Tráfego, de Francisco Foot Hardman

Tráfego, de Francisco Foot Hardman

A moça da zona azul

vem com seu caderno de anotações

poemas a lápis, riscados

no intervalo de bar

Leciono geografia

Faço planos, adormeço

estação repleta de insetos

Mosqueteio ilusões

e temas voadores

Desligo a Hora do Brasil

Não assino Veja nem Isto É

Moro em S. Paulo,

cidade que progride

Tem bonitas garotas

e gajos imbecis

(Francisco Foot Hardman. Os viveres de maio. S. Paulo : Kairós, 1980)

O homem invisível, de H. G. Wells

O homem invisível, de H. G. Wells

O mito da invisibilidade é bastante antigo. Mantém-se no presente, principalmente em narrativas fílmicas de ação. O livro de Wells foi publicado em 1897, e como tem por tema este mito (ou desejo), permanece um livro que se lê com gosto (e com certa rapidez, porque é um livro de ficção científica e ao mesmo tempo um livro de ação que vai levando o leitor de uma peripécia à outra).

A história se inicia com um estranho senhor se hospedando na “Coach and Horses” recém chegado Oping da estação de trem de Bramblehurst, em noite de grande neve e frio. Vinha enrolado em bandagens que aparentavam ter sofrido um acidente. Instala-se no lugarejo, na manhã seguinte lhe entregam a bagagem que havia ficado na estação, e que consistia somente em muitas garrafas, tubos, líquidos… E o novo hóspede exige não ser incomodado, não ser interrompido, fazer suas refeições no aposento que lhe foi destinado. E tudo com absoluta rigidez e falta de educação.

E então começam a acontecer coisas no lugar pacato. O primeiro evento que denuncia que algo não é normal se dá quando Mr. Cuss vai ao aposento pedir ao estranho que colabore numa subscrição para contratar uma enfermeira. Tenta estabelecer uma conversa com o estranho, e em certo momento o vento leva um papel para a lareira… o “Homem invisível” corre para salvar o que ainda restava na escrivaninha, e então Mr. Cuss descobre que são roupas vazias que se movem, que não há mão no fim da manga do paletó, que nesta manga não há um braço… Apavorado, vai se aconselhar com o vigário de Iping, que tenta acalmá-lo pensando em alucinação. Mas o evento seguinte diz respeito diretamente ao vigário: somem suas economias do vicariato. Seguem-se cenas observadas na hospedaria: parece que os móveis do aposento se mexem sozinhos!

Entrementes, as desavenças com a senhoria começam. Mrs. Hall, a proprietária da hospedaria, sendo mal tratada pelo hóspede, decide por manda-lo embora, alegando falta de pagamento. Quando diz isso, o hóspede lhe paga e ela estranha, pois na véspera disse que não tinha qualquer dinheiro com ele. A desconfiança se alastra.

Forma-se uma comissão que vai falar com o estranho hóspede, já pensando em sua prisão com a acusação do furto na igreja. O delegado, Mr. Cuss e o vigário. E descobrem que ele é invisível, pois se desfaz das roupas e começa uma luta contra os três, usufruindo do fato de sua invisibilidade (e de sua força portentosa, algo estranho já que se tratava de um sujeito que vivia para sua pesquisa, sem outra atividade física que não o seu laboratório e seu sonho de se tornar invisível).

Assim, a comunidade descobre seu segredo: que em verdade para se tornar visível, usava as roupas. E começa a caçada ao Homem Invisível, que foge não sem antes tomar como seu “escravo” um pedinte que por ali estava. Este carregaria seus livros, e em seus bolsos juntaria tudo o que fosse roubando pelo caminho. Um sócio subordinado, um serviçal na verdade.

No entanto, Thomas Marvel, o mendigo, consegue escapar à vigilância do Homem Invisível, fica com seu dinheiro e com seus livros. Para garantir sua própria sobrevivência, pois a Voz prometera matá-lo se ousasse trair. Depois de muitas peripécias, o Homem Invisível acaba por se esconder na casa de outro cientista, o Dr. Kemp, já em outra localidade.

