Os dias, os canteiros, deram agora para morrer como nos museus em crepúsculos de convalescença e verniz e ferrugem substituída ao pólen vivo. São frutas de parafina pintadas de amarelo e afinadas na perspectiva de febre que mente a morte. Ao responsável por isso, quem quer que seja, mando dizer que tenho um sexo e um nome que é mais que um púcaro de fogo; meu corpo multiplicado em fachos. Às mortes que me preparam e me servem na bandeja sobrevivo, que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna, certo, como abro as páginas de um livro – e obrigo o tempo a ser verdade.
Da minha língua materna eu aspiro esse momento em que ela se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou de regra. O que quero é esse desmaio gramatical, em que o português perde todos os sentidos. (Mia Couto, 2004)
Nos dias atuais, pelos indícios que pipocam de vários lugares, é possível perceber que um movimento de recrudescimento da correção gramatical está em gestação. Ou se não, vejamos: (a) o sucesso momentâneo de Pasquale Neto com suas ‘dicas’ do bem dizer através da televisão; (b) o retorno das crônicas jornalísticas a propósito da forma correta de se dizer o que se quer dizer (aliás, espírito presente em nossos computadores que sublinham em vermelho e verde o que escrevemos, obrigando-nos a uma padronização insuportável); (c) a reclamação dos estudantes de letras a propósito dos cursos que baseiam suas reflexões sobre a língua em estudos linguísticos – são jovens e por isso têm maior sensibilidade ao que lhes é exigido pelo ‘mercado’ (2); (d) a proliferação das ‘franquias’ dos métodos, incluídos instrumentos e conteúdos, de cursinhos antes apenas pré-vestibulares e agora ‘orientadores’ efetivos dos processos de ensino pelos brasis afora, uniformizando e ignorando as diferenças regionais e locais; a língua há de ser uma e apenas uma de suas inúmeras variedades.
Estes indícios, do meu ponto de vista, estão apontando um recrudescimento das exigências de correção gramatical, o que também pode ser traduzido como maior exigência de silêncio da população que “não sabe falar corretamente”. É preciso afastar os perigos para que tudo, mudando, permaneça como sempre foi: que a norma definida pelos modos de falar de uma minoria se imponha como razão para silenciar uma maioria.
Em nossa prática histórica, a maioria da população somente contou, foi importante, quando se tornou necessária para reabrir os caminhos do exercício do poder de forma compartilhada pelos ‘membros da cidade letrada’, aqueles que falam bem, escrevem bem, dominam mais do que a língua. Quando estes são alijados do poder em tempos sombrios de ditaduras, eles se voltam para os modos populares de falar, falam como e com o povo para construir um movimento de derrubada da ditadura. Conquistado este objetivo, não interessa mais ouvis as vozes que falam ‘errado’, de forma ‘grosseira’; a ‘casa grande’ dos letrados volta a ter ouvidos sensíveis, a corte não resiste ao assédio do populacho. É preciso que ele aprenda a falar, para depois falar.
Nada mais pertinente, nestes momentos históricos, do que o recrudescimento das exigências gramaticais. Silencia e faz retornar à ordem (3). Nada mais pertinente do que exigir que a escola exerça sua função de refrear a língua, que ensine o bem falar e que faça isso através do ensino da gramática (misturando nesta, ao gosto da tradição, prescrições e descrições). A língua a aprender se torna estrangeira (ou estrangeira de sua própria língua se torna a grande maioria dos falantes).
Creio ser este o contexto dentro do qual devemos refletir sobre a presença de textos na sala de aula, tanto nas práticas de produção quanto de leitura e de reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados nas suas elaborações (4). Isto porque um ensino lastreado na produção e leitura de textos é diametralmente oposto àquele que, neste momento histórico, parece estar sendo clamado pelos membros da ‘cidade das letras’: escritores, comentaristas, a maioria dos professores, a quase totalidade dos jornalistas (atuais guardiões da língua) (5).
Antecipo, pois, o ponto de vista que norteará as reflexões que seguem: um texto não é produto da aplicação de um conjunto de regras e nem mesmo o conhecimento as características genéricas do texto a ser produzido são suficientes para estabelecer um conjunto de regularidades predeterminado que, uma vez obedecido, daria como resultado um texto adequado à situação, significativo e respondendo ao querer dizer do locutor (Bakhtin, 1992, p.300). Se a estrutura de uma oração pode ser resultado da aplicação de um conjunto de regras (6), um enunciado jamais se deixa produzir como resultado da aplicação de um conjunto de regras. Mesmo a estabilidade relativa do gênero é insuficiente para garantir ou oferecer um caminho de produção: há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete à relação com seus interlocutores, e o estilo próprio do sujeito que fala, isto é, suas escolhas dentre as estratégias de dizer disponíveis ou suas elaboração de estratégias novas resultantes da articulação que realiza entre o disponível e o novo.
