Uma produção destrutiva criminosa da Amazônia

Uma produção destrutiva criminosa da Amazônia

As políticas e os programas dementes de ocupação, desmatamento e produção na Amazônia fazem parte do colonialismo devastador e expropriador atualizado, modernizado tecnologicamente, propalado criminosamente pelo presidente Bolsonaro. Vivemos os tempos de política de fogo abrasador, devastador da vida e da humanidade. Estamos dominados pelo poder da demência sem limites e sem fim de quem sempre foi movido e energizado pelo ódio aos adversários e opositores.

“Quem demarca terra indígena sou eu, não é o ministro. Quem manda sou eu nesta questão, entre tantas outras. Eu que sou presidente, que assumo ônus e bônus” – proclamou Bolsonaro. Assim, não é mais a FUNAI que vai tratar e cuidar das políticas, das normas de demarcação de terras, de reservas indígenas, de preservação de áreas florestais, da preservação do meio ambiente, enfim que vai garantir as condições de vida do ecossistema do planeta terra. Quem determina estas questões é o presidente Bolsonaro, sempre ao gosto e sabor dos colonizadores – heróis da produção. E mais, ele mesmo vai acabar com o IBAMA, caso este Instituto “atrapalhar quem quer produzir”. Para tanto, vai buscar o poder dos aliados no congresso, “os homens do campo”, a antiga e poderosa bancada ruralista, sempre a serviço do capital latifundiário. Estes, sempre a serviço e às ordens dos latifundiários do agronegócio. Os defensivos agrícolas – venenos inseticidas e fungicidas – agora estão liberados cem por cento na escala nacional, mesmo que já banidos na escala do Mercado Europeu e em outros países mais desenvolvidos.

Bolsonaro e seguidores – coroinhas nada imaculados – dizem que os cientistas não passam de “psicóticos ambientalistas” mentirosos. Para Bolsonaro, as informações dos mais de 95% dos cientistas do mundo sobre os perigos do processo acelerado das mudanças climáticas da terra, por conta e obra da produção desmedida e descontrolada do capital, não são informações verdadeiras, são dados falsos. Só as falas dele – Bolsonaro – são verdadeiras, mesmo mal intencionadas, trapaceiras e sem o mínimo de conhecimento e sem nenhuma prova científica. As tragédias climáticas cada vez mais catastróficas e assustadoras são “efeitos colaterais”, necessários no processo de produção e reprodução do capital pelos colonizadores.

A roupagem e imagem fetichista populista esconde a extrema destrutividade do sistema ecológico. Bolsonaro é o fantoche do “capitalismo do Estado”, a serviço do bloco-elite no poder. Esta elite vale-se do Estado para extração econômica dos bens naturais e sociais de todos. O fato é que esta elite do capital não sobreviveria um mês, talvez uma semana, se o governo Bolsonaro não se valesse do Estado para prover as garantias políticas – na escala do congresso e da justiça – e se não garantisse os fundos econômicos do Estado, cada vez mais em magnitudes astronômicas a este capital extremado.

Agora, as perguntas. Até quando este governo autocrático vai sobreviver e implantar as políticas de extrema destrutividade? É possível outro sistema não autoritário, nem populista autocrático?

Sem a pretensão de responder as perguntas, em contrapartida, para combater e superar este neoliberalismo populista catastrófico, que produz tragédias naturais e sociais, é preciso inventar e instituir uma democracia consciente ecossocial, substantiva, viva, participativa. É uma necessidade vital tratar a natureza – água, solo, terra, atmosfera, florestas, mares, animais… com muito carinho, cuidado, amor, proteção… Essa atitude humana consciente de compartilhamento coletivo se constrói na cada vez maior ativação de movimentos sociais de massa e de organizações de forças políticas populares em oposição às elites do bloco no poder.

Mais engajamento e menos omissão e alienação.