Apresenta-se. E então ficamos sabendo seu nome: Griffins. Conta sua história, sua pesquisa e o grande problema que estava enfrentando: não conseguia reverter sua invisibilidade. Nos capítulos desta narrativa, vai explicando como conseguiu seu feito em termos físicos, apresentando suas fórmulas e seus estudos.

Depois de reconhecido, faz a seu hospedeiro involuntário uma proposta: que se tornem sócios, aproveitariam da invisibilidade para instalar o Mundo do Terror, comandariam o mundo e tomariam todas as posses dos outros. Kemp faz de conta que aceita, mas em verdade manda um bilhete à chefia da polícia avisando que o “ladrão procurado” estava em sua casa.   

Recomeça a caçada. Ele consegue fugir, mas volta à casa de Kemp para sua vingança pela traição do amigo e antigo companheiro de universidade. E então acaba sendo pego, ferido e a invisibilidade começa a rever e aparece um homem

… ali estava diante deles, nu, estirado no chão, o corpo ferido e machucado de um homem de seus trinta anos de idade. Seu cabelo e a barba por fazer eram brancos, não o branco da idade, mas o do albinismo, e seus olhos eram vermelhos. Suas mãos estavam crispadas, os olhos arregalados, e sua expressão era de raiva e desalento.    

No epílogo, reaparece Thomas Marvel, agora proprietário de uma taverna, sempre dizendo que os livros com os segredos da invisibilidade não tinham ficado com ele. Quando todos iam embora, ele se escondia para tentar ler os livros, para tentar descobrir os segredos ali guardados:

– Xis… um doizinho em cima… Uma cruz… Um desenhozinho… Meu Deus! Que sujeito intelectual!

Depois de algum tempo ele relaxa, recosta-se na poltrona e fica contemplando a fumaça que sobre para o teto, como se contemplasse coisas invisíveis a outros olhos.

– Cheio de segredos – murmura ele. – Segredos maravilhosos. No dia em que eu souber o que tem aí dentro… Ah, não vou fazer o que ele fez! O que vou fazer é …

Nesta cena final, o mito da invisibilidade retorna… e mesmo tendo presenciado a infelicidade que a invisibilidade trouxe, Thomas sonha, como tantos outros, conseguir se tornar invisível e usar da invisibilidade para realizar sonhos guardados.

 

Referência. H. G. Wells. O homem invisível. Tadução, prefácio e notas de Braulio Tavares. Rio de Janeiro : Objetiva, 2011.

Da vertigem à verdade: atravessamentos da memória – filme de Petra Costa, por Taina Cavalcanti

Da vertigem à verdade: atravessamentos da memória – filme de Petra Costa, por Taina Cavalcanti

Depois de assistir ao “Democracia em vertigem”, da fantástica e visionária Petra Costa, as memórias da minha história de vida-militância vieram nas lágrimas incontidas de um coração que vibrou com Lula na posse em Brasília, no ano de 2003, e paralisado ficou diante do golpe de abril de 16.
 
Confundia-me com Petra em muitos retratos e tantas recordações de seus laços familiares. De minha origem tenho uma bisa curandeira e guerrilheira, até meu filho a quem ensinarei sobre a luta que, no fundo e sempre, é de classes.
 
A despeito das lágrimas incessantes e tudo que me vinha à cabeça, três pontos me mobilizaram deveras: Dilma e a fortaleza que carrega em si diante de seus perversos algozes, aqueles abjetos vomitando toda a misoginia e podridão de suas línguas; o último discurso de Lula antes de ser encarcerado pelo seu acusador da farsa a jato; e, por fim, a vívida lembrança de, em 2013, estar próxima à Praça da Bandeira e olhar ao redor tanto verde e amarelo entoando o hino nacional.
 
Ao que digo a quem estava comigo: não me sinto bem aqui, não estou com essas pessoas, não me identifico com o que quer que esteja acontecendo aqui. Um profundo estranhamento me tomou e hoje entendo o porquê.
 
Que eu siga vermelha, feito pau-brasil, no esforço de me abrir a outros tons, no exercício da escuta e ética, mas nunca me confundindo com quem fez e faz do Brasil um território do ódio, da ignorância e do gozo com a aniquilação do outro.
 