Na elaboração do texto, a criatividade não é um comportamento que segue regras com as quais poderia construir um conjunto infinito de orações. A criatividade posta em funcionamento na produção do texto exige articulações entre situação, relação entre interlocutores, temática, estilo do gênero e estilo próprio, o querer dizer do locutor, suas vinculações e suas rejeições aos sistemas entrecruzados de referências com as quais compreendemos o mundo, as pessoas e suas relações. No texto, a uma criatividade aberta e infinita se contrapõem a finitude do momento e a concretude da situação. “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (Bakhtin, 1992 : 282). Por isso, é o texto o melhor lugar de expressão da dialética entre a estabilidade e instabilidade da língua. É por isso, também, que no texto se encontram os rastros da subjetividade, das posições ideológicas e das vontades políticas em constantes atritos.
Confessado o posto de observação, de imediato emergem perguntas: como poderia o texto, assim concebido, ser a base com que sustentar o ensino de língua materna? Uma base fluida, não redutível a regras, poderia efetivamente sustentar práticas de ensino? Como medir a eficiência deste ensino – questão essencial para o pensamento neoliberal – quando a fluidez de seu objeto necessariamente se impõe nos caminhos de seu ensino e se transporta para seus produtos? Talvez possamos expressar um paradoxo: a presença do texto na sala de aula implica desistir de um ensino como transmissão de um conhecimento pronto e acabado; tratar-se-ia de assumir um ensinar sem objeto direto; tratar-se-ia de não mais perguntar ‘ensinar o quê?’, mas ‘ensinar para quê?’, pois do processo de ensino não se esperaria uma aprendizagem que devolveria o que foi ensinado, mas uma aprendizagem que se lastraria na experiência de produzir algo sempre nunca antes produzido – uma leitura ou um texto – manuseando os instrumentos tornados disponíveis pelas produções anteriores.
Um pouco de histórias dos lugares de construção das certezas
O retorno ao ensino da gramática pode produzir a tranquilidade de consciência que o paradoxo do ensino baseado em textos coloca para a escola e para a sociedade. Definidas as normas do dizer e definidos os conceitos com que descrever a língua, há um objeto a ser transmitido ou ensinado, em seu sentido tradicional. Há prescrições e descrições. Parece que hoje é esta tranquilidade que se busca, tranquilidade desejada e jamais confessada, porque é em nome de outras coisas que se pede o ensino da gramática: correção, competência, competitividade, produtividade e eficiência e, por fim, acesso aos bens culturais. Ou seja, volta-se a imaginar que de um conhecimento gramatical resulta necessariamente um bom desemprenho linguístico (7). Nossa questão pode ser resumida, então, numa dicotomia – um ensino baseado em textos ou um ensino baseado no conhecimento gramatical.
Gostaria de começar esta discussão procurando na história alguns elementos que possam ajudar por que estamos sempre às voltas com a questão do ensino gramatical. Talvez revisitar a história ajude a compreender esta constância de forma mais densa, já que ensinar gramática ou não ensinar gramática não é um dilema surgido nos últimos anos. Como sabemos, e às vezes esquecemos, este é um problema bem mais antigo e sua persistência revela muito mais do que um simples enfileirar-se de um ou de outro lado. Nesta disjunção, optar por um sim ou por um não é expor-se, por desvelar mais do que uma concepção sobre a língua (e a linguagem). Escolher um lado ou outro é também se filiar a diferentes concepções dos modos de pensar a vida social e as relações entre os sujeitos e de ponderar o peso da pressão do passado sobre o futuro.
É instrutivo lembrar certos pontos cruciais de nossas representações para ter presente a constância do problema que a linguagem é e aquilatar o peso da tradição em que nos movemos, tradição que encontra abrigo mesmo nos textos sagrados.