O maligno …Continua a ameaçar os trabalhadores

O maligno …Continua a ameaçar os trabalhadores

Na campanha eleitoral, o dono da Havan, aquela loja kitsch com uma estátua da liberdade na entrada, prometeu a seus empregados que continuaria a pagar o 13º salário depois que o então candidato a vice-presidência, o general Mourão havia declarado que era preciso acabar com esta gratificação.

Bolsonaro desautorizou naquele tempo o seu vice: dizia então que manteria o pagamento, mesmo reconhecendo que “é muito difícil ser patrão”. O tempo passou. As eleições foram ganhas por obra e graça da Lava Jato que tirou da disputa a candidatura Lula, como haviam prometido aos banqueiros o ministro Fux e o procurador ambicioso e avarento Dallagnol.

Agora na presidência, demonstrando diuturnamente sua imbecilidade para o país e para o mundo, vai Bolsonaro encontrar-se com a bancada do seu Partido das Laranjeiras, o PSL, com os demos do DEM e com o paradoxo dos conservadores e retrógrados membros do Partido Progressista para dizer que é contra o artigo 7º da Constituição que garante 13º  salário, férias e seguro desemprego, querendo aproximar ao máximo à informalidade nas relações capital/trabalho, ou seja, aumentar ao máximo a exploração do lado mais fraco em benefício do mais forte.

Afinal, ele diz textualmente que “ser patrão é um tormento”, enunciado que pode ser aplaudido por pequenos empresários que vivem do seu trabalho ajudado por seus empregados e vivendo do trabalho deles, imagina-se não trabalhador!

Estamos mais uma vez confirmando o que já se sabia: Bolsonaro veio para arrebentar com a classe trabalhadora, incluindo estes pequenos empreendedores que se sentem o que não são: capitalistas, longe do trabalho.

Alguns consideram que sou duro ao chamar de burros  os eleitores do povo, evangélicos pobres que votaram no malogro acreditando, contra os seus próprios interesses mais visíveis, na narrativa da mídia que criminalizou precisamente aqueles que mais atenderam a seus interesses mais imediatos.

Entre o bolso e a vida se aproximando da dignidade e a mentira, preferiram a mentira. E isso é burrice. Mas o medo da diferença, o medo de ter direitos, o medo de viver decente foram maiores: elegeram o Maligno a quem se entregaram. Merecem o fim do 13º, das férias e do seguro-desemprego.

Durante a escravatura, muitos se revoltaram, muitos morreram. Agora estão dóceis, pobres brancos e negros, todos batendo palmas para o MITO que os logra.

Há sempre quem culpe a nós da esquerda porque não soubemos usar a linguagem que atingiu a estes eleitores do Tinhoso. Pois acho que não sabemos nem devemos saber, porque falar como eles, mentir como eles, esbravejar com ameaças infernais os meninos que usem rosa, etc. não é nem será a linguagem da esquerda.

Não nos culpem por sermos corretos, não nos culpem por defendermos que todas as divergências devem ter espaço público onde se explicitarem com candidaturas próprias.

Não nos exijam abraços em frente ampla com inimigos do povo.

