não sou meu sentimento, nem minha mente, nem meu poder de intuição.” Por meio dessas meditações, ele é levado às suas próprias camadas profundas e termina por alcançar imperscrutáveis percepções. Não há quem possa retornar desses exercícios e levar a sério o fato de ser o Sr. Fulano de Tal, de tal cidade, Estados Unidos. – A sociedade e as obrigações ficam de lado. O sr. Fulano de Tal, tendo descoberto seu próprio potencial, volta-se para dentro de si e se distancia.
Bem ao estilo do tratamento psicanalítico: a solução é individual, é o exagero do individualismo. Penso que esta segunda característica da análise acaba por sombrear todo o retorno do herói (ou do mito) e sua relação com a comunidade de que participa. Trata-se, sempre, de encontrar o EU em tudo. Este “EU” é um “TU” transcendental, que pode ser tanto a energia quanto o vazio… “… hoje não há nenhum sentido no grupo – nenhum sentido no mundo: tudo está no indivíduo. Mas, hoje, o sentido é totalmente inconsciente. Não se sabe o alvo para o qual se cmainha. Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas de comunicação entre as zonas consciente e inconsciente da psique humana foram cortadas e formos divididos em dois.”
O individualismo exacerbante das soluções próprias. O TU é o EU encontrado em mim mesmo, a vida vivida como mistério, não como história. A sociedade é ‘reformada’ à imagem do EU integrado, no acordo consigo mesmo. O homem molda a sociedade. Não é a sociedade que molda o homem que consegue se encontrar a si mesmo no eterno que nele há. E como todo o sentido do homem moderno é inconsciente, eis que será ele próprio que dará sentido a si mesmo e à sociedade. Como mostra o parágrafo final do estudo:
O herói moderno, o indivíduo moderno que tem a coragem de atender ao chamado e empreender a busca da morada dessa presença [existência divina, inexaurível e multifária, que constitui em todos nós, a vida], com a qual todo nosso destino deve ser sintonizado, não pode – e, na verdade, não deve – esperar que sua comunidade rejeite a degradação gerada pelo orgulho, pelo medo, pela avareza racionalizada e pela incompreensão santificada. “Vive, diz Nietzsche, como se o dia tivesse chegado”. Não é a sociedade que deve orientar e salvar o herói criativo; deve ocorrer precisamente o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema provação – todos carregamos a cruz do redentor -, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo, mas nos silêncios do nosso próprio desespero.
Referência. Joseph Campbell. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo, Cultrix, 1993 (original de 1949).
por João Wanderley Geraldi | jan 19, 2020 | Blog
O caminho entrou pela janela
como um ramo que a tormenta afugenta.
Chovia.
Agudos nomes caíam gravemente,
desde cima entoados,
chamados a rodar pelas calçadas.
As casas se tornaram caminhos
ou foram atravessadas por eles.
A lucidez se apoderou das casas.
Os habitantes buscaram os terraços,
ascenderam e alçaram suas frontes com fervor
para o raio que revelou o caminho,
por um instante.
(Angye Gaona. Nascimento Volátil. Poesia colombiana de combate. Sumaré : Edições CEMOP, 2012)
por João Wanderley Geraldi | jan 18, 2020 | Blog
O escritor angolano nos brinda com mais um livro de literatura infantil. Numa história do menino Lino (seu nome somente aparece na epígrafe do livro, quando uma de suas frases é citada pelo autor).
O enredo na verdade desvenda um jogo entre luz/escuridão; entre ciência/comunicação e entre liberdade/prisão. Estes temas são tratados de forma quase direta ao longo do enredo.
Lino é um menino curioso que vive perto da Floresta Grande, onde “em noites de lua nova, quando o céu finge estar só vestido de nudez, brilham penduradas as estrelas, pequenas e belas.” O menino gosta de andar pela floresta, mas quando faz escuro, caminha com o avô. Numa destas caminhadas, o menino leva em sua mochila seus inventos: um aumentador de caminhos, uma montagem com três lentes: quando alguém chega ao fim do caminho, com o aumentador poderá continuar a caminhar; um monóculo (um binóculo com uma só lente, para o qual Lino recusa o nome ‘monóculo’) que serve para compreender o que dizem os pirilampos quando estão em seu pisca-pisca; e um convidador de pirilampos, uma pequena caixa com muitas cores estranhas.
O menino monta seus inventos, de modo que o aumentador de caminhos reflita a pouca luz que recebe no binóculo que a transfere para a caixa, e muitas cores aparecem no escuro da floresta. Os pirilampos curiosos foram ver as cores, entraram na caixa e nela ficaram presos. No dia seguinte, o menino buscou os pirilampos para colocá-los numa gaiola em seu quintal, de modo a poder observar os pirilampos e compreender o que diziam: aprender a sua língua. O que fazia? Cientistava os pirilampos. Há então uma conversa entre Lino e Edison, um pirilampo mais velho. Tudo conversado através de luzes que iluminam a escuridão.