Podemos retornar ao mito de Babel (Gênesis, capítulo 11, versículos 1 a 9) para encontrar nosso dilema. Antes de Babel, todos se compreendiam? É o que a representação mitológica quer que admitamos; depois do ‘pecado’ do orgulho de querer tocar a divindade pelo engenho humano, o castigo: a diferença linguística aparece como pena imposta e repete materialmente a expulsão do paraíso. A diferença torna presente o pecado e seu castigo. Buscar a unidade linguística seria purgar o pecado e reencontrar a felicidade perdida. Se Babel introduz as diferentes línguas, introduz também um outro conceito: o de estrangeiro, cujo sentido somente pode ser composto pelo seu inverso, aquele que é natural, aquele que pertence ao grupo. Assim, a diferença linguística diz também quem é o estrangeiro: aquele que fala diferente. É o conhecido outro episódio bíblico (Juízes, capítulo 12, versículos 1 a 6): há que se pronunciar adequadamente shibolet para escapar da morte e mostrar o pertencimento ao grupo. A diferença identifica. Neste sentido, há dois movimentos paralelos e opostos: o sonho da unidade perdida e o convívio com a diferença.
Cheguemos mais próximos de nosso tempo. Podemos pensar sobre o mito de Pentecostes e o domínio das línguas na pregação que segue e que funda a cultura ocidental cristã em que nos movemos. Aqui, à diferença escapam apenas aqueles enviados em pregação: unidade de pensamento e de concepção na diversidade linguística ultrapassada pela intervenção do Espírito. A comunidade cristã se faz una em várias línguas, mas por breve tempo: a língua do império também se torna a língua de Deus e as celebrações rituais católicas somente forma conhecer as línguas vulgares muito recentemente. O tempo já não era de construir a unidade, mas de sobrepor à diversidade apenas uma língua – aquela do poder – para nela e com ela exercer o poder.
Neste tempo de estrita separação – uma língua suposta fixa e imutável para a religião e a ciência; outras línguas se festando na vida pública das feiras e das praças -, o acesso à cultura exige o aprendizado do latim, e para aprender o latim o caminho a percorrer implica conhecer sua gramática e seu vocabulário. Aprender a língua que não se fala tem sua ‘via-crucis’ na gramática e no dicionário. Mata-se a língua para dominá-la em seu esqueleto; domínio paradoxal, porque, posto em movimento o saber adquirido através do uso da língua, ressuscita-se a diversidade. Mesmo o latim das ciências e da Igreja não se manteve uniforme ao longo do período histórico de alguns séculos em que foi a língua privilegiada e dominante.
Na experiência histórica de aprender uma língua que não se fala, aprendeu-se um caminho para aprender: o estudo da gramática. Quando as línguas que se falam – as línguas maternas – tornam-se objeto de estudo, o modelo didático é aquele do estudo do latim, que acaba sobrepondo-se a outras possibilidades. É interessante observar a defesa do ensino da língua materna, antes de ensinar o latim, que desenvolve Comenius, por exemplo, em pleno século XVII.
Se surgiu a necessidade de ensinar uma língua para aqueles que a falam como língua materna, certamente é porque como a falam não se coaduna com a imagem de como esta mesma língua é ou deveria ser! E eis que, de fato, aparece a diversidade e reaparece o mito da unidade, agora de uma e mesma língua. Unidade que seria produto não do uso da língua – este sempre está a produzir estabilidades instáveis, mas produto do estudo da língua, da sua descrição e da definição de suas normas do ‘bem dizer e escrever’.
Pode-se defender que esta unidade responde à necessidade da comunicação entre os membros de uma mesma comunidade, espaço em que uma tendência à estantardização se constrói, exercendo sobre os falantes uma pressão no sentido da estabilidade das formas da língua. No entanto, a vitalidade da língua expressa-se no fato de que seu uso implica mudança: o retorno do estável é espaço de instabilidade. É este movimento constante entre estabilidade e instabilidade que torna a língua o que ela é: uma atividade com que organizamos nossas próprias experiências, sempre únicas e irrepetíveis, e compartilhamos os quadros instáveis de referências comuns onde o que é único adquire algum sentido. Da necessária padronização para a partilha, parte-se para uma divisão que institui o certo e o errado em termos de língua. Desliza-se do padrão para a norma. O padrão se fixa, se imobiliza, como se sua vocação fosse a esterilização da vitalidade da língua.
Nesse contexto e com essa história, cheia de matizes, é óbvio que nosso dilema “ensinar ou não ensinar gramática” aparece e se mantém constante, sempre a interrogar o que fazemos no ensino da língua materna. Em um sentido, ensinar gramática é ensinar as normas do padrão, na vã ilusão de que todos se adaptem a um só modo de dizer e na esperança iludida de que o padrão não se altere no tempo e no espaço. Trata-se de pressionar o tempo futuro – e o futuro dos falantes – com o padrão construído no passado, imaginando-o superior aos novos padrões que o tempo fará surgir.