A TOGA FOI AO CHÃO: Sérgio Moro fez tudo fora do penico

A TOGA FOI AO CHÃO: Sérgio Moro fez tudo fora do penico

As revelações do The Intercept podem ser agora confirmadas com o que está nas mãos da PF depois da prisão dos hackers russos residentes em Araraquara, Ribeirão Preto e São Paulo!
A estratégia de salvamento de Moro, discutida e posta em execução a conselho da CIA nas férias do ex-juiz, f deu legal com o ex-juiz: agora tudo pode ser confirmado e a PF tem como fazê-lo, se o chefe deixar… mas o chefe não quer que façam isso: ameaçou destruir as provas porque ele sabe: está f*dido definitivamente…
Em desespero pública portaria ameaçadora, quer expulsão de Gleen! Não adianta, juiz fdp. Moro e Dallagnol conspurcaram a justiça brasileira, foram afagados por Fachin e acompanhados por Fux, o conferencista da XP! Realmente puseram merda no ventilador… e tentam esverdear todo o judiciário que não merece como um todo este ventilador… afinal, ainda que raros, há juízes e procuradores neste país!
Até Toffoli vai ter que parar de andar de quatro, embora lhe seja muito difícil voltar a ser bípede porque o costume e o hábito fazem o sabujo! Será que ele saberá ser outra coisa?
Que CPI da toga… a sociedade está fazendo a CPI real e pelo que hoje já se sabe está ficando difícil tornar tudo uma pizza. Podem levar ao endurecimento do regime, mas agora justificando o novo golpe não mais na narrativa tão cara a Globo e a tradicional mídia, mas na vergonhosa b em que se transformou o judiciário, o ministério do ex-juiz, e o governo
ilegítimo de Bolsonaro. Ilegítimo porque eleito graças à ação da Lava Jato!
A velocidade, este apanágio da sociedade contemporânea, também torna mais rápida a história. O que no passado levaríamos anos para ficar sabendo, em alguns casos duas ou três gerações, hoje num piscar de olhos tudo aparece. O problema que persiste já não é o de saber o que aconteceu, mas as relações de forças que permitem ou não trancafiar os reais
criminosos da nação que elegeram como a eleição deveria ocorrer! Dois eleitores, Dallagnol e Moro, definiram a seu bel prazer o futuro de uma nação de mais de 200 milhões de habitantes! O problema deles é que sua garantia, o capital, é amante volúvel e interesseira: como os dois urinóis já prestaram seu serviço, agora podem ser descartados!
Pobre Moro que pensava receber nas suas férias na matriz o convite irrecusável para ser professor de alguma universidade norte-americana depois do serviço prestado! Não recebeu e a estratégia que lhe assopraram foi para descartá-lo definitivamente. Com Dallagnol, vai amargar o ostracismo que queriam impor a Lula.
Pessoalmente queria um pouco mais: que ambos fossem …

Éramos velhos, de Anna Mariano

Éramos velhos, de Anna Mariano

Éramos velhos, nós dois e a certeza

de que a vida não fora assim

tão majestosa

de que sempre houvera outros

dentro e fora

do que costumávamos chamar de nossa história

Éramos velhos, nós dois e a certeza

de que o tempo passara e a contento.

Eu caminhava com firmeza ao teu lado

distraída com as montanhas e as estradas

que fingia serem minhas, mas não eram

assim como não eram as cigarras

sobre a relva, ora verde, ora dourada

seca relva que eu regava com doçura

pois havia sempre o fogo, essa ameaça

Se ao menos em nós houvesse algo

chama imprevista, chama forte, leopardo

ouuma poça, um olho, uma vertente

se ao menos em nós houvesse água

escondida no vazio que sempre fôramos

haveria a solidão

esse detalhe.

(Anna Mariano. Apenas por nós choramos. Guaratinguetá : Editora Penalux, 2019)

O destino da carne, de Assis Brasil

O destino da carne, de Assis Brasil

Excelente! Robusto no enredo, no símbolo e na técnica narrativa. O romance se compõe de cinco capítulos, cada um deles tendo por título o nome da personagem que assume o ponto de vista da narrativa, falando de si mas, sobretudo, da relação com “o segredo” da personagem principal, Celina, que abre o romance e o encerra. Não por acaso ela abre e ela fecha a narrativa: acontece que são suas relações com o pai (Orlandão), com a mãe (Carmen) e com o irmão (Orlandinho) que estão em jogo, ao mesmo tempo que nestes capítulos, ao assumirem o ponto de vista da narrativa, as personagens falam também de si.