Meu hino para o nosso país segue assim: amanhã vai ser outro dia! E com Chico eu sigo na luta e esperança por dias mais justos. Porque ninguém tem poder de prender um pensamento livre e sonhador. Ninguém vai barrar meu desejo de formar cidadãos críticos e “escutadores” da vida. Seguirei no um a um, no feminino que nos convoca a fazer revolução.
 
Da vertigem faremos clara luz a nos guiar no caminho da verdade. 

 

Não deixem de assistir à Arte de Petra e fazer vocês mesmos suas memórias, escritas e revoluções. 
 
 

Taina Cavalcanti Rocha é mestra em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Psicanálise e Saúde Mental pela UERJ. Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Ler e escrever: uma mera exigência escolar?(1)

Ler e escrever: uma mera exigência escolar?(1)

Em educação, importa pouco chegar ao que já foi, porque o seu compromisso é trabalhar para chegar ao que está por vir.

 

Sobre o texto

 

Se surgiu a necessidade de ensinar uma língua para aqueles que a falam como língua materna, certamente é porque como falam não se coaduna com a imagem de como esta mesma língua é ou deveria ser. À força da diversidade, as sociedades têm respondido com o mito da unidade. Unidade que seria produto não do uso da língua – este sempre está a produzir estabilidades instáveis – mas produto do estudo da língua, da sua descrição e da definição de suas normas do “bem dizer e escrever”.

Pode-se defender que esta unidade responde à necessidade da comunicação entre os membros de uma mesma comunidade, espaço em que uma tendência à estandardização se constrói, exercendo sobre os falantes uma pressão no sentido da estabilização das formas da língua. No entanto, a vitalidade da língua expressa-se no fato de que seu uso implica mudança: o retorno do estável é espaço da instabilidade. É este movimento constante entre estabilidade e instabilidade que torna a língua o que ela é: uma atividade com que organizamos nossas próprias experiências, sempre única e irrepetíveis, e compartilhamos os quadros instáveis de referências comuns onde o que é único adquire algum sentido.

Da necessária padronização, parte-se para uma divisão que institui o certo e o errado em termos de língua. Desliza-se do conceito de padrão para o conceito de norma e em consequência para atividades de normalização, que não escondem a ideia de “normal” quando aquilo que a partilha comunicacional demanda é a padronização. O padrão se fixa, se imobiliza, como se sua vocação fosse a esterilização da vitalidade da língua.

Há um lugar, no entanto, que todo o esforço de normalização poderia acabar por se perder: aquele da construção de discursos e suas materializações textuais. Privilegiar o estudo do texto, em sala de aula ou em outros espaços, é aceitar o desafio do convívio com a instabilidade, com um horizonte de possibilidades de dizer que em cada texto se concretiza em uma forma a partir de um trabalho de estilo. E ainda mais: é saber que a escolha feita entre os recursos expressivos não afasta as outras possibilidades e que seguramente algumas delas serão manuseadas no processo de leitura.

Um texto é sempre uma possibilidade dentre múltiplas possiblidades, mesmo consideradas as constrições da situação em que é produzido. Não por acaso, a personagem de José Saramago de História do Cerco de Lisboa, o revisor, afirma que todo o revisor sabe que um texto nunca está pronto e sempre pode vir a ter outra forma.

Ora, introduzir o texto na sala de aula é introduzir a possibilidade das emergências dos imprevistos, dos acontecimentos e dos acasos. Para escapar desta teratologia, há que cercar a introdução do texto por cuidados de múltiplas ordens, para estabilizá-lo, fixa-lo e impedir sua adulteração significativa.

O ideal, do ponto de vista da estabilidade paradoxal que a escola assume – ela ao mesmo tempo se diz formando para o futuro, mas faz isso forçando para que o futuro seja a repetição do passado – seria afastar de vez o texto da sala de aula. Mas isto é impossível por uma razão mais ou menos óbvia: o processo de fixação de valores demanda o convívio com discursos materializados nos textos; os valores e as concepções circulam através dos textos e sem eles a escola não cumpriria uma de sua funções mais sofisticadas: a reprodução de valores com que compreender o mundo, os homens e suas ações.  De um lado, o texto traz o perigo da instabilidade; de outro lado, o texto é um lugar privilegiado para construir estabilidades sociais. Não há escapatória: no ensino da língua materna, o texto há que estar presente.