Em geral, os novos guardiões da língua e de sua pureza equivocam-se num deslize que vai da padronização instável ao purismo linguístico. Quando um padrão é predicado como ‘certo’, como ‘correto’, já não se está mais falando da padronização que os falantes constroem para suas partilhas, mas se está falando da imposição imobilizadora do certo/errado, construída fora dos usos da língua, nas relações de poder.
Observe-se, pois, a existência de duas funções a que a gramática serve: enquanto escrita sobre a língua, procura regê-la e fixa-la para que, com base no passado, a instabilidade seja afastada e a unidade – retorno ao mito de Monos, da unidade pré-babélica (ao menos dentro de uma mesma língua…) – reapareça. Sujeitar a instabilidade, garantir a fixidez e, a partir daí, buscar a unidade perdida.
2. O texto: um pouco de história das instabilidades
Privilegiar o estudo do texto na sala de aula é aceitar o desafio do convívio com a instabilidade, com um horizonte de possibilidades de dizer que, em cada texto, se concretiza em uma forma a partir de um trabalho de estilo. E ainda mais: é saber que a escolha feita entre os recursos expressivos não afasta as outras possibilidades e que seguramente algumas delas serão manuseadas no processo de leitura.
Um texto é sempre uma possibilidade dentre múltiplas possibilidades, mesmo consideradas as constrições da situação em que é produzido. Não por acaso, a personagem de José Saramago de História do Cerco de Lisboa, o revisor, afirma que todo revisor sabe que um texto nunca está pronto e sempre pode vir a ter outra forma.
Ora, introduzir o texto na sala de aula é introduzir a possibilidade das emergências dos imprevistos, dos acontecimentos e dos acasos. Para escapar desta teratologia, há que cercar a introdução por cuidados de múltiplas ordens, para estabilizá-lo, fixá-lo e impedir sua adulteração significativa. O ideal, do ponto de vista da estabilidade paradoxal que a escola assume – ela, ao mesmo tempo, se diz formando para o futuro, mas faz isso forçando para que o futuro seja a repetição do passado – seria afastar de vez o texto da sala de aula. Mas isto é impossível por uma razão mais ou menos óbvia: o processo de fixação de valores demanda o convívio com discursos cujas materializações se dão nos textos; os valores e as concepções circulam através dos textos e, sem eles, a escola não cumpriria com uma de suas funções mais sofisticadas: a reprodução de valores com que compreender o mundo, os homens e suas ações. De um lado, o texto traz o perigo da instabilidade; de outro lado, o texto é um lugar privilegiado para construir estabilidades sociais. Não há escapatória: no ensino de língua materna o texto há de estar presente.
Como lidar, pois, com este objeto ímpar, necessário e indesejável? A título de ilustração, consideremos dois compêndios didáticos: a Selecta em prosa e verso, de Alfredo Clemente Pinto, cujo prólogo é datado de 1883 (manuseia a 40ª. edição, de 1930), e a Grammatica e anthologia nacional – 3ª. e 4ª. série, de J. Mesquita de Carvalho (editada em 1936, manuseio a 1ª. edição) (8).
A Selecta contém um prólogo, eloquente por si só no que concerne às funções que a leitura dos textos deve preencher. Como se trata de obra de acesso mais difícil, não resisto à transcrição de partes do prólogo.
Para além do que o próprio prólogo aponta no que tange aos aspectos de valores que nortearam a seleção dos textos, no que concerne à forma de linguagem e no que se refere ao uso a fazer dos textos – decorar bom número deles para adquirir dicção correta e elegante -, as notas de rodapé, acrescentadas aos textos, atendem a questões de várias ordens que merecem ser destacadas:
a) a grande maioria são de vocabulário, apresentando o sentido de palavras supostamente desconhecidas pelo leitor;
b) outras dão informações de ordem gramatical, para extrair uma norma e apontar um desvio aparentemente detectável no uso comum da língua, já que merece ser apontado: Ex. Proceder é verbo intrans. e exige um compl. regido da prepos. a. ex. proceder a um inquerito, á leitura da acta, etc., e não proceder um inquérito , a leitura da acta. (p.9)
c) há também observações sobre novas expressões: Ex: Todas entregues; todas aqui está em lugar de totalmente, completamente. Por attracção empregam os escriptores modernos em vez do adverbio o adjectivo todo, toda, todos, todas, concordando-o com o substantivo ou pronome; ex: Estava todo molhado; toda molhada, isto é, completamente. Elle era todo ouvidos. Ella era toda ouvidos. (p.. 26)
d) outras dão informações biográficas e bibliográficas sobre os autores dos textos.