O tempo é de quinze anos: Celina está com trinta anos quando começa a contar no presente o seu passado, e refletindo no presente traz suas preocupações com o mundo e com a sociedade. O fato que fundamental, que será desenrolado aos poucos, como se fosse um novelo, aconteceu há quinze anos. Mas não se escreve como se fosse uma rememoração, antes pelo contrário. Este passado está ali, presente, mas o hoje das reflexões e das relações com o pintor Artur, um artista defensor de uma filosofia da marginalidade, que “ilumina” o passado e aponta para uma saída possível, ou um refúgio, a arte como escapatória de um mundo em decadência moral e sob forte aparato repressivo: o tempo histórico é aquele da ditadura militar no Brasil.

Pode-se simplificar o enredo: trata-se de uma jovem que aos quinze anos mantém uma relação com a empregada da casa, Marieta. E mesmo virgem, fica grávida. Marieta não era travesti. Mas mantinha relações com seu namorado, Neco. E depois das andanças noturnas com o namorado, vai ao quarto de Celina com quem mantém relações. A explicação “objetiva” da gravidez seria o fato de que Marieta, carregando os espermatozoides do namorado, transfere-os para Celina. Está dado o drama: uma jovem de uma família burguesa preocupada sobretudo com o “status” social aparece grávida. Primeiro, como compreender esta gravidez de uma virgem? Segundo, o que fazer com a gravidez. Obviamente a solução do aborto, mas no momento de realiza-lo Celina se revolta e não deixa que o pratiquem. Tem um filho, que se chamará com o nome do poeta nacionalista irlandês: William Butler Yeats. O negrinho Willi, que a família diz ser da empregada e que adotaram, embora o excluam do convívio: ele será aluno interno durante todo o tempo. Este o segredo de Celina: ter um filho resultado de uma relação homoafetiva! De uma paixão avassaladora.

Mas isto não é contado assim, em linha reta: o leitor vai tomando conhecimento aos poucos, como se estive desenrolando um novelo. E será sempre nos diálogos de Celina com seu namorado atual, o pintor Artur que esta história vai emergindo.

Pelo meio do caminho, os capítulos de cada um dos membros desta família burguesa: Carmen, a mãe, acaba tomando a filha como confidente e lhe narra suas aventuras, sempre conduzidas por sua amiga Vivi: não há que desperdiçar a vida e o viço da vida no cotidiano sem sal: é preciso aventuras. Então Carmen se torna uma “prostituta” eventual e de luxo, frequentando uma casa mantida pela senhora Cleveland para clientes especiais. Há na casa as prostitutas profissionais, mas há estas que “amam o sexo e a aventura”, que tem horário marcado com clientes especiais. E que recebem por seus serviços… Neste capítulo, em que a voz que narra é Carmen, as reflexões são sobre este desejo incômodo e eterno do “aproveitar a vida curta e passageira” sem, no entanto, ferir a moral burguesa: o destino do desejo, esconder-se para realizar-se. A mãe com muita frequência aponta para Celina esta vida possível, escondida, mas de prazeres que ela está deixando passar, ficando sempre em casa, reclusa.

Orlandinho é o típico jovem pequeno burguês, que aposta corridas, que participa de festas, de vai a embalos, que experimenta drogas. Está sempre ocupado. Sempre saindo. A casa dos grandes encontros é do amigo Horácio, um travesti com dinheiro. Tem uma namorada: Jacira. Numa destas festas de embalo, só para homens, mantém relações sexuais com um parceiro, pensa que descobriu o que de fato queria na vida. Mas na festa seguinte, leva Jacira como um teste para sua namorada: todo mundo nu, todo mundo transando sem qualquer vergonha. Livres e libertinos. Orlandinho transa com Jacira, depois sem que esta o compreenda, diz a ela que o salvou! E lhe propõe casamento… Orlandinho é também sarcástico com a irmã: todos na família sabem o segredo de que não se fala e que não pode ser espalhado para fora do ambiente familiar. Há constantes troca de farpas entre os irmãos, inclusive Celina com frequência se refere à relação homossexual de seu irmão.