Um texto não é produto da aplicação de um conjunto de regras e nem mesmo o conhecimento das características genéricas do texto a ser produzido são suficientes para estabelecer um conjunto de regularidades, predeterminado que, uma vez obedecido, daria como resultado um texto adequado à situação, significativo e respondendo ao querer dizer do locutor (Bakhtin, 1992:300). Se a estrutura de uma oração pode ser resultado da aplicação de um conjunto de regras(2), um enunciado, ainda que composto por apenas uma frase (oração), jamais se deixa produzir como resultado mecânico da aplicação de um conjunto de regras. Mesmo a estabilidade relativa do gênero é insuficiente para garantir ou oferecer um caminho de produção: há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete à relação com seus itnerlocutor5es e o estilo próprio do sujeito que fala e a quem fala, isto é, suas escolhas dentre as estratégias de dizer disponíveis ou suas elaborações de estratégicas novas resultantes da articulação que realiza entre o disponível e o novo. Na elaboração do texto, a criatividade não é um comportamento que segue regras com as quais se poderia construir um conjunto infinito de orações. A criatividade posta em funcionamento na produção do texto exige articulações entre situação, relação entre interlocutores, temática, estilo do gênero e estilo próprio, o quere dizer do locutor, suas vinculações e suas rejeições os sistemas entrecruzados de referências com as quais compreendemos o mundo, as pessoas e suas relações. No texto, a uma criatividade aberta e infini8ta, se contrapõem a finitude do momento e a concretude da situação. “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que vida penetra na língua”. (Bakhtin, 1992:282). Por isso é o texto o melhor lugar de expressão da dialética entre a estabilidade e instabilidade da língua. É por isso, também, que no texto se encontram os rastros da subjetividade, das posições ideológicas e das vontades políticas em constantes atritos.

Confessado o posto de observação, de imediato emergem perguntas: como poderia o texto, assim concebido, ser a base com que sustentar o ensino de língua materna? Uma base fluida, não redutível a regras, poderia efetivamente sustentar práticas de ensino? Como medir a eficiências deste ensino – questão essencial para o pensamento neoliberal – quando a fluidez de seu objeto necessariamente se impõe nos caminhos de seu ensino e se transporta para seus produtos?

Sobre práticas escolares de regulação da produção de textos

 

Creio que a história do ensino da língua materna produziu um conjunto de respostas que constitui o que podemos chamar de uma “tecnologia da leitura e da redação de textos”, espécie de subconjunto de uma tecnologia mais ampla, aquela que constitui os mecanismos de produção do eu: “Somos los herderos de una moral social que busca las reglas de la conducta aecptabel en las relaciones con los demás”. (Foucault, 1990:54)  Sem dúvida alguma, entre as regras de conduta aceitáveis se incluem também aquelas das formas de verbalização e exposição de si mesmo: as regras dos gêneros da confissão, da consulta, da carta, da exposição etc. que se somam àquelas mais visíveis regras do bem falar, do escrever com correção seguindo os princípios gramaticais. Não é por acaso que não conseguimos jamais nos desvencilhar do ensino da gramática e agora introduzimos, com veemência neoliberal, o ensino dos gêneros discursivos.

Que tecnologias foram assim produzidas? Certamente a primeira delas diz respeito à relação entre o ato de ler e o ato de escrever. Na escola, em geral, “se lê para escrever”. Há uma junção entre as duas atividades em que uma se torna o fim da outra: lê-se um texto para escrever outro texto, no mesmo gênero ou sobre o mesmo tema; lê-se um texto para dele elaborar um esquema mnemônico; lê-se um texto para responder perguntas (sejam elas dos exercícios de sala de aula, sejam elas aquelas destinadas a avaliar a retenção de conhecimentos, nas famosas provas e antigas sabatinas); lê-se um texto, enfim, para cumprir uma ordem.