Estas notas de rodapé e os objetivos apresentados no prólogo nos ensinam que esta presença do texto, aparentemente nem sempre na sala de aula, tem por objetivo tanto extrair normas quanto ideias do bem dizer. Inúmeros destes textos devem ter servido para leituras silenciosas e extra-classe; outros foram lidos em aula pela professora ou professor e depois, em voz alta, repetidos pelos alunos, lendo melhor quem melhor se aproximava da dicção da professora ou professor.
Outra forma desta presença é aquela apontada por Franchi (1088): o professor fazia mudanças no trecho de um autor e pedia que os alunos reescrevessem. Acertava quem, na reescrita, melhor se aproximasse do original. Muito mais recentemente, os textos têm sido ocupados para um exercício de pontuação: o texto original sobre a mutilação de seus sinais de pontuação e depois é apresentado ao aluno que tem a tarefa de pontuá-lo. Acerta quem descobrir a pontuação original. Como se pode ver, nestes dois últimos casos, as incertezas, as instabilidades são afastadas pela garantia que fornece o original!
Consideremos agora a Grammatica e Anthologia Nacional. Neste volume não há apresentação, e o livro se inicia com a apresentação do programa oficial das séries III e IV. Este compêndio se parece com os livros didáticos em circulação nos anos 1960/1970, mas os textos aparecem na ordem inversa daqueles dos modernos livros didáticos. Há uma lição de gramática; segue-se um conjunto de textos. Qual o uso previsto para estes textos? Certamente permanecem alguns ndos usos apresentados no prólogo da Selecta antes referida. Mas as pistas de manuseio deixadas no exemplar que estou manuseando são impressionantes. Não há observações ao estilo daquelas das notas de rodapé. Parece que o uso feito pelo estudante que manuseou este exemplar foi o de mostrar que aprendeu o conhecimento gramatical estudado imediatamente antes: noto, por exemplo, que o texto “O liberal e o magnânimo”, um texto de Aristóteles (p. 94-96), foi impresso com todas as ocorrências da palavra que destacadas, e a lápis o estudante escreveu qual a classe gramatical ou qual a função exercida pela palavra. Não é necessário dizer que este texto faz parte do conjunto de textos que segue à lição intituladas FUNÇÕES DO QUE (iniciada na p. 87).
Em outro estudo (Geraldi, 1991) apontei algumas das formas perigosas de entrada do texto para a sala de aula e certamente outras ainda podem ser apresentadas. Quando se aponta para o fato de que o texto tem sido um pretexto para o exercício de gramática ou para a ideologização do estudante, também se está apontando para a existência de outras possibilidades e certamente estas outras possibilidades foram exploradas, muito mais por alunos do que por professores. Muito mais fora da sala de aula do que em seu interior.
Conversando certa vez com um aluno da escola básica, ouvi surpreso que ele gostava muito do livro de português., só que ele imediatamente perdia a graça porque, ao recebe-lo no início do ano, lia todos os textos e depois era somente repetição. Os textos lhe interessavam, e deles fazia uma leitura não escolar, não autorizada, não de exercícios. E, ao ler, certamente operava com suas contrapalavras para construir suas compreensões. Do contrário, desistiria da leitura no primeiro texto da primeira lição, como se faz na escola, onde não há espaço para a contrapalavra do leitor, já que ela pode trazer para a sala de aula a presença do acaso, da inexatidão, do fugaz, do possível, de que darei outro exemplo.
Tenho frequentado sebos, onde adquiro livros já manuseados. Há poucos dias encontrei, num destes sebos, o livro Os 422 soldadinhos de chumbo do Senhor General, do austríaco Rudi Böhn (uma edição primorosa da Editora Sophos Ltda, 2003). Os soldadinhos de chumbo, revoltados pela convocação semanal para uma guerra comandada pelo General Floriano Aragon de Albuquerque, elegem três representantes que saem da caixa escura em que são guardados e vão ao mundo em busca da resposta do porquê se fazem guerras e de um lugar para viver onde não existam guerras. Ao final do livro, nesta edição, há cinco páginas em branco. Na primeira delas, há quatro traços feitos com régua, como se fossem linhas. Em três destas linhas está escrita, em letra cursiva, à caneta esferográfica, caligrafia clara e pedagógica, a seguinte pergunta:
– O que você(s) colocaria(m) no museu para que ficasse somente na lembrança das pessoas?