No entanto, a partir de certo dia, os pirilampos não mais brilham. Ele pergunta a Edison a razão, e este explica que o que os faz brilhar são as histórias que os ‘pirivelhos’ contam. Sem histórias, perdem o brilho. Como o menino já havia cientistado os pirilampos, livra-os para irem ouvir as velhas histórias e voltarem a brilhar.
Eis um enredo tratado de forma poética (como em toda obra de Onjaki). E ao mesmo tempo com lições: as histórias que dão brilho à vida – elas carregam passados e sonhos. A cientistação de Lino para compreender a fala dos pirilampos e com eles se comunicar (e não para os descrever de forma distante e fria). A necessidade de liberdade para poder continuar a brilhar (a viver).
As ilustrações de António Jorge Gonçalves jogam o tempo todo com o claro/escuro, de modo que o leitor – a criança e o adulto – são envolvidos pelo jogo central desta obra: o claro, o conhecimento, a comunicação vs o escuro, o medo, o não saber.
Excelente livro. Irá para minhas netas. Elas não têm medo do escuro, mas aprenderão que os animais se comunicam e que merecem liberdade, mesmo quando a prisão que lhes decretamos seja para estudá-los. E mais: que estudar algo é aprender seus sentidos, o que implica uma atitude de comunicação com o outro, seja ele quem for.
Referência. Ondjaki. O convidador de pirilampos. Ilustrações de António Jorge Gonçalves. Lisboa : Editorial Caminho, 2017.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jan 15, 2020 | Blog
Muitas histórias devem ser contadas, preferencialmente bem contadas na verdade, e precisam de leitores, talvez não precisem de leitores, mas de experimentadores. Algumas coisas nos fisgam para contar e ler. Temas vários, posições, ideologias, convencimentos, distração, atração…Entre uma infinidade de possibilidades.
A questão é que ao escrever nos comprometemos, bem como ao ler. Não tem volta, uma vez lida ou escrita à história materializa-se em nós, poucas pessoas gostam de escrever, especulo que seja porque escrever é, em essência, comprometer-se em maior ou menor grau, e em tempos fluídos talvez não seja interessante firmar razões e posições.
Tenho escrito pouco, talvez por falta de vontade de me comprometer com causas várias, prefiro muitas vezes assumir uma postura de pouca ou nenhuma razão, mesmo sabendo do efeito que escrever oferece um tanto maior de melhoramentos, muitos não sabem, mas já estive bem perto da loucura.
É sobre isso que quero dizer.
Sim, escrever me organiza, pois dialogo comigo mesma, sou minha própria interlocutora… Então faço concessões e rupturas a partir de cada escolha e exigências do que irá ou não para o texto, e me atrevo com o que escrevo para ser lido por possíveis interlocutores, sempre acredito que eles existem, sei que o tempo de imagens e vídeos atende a necessidade de urgência e textos pré-digeridos de modo que quando alguns deles comenta, curte, ou visualiza, confirmo ou não minhas expectativas e possíveis respostas.
Lembro-me da pergunta do poeta Drummond:
– Trouxeste a chave?
Percebam que dou voltas para não falar do que é preciso, pois sim a loucura me visitava sempre. Até que um dia um cavaleiro destes nem tão cavaleiro assim, e pouco afeito às donzelas indefesas bateu-me a porta, e eu que não gosto de cavalgar, ou de contos de fadas me agarrei ao salvamento. Dito assim pelo final parece ainda pouco a visitação da insanidade, e não quero que imaginem os arredores de tristeza e solidão, digo apenas que em suas vindas sempre traziam a dor e a vergonha, em geral eu sabia que aproximava-se ainda mais da loucura, não aquela boa, que se esbalda em liberdade e arte. Não. A que trato aqui é da outra: loucura que aprisiona, entristece e cala.
Exatamente assim, a loucura silencia nossos desejos, nossas revoltas, nossas paixões, nossas histórias, fantasias e sonhos. Devora-nos lentamente. Uns entorpecem-se, sem caminhos e capacidade de identificar a raiz do mal, e assim tomados pelo emudecer e pela paralisia tornam-se cada vez mais afundados em um terreno solitário de areia movediça que cava sob nossos pés. Estaremos mortos afinal?
Não escrever é como não responder a quem te diz bom dia em meio à multidão, vários rostos e silêncios correm contra o tempo, e tantos não dizem nada, e para tantos não ofereceremos salvamento, mas se um ainda, e aquele qualquer te sorrir, então um vez ainda valerá dizer:
-Vem comigo?
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