Todos conhecemos as exigências infantis: que leiamos inúmeras vezes a mesma história, que repitamos a leitura sem mudanças até mesmo entonacionais. Talvez a escola tenha se inspirado nestas práticas para trazer para o ensino esta constante repetição, muito antes do behaviorismo tentar explicar os processos de aprendizagem pela repetição e no máximo pela analogia. No entanto, entre as crianças a repetição da mesma história produz um efeito de “prazer epistêmico”, que poucos anos mais tarde deixa de existir, pela compreensão de que sabe o que se conta, para ser provocada pela descoberta do desconhecido. A prática de recontar uma história tem sua origem nesta prática infantil eternizada no processo educacional. Entre as crianças, um exercício de memória e um efeito de prazer por confirmar que o que se segue é o que se esperava que se seguisse; entre estudantes, a enfadonha tarefa de reescrever o que acabou de ler ou escutar, de antemão produz um sujeito vencido porque sua reescrita não realiza os mesmos feitos do autor lido, mesmo quando o que se leu foi uma lenda recolhida da tradição oral.

Como se sabe, Van Gogh comparou o uso das cores às notas musicais, pensando a pintura como a composição de uma partitura. Para justificar suas cópias de Rembrandt, Delacroix e, em especial, Millet, o pintor escreveu:

Quero explicar-lhe o que busco com isso e por que me parece útil copiar. A nos, os pintores, exige-se compor e ser apenas compositores, mas na música não é assim. Quem toca Beethoven acrescenta sua interpretação pessoal; na música e no canto há destaque para a interpretação e o compositor não é o único a tocar sua composição.

 

Nesta prática do pintor, duas grandes características devem ser ressaltadas: a cópia nunca é uma cópia, mas outra obra produtor da “interpretação”. Uma analogia que podemos estabelecer aqui com nossa área é a da diferença entre enunciado e enunciação. Um segundo aspecto: a prática de Van Gogh de contemplação estética das obras com base nas quais produziu suas interpretações pictóricas não são uma contemplação para realizar um quadro, mas um quadro novo em que se expressa esta contemplação estética. Estas duas diferenças são essenciais no que concerne às práticas escolares de redação a partir da leitura de um texto: não são os autores das futuras redações que escolhem os textos a ler e seus temas; não são suas compreensões profundas que estão em jogo quando escrevem, mas uma compreensão privilegiada pelos sentidos postos em circulação pelas leituras privilegiadas.

Cito apenas um exemplo. Em uma pesquisa em realização (Elizabete Afonso, 2007) a propósito da escolarização do conto popular português, seus dados revelam que nas interpretações do conto Caldo de Pedra, por exemplo, não é admitida na escola a crítica ao frade que, prometendo fazer uma sopa com pedra, logrou os agricultores ao ir lhes pedindo ingrediente por ingrediente para cozinhar sua sopa, dentro da qual apenas jogou uma pedra lavada. A interpretação aceita é somente a que criticava a sovinice e curiosidade dos agricultores. [Jamais a mentira do frade].

Em síntese, o “ler e escrever” tomado como sequências de uma só atividade, que pode ser expressa pela fórmula “ler para escrever”, toma o princípio da repetição como sua essência, em benefício da estabilização (de formas e sentidos), funcionando como uma política de contenção: repita, não busque o novo. Toda leitura deve repetir sobre o texto o já dito sobre ele; toda a escrita deve repetir o já dito. Tranquiliza-se a vida, pela mecânica do movimento repetitivo. Há movimento de superfície, aquele do pêndulo ou aquele dos corpos celestes pela física clássica.

O retorno à mesma direção da flecha

 

Talvez possamos expressar um paradoxo: a presença do texto na sala de aula implica desistir de um ensino como transmissão de um conhecimento pronto e acabado; tratar-se-ia de assumir um ensinar sem objeto direto fixo e imutável – um conhecimento estabelecido; tratar-se-ia de não mais perguntar “ensinar o quê”, mas ensinar “para quê”, pois do processo de ensino não se esperaria uma aprendizagem que devolveria o que foi ensinado, mas uma aprendizagem que se lastrearia na experiência de produzir algo sempre nunca antes produzido – uma leitura ou um texto – manuseando os instrumentos tornados disponíveis pelas produções anteriores.