A resposta, escrita a lápis, com letra infantil:
– As botas do general e a inveja.
A sequência “e a inveja” foi apagada. Uma resposta não desejada. Aliás, quando mostrei esta descoberta para um professor, imediatamente ouvi a admirada pergunta Como colocar a inveja num museu? No entanto, esta resposta indesejada mostra o nível de compreensão a que chegou o leitor: não basta guardar as botas do general ou o uniforme dos soldados nos museus. É preciso que uma das causas das guerras seja museificada, isto é, deixe de existir no mundo da vida. Provavelmente, a inveja motivou brigas de que participou este pequeno leitor. Ao trazer a vida vivida para a leitura do texto, ele está nos mostrando os perigos que a presença do texto traz para o funcionamento da aula: o texto abre as portas para o inusitado, para o mundo da vida invadir a sala de aula, para o acontecimento conduzir a reflexão, sem que os sentidos se fechem nas leituras prévias e privilegiadas com que os textos têm sido silenciados quando presentes na sala de aula.
É muito mais fácil e muito mais consoante com os modos de funcionamento da escola lidar com conhecimentos gramaticais. Mas mesmo quando se pretende um trabalho ‘científico’ de descrição deste objeto que é a língua, facilmente se desliza pra o prescritivismo: da descrição de uma estrutura linguística de um certo momento – por exemplo, de que uma oração normalmente se compõe de sujeito e predicado – extrai-se que toda oração deve ter sujeito e predicado. Ora, sabemos que hoje a estrutura da frase, no uso corrente mesmo jornalístico, já não obedece mais à estrutura sujeito/predicado, mas tópico/comentário.
Consideremos apenas alguns exemplos de boa intenção no ensino de gramática descritiva. Ensina-se a classificar palavras ou orações de um período e pretende-se justificar este ensino com a necessidade que têm os estudantes de aprender a classificar. O essencial do raciocínio classificatório, no entanto, é a aprendizagem da construção de critérios que servem de base para a classificação. Aprender a definição de uma classe e depois procurar exemplos desta classe é um exercício mecânico e normalmente de difícil resolução quando os critérios a partir dos quais as classes foram obtidas não é estudado. As gramáticas escolares, todas inspiradas na gramática tradicional, vão muito pouco além das classificações (há mais ou menos dois séculos, fazer ciência era classificar os objetos e processos, e hoje a ciência está longe de ser meramente taxonômica). Estudam um pouco de funções sintáticas, sem que o processo de construção sintática seja focalizado, de modo que o estudo das funções resulta novamente numa classificação dos componentes de uma oração ou período! De resto, quando vão além, caem na construção de normas!
Como todos os raciocínios que poderiam ser desenvolvidos no ensino gramatical podem ser desenvolvidos no ensino de outras disciplinas científicas, e como maior proveito para a capacidade de observação, abstração e generalização, pessoalmente considero o ensino de gramática, na escola, uma perda de tempo lastimável.
Em seu lugar, há muito para refletir sobre a linguagem e sobre o funcionamento da língua portuguesa, de modo a desenvolver a competência linguística dos já falantes da língua, permitindo-lhes um convívio salutar com textos e com a observação dos recursos expressivos postos a funcionar nos textos. Muito mais do que classificar, trata-se de perceber relações de similitudes e de diferenças. Nesse sentido, o que teoricamente se chama de atividades epilinguísticas são mais produtivas, até mesmo para o desempenho de um purismo linguístico – que Deus dele nos livre! Apenas para ficarmos no terreno extremamente produtivo do cotejo das diferentes formas de dizer alguma coisa a alguém, e das seleções entre estas variações que necessariamente as condições da situação impõem, pense-se por exemplo nas inúmeras formas de dizer em educação, importa pouco chegar ao que já foi, porque seu compromisso é trabalhar para se chegar ao que sempre estará por vir.