Orlandão, o pai, é o típico burguês bem sucedido. Que constituiu uma família, que a sustentou e que mantém um padrão social invejado por outros que, numa sociedade de “sucessos”, estão sempre aspirando subir, sem jamais deixarem de ser o que de fato são: uma classe média mais ou menos endinheirada. Orlandão tem um escritório. E seu passatempo é jogar cartas – pif paf – na casa do amigo Osias, outro bem sucedido que vem do cais do porto e se torna grande investidor na bolsa. Na verdade, o que interessa a Orlandão é a mulher de Osias, Fernanda, que durante o jogo o provoca sob a mesa, com o pé em suas coxas… Orlando resume sua vida:

Ainda passara pelos tempos românticos, mas achava que escapara um tanto incólume para não viver mergulhado em ilusões – sabia e podia sentir que os navios não eram mais de velas pandas ao vendo, que as velas igrejas de outro haviam desaparecido sob a sombra dos arranha-céus de aço, que os homens, generalizados, empenhavam mais o valor do dinheiro do que o da honra.

Este pai burguês, que exige um encontro diário da família, jantando sempre todos juntos, sai depois da janta para a casa do Osias, para jogar e ver Fernanda – seus dois passatempos. Demora a acontecer o encontro sexual prenunciado. E da primeira vez no escritório de Orlando… para depois se tornar mais frequente e em lugares mais cômodos.

A história somente se completa no último capítulo, quando Celina já decidira que queria ir viver com Artur e por isso conta-lhe todo seu passado, sua paixão por Marieta, o filho Willi. E propõe viverem juntos, terem juntos um filho, que seria o irmão de Willi que, enfim, sairia de seu eterno internato para viver com a mãe.

Esta linearidade é totalmente desfeita na técnica narrativa. O escritor introduz aqui diferentes pontos de vista: cada capítulo tem por narrador a própria personagem, ela fala, a voz é sua. E ao mesmo tempo e esporadicamente aparece um narrador em terceira pessoa, onisciente que emerge e submerge quase imediatamente, confundindo sua voz com a voz das suas personagens, consciências equipolentes, como diria Bakhtin. Neste sentido, trata-se de um “romance polifônico” em que vozes independentes se narram e falam sub-repticiamente o tempo todo sobre “o segredo de Celina”, mas como signo bissêmico, como aponta Gilberto Mendonça Teles, num texto de crítica literária (“A visão entre parênteses”, com que se encerra esta primeira edição do romance) remeteria à realidade brasileira:

As datas de trinta e quinze anos, que estruturam o tempo desses capítulos, funcionam como um parêntese, a partir do qual se chega a um parêntese ideológico: os anos difíceis de 1964-1965 e a esboçada abertura política de 1980. E ai que a ideia de signo bissêmico atinge a sua plenitude de símbolo, abrindo-se francamente para o imaginário e criando a possibilidade de todo esse jogo de parênteses estar, no fundo, apontando para a revolução de 64. O filho espúrio, concebido de forma contrária à normalidade, não poderia ser o símbolo de uma anormalidade política instaurada no país? A família burguesa, em decadência moral, não teria alguma coisa a ver com a família brasileira, politicamente perturbada pelos anos que antecederam e pelos que se seguiram à revolução. A técnica dos parênteses e barras não estaria, no íntimo, relacionada ao problema da censura? E a única saída possível para Celina no romance não é também o símbolo, espelho e modelo, da única saída possível para o escritor neste período: o de sublimar-se pela arte?

Uma curta passagem do diálogo entre Celina e seu namorado Artur ilustra esta saída:

Artur lhe falara nisso uma vez, mais uma vez: só os artistas podem sentir e aceitar a finitude e ao mesmo tempo a liberdade sem fim, o que faz com que eles escrevam, pintem, sonhem, amem a beleza das coisas efêmeras.

– Será mesmo, Artur?

– Só os artistas autênticos e as pessoas sensíveis.