Aqui as leituras já não mais se realizam para fazer algo, mas há uma inversão da flecha: em função do fazer algo vai-se em busca de textos para leitura. Foi muito breve a experiência escolar em que se tentou esta nova direção na relação entre leitura e escrita, ainda que ela esteja presente nos níveis mais elevados da formação de pesquisadores nos cursos de pós-graduação. Transferir esta experiência bem sucedida para os níveis anteriores parece uma impossibilidade: ou porque não há qualquer confiança e, em consequência, qualquer investimento no processo de ensino, nas capacidades já desenvolvidas pelos alunos, ou porque a ideologia que funda o sistema escolar ainda defende que a função da escola continua a ser a reprodução de um sistema compartilhado de referências a que somente se pode chegar pela repetição, pela inculcação e pelo formalismo.

As poucas experiências de inversão da flecha, realizadas cá e lá em algumas salas de aula, forma suficientes para que os ideólogos do sistema tenham apontado a necessidade da uniformização através de parâmetros curriculares cuja eficiência concreta se mensuraria pelas avaliações. Foi nesse sentido que caminhou o ensino de língua materna, entre nós, a partir da década de 1990, revertendo uma experiência forte que havia sido idealizada na década anterior com base nos princípios da linguística da enunciação.

Como o horizonte teórico não apresentava nenhuma alternativa que pudesse ser considerada avançada, já que os estudos da linguagem cada vez mais se encaminhavam e se encaminham para os discursos e os textos, a fórmula encontrada do retorno à tradição de ensinar algo sólido e fixo dentro do qual cabe a cada estudante adaptar-se, foi o uso da noção de gênero dos discursos, definidos por Bakhtin a partir de seus elementos básicos – conteúdo temático, estilo e construção composicional – como tipos “relativamente estáveis” de enunciados.

Descartada [ou artificializada] a vinculação dos gêneros discursivos das esferas de atividades humanas numa sociedade complexa, rapidamente a estabilidade relativa é substituída pela estabilidade, e cada gênero passou a ser definido, ter suas  características descritas, explicitadas suas condições de uso etc. E a partir daí, caberia à escola ensinar estes gêneros e novamente exercitar os estudantes no uso de cada um deles, tanto na leitura quanto na produção. Nada mais salutar do que isto para dar uma estabilidade ao instável discursivo. A heterogeneidade dos gêneros discursivos apontada por Bakhtin  acaba se reduzindo à diversidade de gêneros numa sociedade complexa., esquecendo que a noção de heterogeneidade tem muito mais a ver com a gênese de cada gênero, expressão de inúmeras vozes ao longo da história. A distinção entre gêneros primários e secundários, fórmula fecunda de compreensão desta heterogeneidade de que o autor nos deixou um exemplo em seu estudo sobre o romance polifônico de Dostoieviski, em cuja gênese está presente a minipeia, passa a ser lida como uma tipologia simples que precisa ser completada. Ora, a noção de gênero primário em Bakhtim tem a ver com a participação deste gênero na constituição de outros gêneros, estes chamados de secundários. Este movimento desaparece na leitura da noção de gêneros porque ele implicaria não na fixação ,as no aprofundamento do risco de desvios que os discursos e os textos trouxeram para o ensino de língua materna.

Nas práticas efetivas de escrita, de fato, as relações intergenéricas estão presentes. E cada vez mais, exigência inclusive do uso das novas tecnologias de comunicação.

Por fim, ler e escrever em nossa sociedade

 

Os processos de educação, como se sabe, não permitem um autêntico ingresso no mundo da escrita. Apenas dele se aproxima uma grande maioria da população que, saindo da escola suficientemente ideologizados, tem com a escrita uma relação mí(s)tica. Escrever é coisa para gênios (aliás, inúmeros jornalistas brasileiros vivem reforçando esta ideia, colocando a si mesmos como gênios porque escrevem, aligeiradamente, dado seu ofício). E estes têm que ter liberdade de expressão!!! A ninguém ocorre defender ‘o direito à expressão” para todos, porque isto implicaria uma reviravolta nos sistemas de produção de informações e sua circulação na sociedade. Parece que a área da comunicação social não pode ser submetida ao domínio público, porque isto representaria um “atentado à liberdade de expressão”.