Notas
Este texto foi elaborado com base em várias intervenções orais em cursos de formação de professores ou eventos a eles destinados em tempos passados. Escrevê-lo adveio do convite que me fez a organizadora do volume em que foi publicado, minha ex-orientanda de mestrado na UFMG. Do ponto de vista pessoal, observando os anos de publicação, nota-se que entre este texto e o texto anterior se passaram dois anos: foram os primeiros anos da aposentadoria em que, embora tenha permanecido vinculado ao programa de pós-graduação em Linguística da Unicamp, afastei-me bastante das atividades acadêmicas, por várias razões, entre outras a perseguição descarada que sofreram orientandos meus no programa, chegando ao ponto de um candidato ter sido aprovado com as melhores notas nas provas mas ser reprovado na entrevista depois de dizer que seria meu orientando. Cicatrizes permanecem, sempre. Desde que fui considerado “incapaz” de avaliar meus alunos, deixei de ministrar cursos e de participar de bancas no programa. Sinto muito particularmente pelo fato de a perseguição ter atingido de forma um tanto canhestra e monstruosa meu ex-orientando Lucas Oda, pelo simples fato de ter me escolhido como orientador num tema clássico [o amor cortesão]. Especialistas imaginam os outros como imbecis. Este texto foi publicado em Gláucia Muniz Proença Lara (org). Lingua(gem), texto, discurso. Entre a reflexão e a prática. Rio de Janeiro:Lucerna;BeloHorizonte:FALE-UFMG,2006, p. 13-29.
Marinalva Vieira Barbosa (2004), em pesquisa realizada em três universidades, constatou que a maioria absoluta dos alunos dos cursos de Letras cujos currículos beneficiam os estudos linguísticos, em prejuízo dos estudos gramaticais tradicionais, concluem o curso insatisfeitos pelo fato de não terem ‘aprendido’ português, isto é, não terem aprendido as descrições tradicionais e as regras que permitiriam o exercício da correção gramatical sem qualquer dúvida a propósito de como se deve dizer.
A manutenção do silêncio – em nome da correção – e a manutenção da ordem – em nome da globalização e da hegemonia de um pensamento único – são dois lados de uma mesma moeda.
Para evitar desnecessários esmiuçares, vou assumir que todo texto é a materialização linguística de um discurso, cuja materialidade ‘sustenta’ os sentidos possíveis e aparentemente impossíveis. Aparentemente impossíveis porque no mesmo texto se cruzam outros discursos com os quais o texto se relaciona, dos quais se afasta ou dos quais se aproxima. No texto, o interdiscurso também se materializa, e as marcas que aí deixa é que permitem imiscuírem-se as contrapalavras, produzindo as instabilidades que o discurso gostaria de evitar, mas que não consegue porque os sentidos afastados estão presentes, permitindo este movimento constante entre a estabilidade e a instabilidade dos sentidos. O interdiscurso é possível porque a intercompreensão se sobrepõe a interincompreensão entre discursos.
A propósito, ver as teses recentes de Cavalcanti (2006) e Mendonça (2006). A primeira analisa as posições puristas de jornalistas da Folha de S. Paulo; a segunda estuda o movimento purista desta virado do século.
Como se sabe, nenhuma teoria linguística conseguiu até agora dizer quais são todas estas regras e muito menos formular um conjunto minimante aceitável de passagem desta estrutura da oração a um enunciado efetivamente produzido. São os enunciados, no entanto, que estão presentes no texto, o que não quer dizer que este seja o somatório de enunciados, já que cada um dos enunciados é elaborado tendo em vista o texto em produção como um todo, e é este todo que define inclusive os limites de cada enunciado que o constitui. Estou usando aqui a expressão ‘enunciado’ num sentido mais restrito do que aquele abrangido por esta expressão em Bakhtin, já que para o autor a expressão ‘enunciado’ tanto pode remeter à parte como ao todo: toda uma obra pode ser chamada de ‘enunciado’ por Bakhtin; mas também uma parte componente de uma obra é chamada pelo autor de enunciado. Ao todo estou chamando de texto, enquanto materialização de um discurso (ver nota 4); às partes menores em que podemos dividir este todo, mantida uma unidade interna, estou chamando de enunciados.
Incluo como ‘conhecimento gramatical’ o reconhecimento das características dos gêneros discursivos, trabalho que desliza com facilidade da relativa estabilidade dos gêneros à sua fixação por características de exemplares do gênero tal como foram produzidos no passado. Infelizmente, muitos dos trabalhos com base em gêneros discursivos, tomando Bakhtin como fonte de inspiração, seguiram a tradição dos estudos da linguagem: definir as estabilidades, esconder as instabilidades e fixar a questão do gênero em sua composição formal, esquecendo que esta, ao se deixar penetrar pela vida, desestabiliza-se. Trata-se aqui, sempre, de uma opção de ordem política: escolher entre o estável e o instável é projetar um futuro, sob pressão do passado, experiência que é preciso suplantar.