– Eles não temem a morte?

– Temem como qualquer um, mas a aceitam como mais um desafio da criação.

 Independentemente deste aspecto simbólico menos visível para o leitor contemporâneo (note-se o cuidado do crítico em referir “a revolução de 64”, num texto publicado em 1982), vale a pena destacar o aspecto técnica da composição. Assis Brasil (Francisco de Assis Almeida Brasil) parece aceitar a tese de Bakhtin de que o romance é o único gênero ainda em construção, ainda inacabado, e inventa uma forma narrativa polifônica na forma de mudança contínua do ponto de vista, da voz que fala, da voz que narra e da voz que traz ao texto reflexões sobre o estar no mundo.

O autor faz uso frequente de parênteses, de barras. Estas parecem marcar os versos, porque há inúmeras citações, alusões, discurso direto e discurso indireto livre ao longo do romance: aparecem Machado de Assis, Jorge de Lima, Poe, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa… Daí as barras, os parênteses.

Outro aspecto bastante explorado é a “interpolação” de enunciados, em que os diálogos entre dois personagens são atravessados por diálogos com outros personagens, como no exemplo abaixo, passagem extraída da cena em que Celina está contando a Artur a sua história (último capítulo), em que se explora a técnica do discurso direto:

Ingenuidade, sei. Só mais tarde, muito mais tarde, eu compreenderia que é preciso um freio para todos os nossos atos: o ser livre é um condenado, eu concordo. Lançado ao mundo, sem se ter criado a si próprio, é responsável por tudo quanto fizer.

– Não me diga, Celina, que filosofou naqueles momentos.

Não. Não podia. Mas foi dali em diante, acho, que comecei a pensar. Muito depois da fase Marieta, ou no ato mesmo da revolta contra a trama para assassinarem meu filho. Não sou apenas uma coisa que sente, disse pra mim mesma. Sou uma coisa que sente e que pensa e que tem dúvidas

Foi bom, queridinha? – Marieta me perguntou, a chama se afastando num bruxulear de espanto.

– Foi bom, queridinha?

Não disse nada.

Esta técnica lembra outro livro, anterior: Conversas na Catedral, de Mário Vargas Llosa (publicado no Brasil em 1969).

O interessante é que o leitor, já embalado pelo enredo e seguindo o balanço da técnica narrativa, nunca tem dificuldades de saber quem fala quando um diálogo é entrecortado por outro diálogo. No exemplo, isso é evidente. Mas em outras passagens, quem não leu o livro pode ficar perdido em falas que parecem incoerentes ou desconexas. Escolhi aqui um exemplo claro de entrada em discurso direto de outro diálogo no interior da narrativa que Celina fazia para Artur.

Outro aspecto da técnica narrativa que merece relevo é o longo desenrolar do “segredo de Celina”. A memória de leitor me levou diretamente ao livro de Renato Tapajós, Em câmara Lenta (1977). Também aqui a cena de tortura se prolonga e vai sendo contada a conta-gotas, como o segredo de Celina vai aparecendo e somente no último capítulo o leitor toma conhecimento dos fatos, narrados pela voz da protagonista para seu namorado.

Enfim, trata-se de um romance tecnicamente muito bem construído, com uma história que deixa o leitor em atenção contínua, numa linguagem que prende o leitor que, ao mesmo tempo, o angustia pelas inúmeras perguntas que são levantadas pelas personagens, particularmente o pinto Artur e a personagem central, Celina.

Um romance polifônico, sem dúvida. Um romance que vai fundo na alma de suas personagens que se apresentam como independentes do autor, como seus outros.

Para aqueles que estudam o trabalho desenvolvido por Bakhtin, este livro pode ser um bom lugar para encontrar em nossa literatura, e contemporânea, o que o pensador russo encontrou em Dostoiévski, guardadas as proporções, é claro.

Referência. Assis Brasil. O destino da carne. Rio de Janeiro : Nórdica, 1982.