No entanto, a imprensa tradicional – o jornal ou a televisão – vem sofrendo um ataque mais ou menos delibardo pelo uso da internet. Note-se, por exemplo, que as informações mais “quentes” sobre o atentado de 11 de setembro foram veiculados pelos blogs particulares, e não pela imprensa e suas agências de notícias.

O próprio desenvolvimento tecnológico da sociedade está abrindo o direito de expressão a todos. Certamente há aqui lugar para todos os narcisismos possíveis: mostrar-se, apresentar-se, representar-se parece ser ainda a tônica da comunicação internética. Mas este encantamento com a tecnologia e com a possibilidade de cada um ser fonte de dizer se decantará ao longo da história e certamente estas tecnologias estão nos dizendo: ler e escrever, ao contrário do que previa o fim da era de Gutemberg, torna-se uma necessidade social, porque agora, tecnicamente falando, já é possível que todos tenhamos o direito à expressão, condição necessária para a liberdade de expressão não seja um privilégio social daqueles que pertencem ao mundo da escrita. A escrita populariza-se e a leitura do produzido não mais se faz em função da repetição, mas em função da construção de compreensões distintas, engrandecendo os horizontes de possibilidades humanas.

Mais do que constatarmos que a escrita se populariza, talvez tenhamos que reconhecer e afirmar: as escritas se popularizam e, sob pena de querermos manter os privilégios, temos que aprender a conviver com as diferentes escritas nesta sociedade cada vez mais concentradora.

 

NOTAS

  1. Este texto foi escrito para minha participação no III Seminário de Educação da Faculdade de Educação da UERJ, campus de São Gonçalo, e agradeço mais uma vez à colega Profa. Mairce da Silva Araújo pelo convite. Foi publicado em Bragança, Inês F. S. et alii.(orgs) Vozes da Educação. Memórias, histórias e formação de professores. Petrópolis : DP & alii; Rio de Janeiro : Faperj. 2008, p. 123-134.
  2. Como se sabe, nenhuma teoria linguística conseguiu até agora dizer quais são todas estas regras e muito menos formular um conjunto minimamente aceitável de passagem desta estrutura da oração a enunciado efetivamente produzido. São os enunciados, no entanto, que estão presentes no texto, o que não quer dizer que este seja o somatório de enunciados, já que cada um dos enunciados é elaborado tendo em vista o texto em produção como um todo, e é este todo que define inclusive os limites de cada enunciados que o constitui. Estou usando aqui a expressão ‘enunciado’ num sentido mais restrito do que aquele abrangido por esta expressão em Bakhtin, já que para o aturo a expressão ‘enunciado’ tanto pode remeter à parte como ao todo: toda uma obra pode ser chamada de ‘enunciado’ por Bakhtin; mas também uma parte componente de uma obra é chamada pelo autor de enunciado. Ao todo, estou chamando de texto, enquanto materialização de um discurso; às partes menores em que podemos dividir este todo, mantida uma unidade interna, estou chamado de enunciados.

Referências

Afonso, Elizabete. Tradição e educação: o conto popular português vai à escola. Tese de doutoramento. Versão em elaboração na Universidade de Aveiro. Inédito. 2007.

Bakhtin, Mikhail. “Os gêneros do discurso” in. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

Folha de S. Paulo (coord. e org.) Vincent Von Gogh. Coleção Grandes Mestres da Pintura. Barueri : Editorial Sol 90, 2007.

Foucault, Michel. Tecnologías del yo. Barcelona : Paidós, 1990.

Geraldi, João Wanderley. “A presença do texto na sala de aula”. In. Lara, C. M. P. (org) Lingua(gem), texto, discurso – entre a reflexão e a prática. Rio de Janeiro : Lucerna; Belo Horizonte : FALE/UFMG, 2006.

Imprecisão linguística

Imprecisão linguística

Talvez devesse usar outra palavra, outro termo, escolher algo mais ameno, mais polido, menos agressivo e…, por assim dizer: desprovido de expressões encontradas comumente nos meios coloquiais ou…, de pobres. Sutilezas. Percebam que popular é pouco melhor do que pobre. Afinal, pobre é aquilo que ninguém quer ser, sendo.

Esse é o lapidar da luta de classes. Casa popular, bairro popular, escola popular não é o mesmo que dizer carro de pobre, bairro de pobres, escola de pobres.

Dada à riqueza de nosso vocabulário é possível dizer quase a mesma coisa, dizendo muito o contrário, ou melhor, usando palavras selecionadas. Como frutas selecionadas do supermercado: escolhidas, melhores, bonitas e que não são – até pelo preço abusivo, para todos. Imagine!

Então, para dizer sobre racismo, usamos brincadeirinha, para homofobia reservamos intolerância, para machismo, que tal conservador? Essas expressões citadas são exemplos clássicos, utilizados para traduzir ações de fala de um segmento social para outro. Até que a gente possa perceber que a diferenciação escapa a linguagem, e encontra-se em tudo, nas palavras de Romero Jucá: um grande acordo nacional.

Assim, o contorcionismo linguístico é uma arte, das mais tristes, violentas e cínicas. E se esconde tão bem acomodado pelas frestas da sociedade, que imperceptivelmente vamos tornando-o parte de nossa cultura, sem explorar as mazelas de tais práticas.

Fato é que não estudamos isso em nenhuma universidade – que dirá na educação básica, mas se chegamos à universidade com certeza já internalizamos e a conhecemos bem, afinal as redações exploram bem o domínio da linguagem impoluta.

Essa linguagem, que é a própria ferramenta da enganação, serve para amenizar as culpas, às vezes até para destruí-las. Um jovem empresário rico que arrasta com sua Mercedes uma senhora pobre que vende balões, estava brincando. Um homem que aparece em vídeo espancando a esposa, depois alega que ela teria se jogado pela janela, estava alterado; Um helicóptero que pousa com meia tonelada de cocaína não tem dono,  o piloto da FAB tinha no avião 39 quilos de cocaína.  Chamamos de coincidência que os assassinos de Marielle Franco fossem vizinhos de figuras poderosas em condomínios de luxo que abrigam 117 fuzis, assim como o vendedor de carros Queiroz, sambou na cara da sociedade internado no Hospital Albert Einstein,  acrescenta-se que esse mesmo “possível” infrator(bandido?corrupto?meliante? vagabundo? laranja?) nunca tenha sido sequer indiciado, ou levado coercitivamente para depor. E tráfico vira transporte de drogas, cortes viram contenção de verbas. Corrupção vira perdão de dívidas fiscais. O novo governo, usa da lapidação de classe, e faz várias flexões.

Um país pouco letrado. Muitas histórias contadas usando palavras selecionadas.

Assassinatos que ganham versões de troca de tiros, mulheres que usavam roupas curtas justificam estupros, crianças erotizadas que acabam por provocar pedófilos, gays que se beijam em praça pública destroem as famílias. Narrativas flexibilizadas por quem sabe fazer o bem.

A culpa desaparece de uns para surgir em outros. Sem provas, sem propriedades, sem verdade alguma. E, aceitamos, sem crítica alguma, palavras desconhecidas no lugar de outras que poderiam ser entendidas facilmente por quem tem que ser enganado. Discutimos conceitos e usamos argumentos elaborados: pós-verdade, fake news, meme, hashtag.

Nossa evolução culminou em um juiz que não é juiz. A justiça de tanto flexibilizar está fora do seu lugar. Não é só com uns. Não se enganem se não tem para uns não tem pra ninguém.

Não há nesse país justiça.  Não haverá. Lula morrerá na cadeia porque é o símbolo de que pobres têm seu lugar. Muito pior que agora esteja claro, transparente afinal. Não é mais questão de ser ou não inocente, pobres não têm direito a justiça.

Não há justiça para pobres.

Não já justiça para pobres.

Não há justiça para pobres.

O galo cantou três vezes até que a polícia viesse e Pedro negasse Jesus.

Não há justiça para pobres. Nem Deus.