Os dois volumes, encontrados em sebo de Campinas, pertenceram a Juracy Ferraz Valente, pela assinatura constante nos dois exemplares. Pelas assinaturas, aparentemente as posses se deram numa mesma época. De qualquer forma, eles forma manuseados por um mesmo sujeito.
Referências
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Barbosa, Marinalva Vieira. Entre o sim e o não, a permanência – o discurso do graduando em Letras sobre o ensino da língua materna. Dissertação de mestrado em Linguística, Unicmap, 2004.
Carvalho, J. Mesquita. Grammatica e anthologia nacional – 3ª e 4ª série. Porto Alegre : edição da Livraria do Globo, 1936.
Cavalcanti, Jauranice Rodrigues.No “mundo dos jornalistas”: discursividade, identidade, ethos e gêneros. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2006.
Couto, Mia. Luso-Afonias – a lusofonia entre Viagens e Crimes. Questão, n. 1. Faro : Universidade do Algarve, 2004.
Franchi, Carlos. Criatividade e gramática. São Paulo: CENP/SEcr.de Educação do Estado de São Paulo, 1988.
Geraldi, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.
Mendonça, Marina Célia. A luta pelo direito de dizer a língua: a linguística e o purismo linguístico na passagem do Século XX para o Século XXI. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2006.
Pinto, Alfredo Clemente. Selecta em prosa e verso dos melhores autores brasileiros e portuguezes. 40ª. Ed., Porto Alegre : Livraria Selbach de J. R. da Fonsenca & Cia, 1930.
O fazer literário é algo terrível. O não fazer é ainda mais terrível. Escolho. Isso é tão novo para mim, é preciso sempre me esconder e revelar aos poucos. Tenho medo. Essa coisa toda de mulheres negras. Cenários e espaços de fala, e muitas vozes e vezes se somam. Interessa-me mais aquelas, as que não alcanço. Não há desprezo nenhum nisso. Leio interessante artigo de uma jovem negra, na verdade são duas: Raquel(Santana) e Carolina(Moraes), escreveram sobre o relatório da organização Internacional do Trabalho sob a ótica do direito trabalhista e a interseccionalidade de gênero e raça. O artigo a que me refiro chama 8 de março e o centenário da Organização Internacional do Trabalho. Números sempre escandalizam, fosse eu pesquisadora estaria em frangalhos, querendo entender o que querem dizer, muito embora eu saiba que os números não traduzem as narrativas, que conheço em minhas e de outras experiências.
“Se, por um lado, a conclusão do Relatório é no sentido de que a dedicação ao trabalho doméstico não remunerado influencia na qualidade dos postos de trabalho ocupados pelas mulheres, por outro, chama atenção que, no Brasil, segundo dados de 2011, enquanto mulheres brancas eram remuneradas com 70% dos valores médios da remuneração masculina, as mulheres negras auferiam o rendimento médio de 29,1% desses mesmos valores. E ainda, essas mulheres negras são as que mais ocupam profissões historicamente precarizadas, tais como o trabalho doméstico remunerado, no qual, conforme dados de 2015, a proporção de mulheres brancas que são empregadas domésticas é de 10,3 para 18 de mulheres negras.” (texto disponível na integra em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/8-de-marco-e-o-centenario-da-organizacao-internacional-do-trabalho-26032019)
Preciso alcançar aquela menina que fez um teste, prova para concorrer a uma vaga, mas fora barrada pelo cabelo armado (quem dera), pelo nariz largo, de pele retinta ou mesmo mestiça, aquela jovem exótica que não atende ao padrão do mercado. Das mulheres que cuidam das filhas e filhos de outros enquanto negligencia aos seus. Entregues a própria sorte de um estado cada vez mais omisso. Reescrevem a navalha que a carne mais barata do mercado é a negra, no mercado pós-escravagista. São dados atuais… dados lançados numa mesa de jogatina. É sorte da conjuntura, e o azar que pode ser prorrogável por mais tempo do que aguentamos. Aguentar é uma palavra bastante forte, parece mesmo à imagem de um fio que se estica até que se arrebente fio a fio, e mais um, outro, e ainda outro e até que sobre apenas um, que de tão fino, quase invisível – tais quais nossas histórias. E me vejo relendo Carolina de Jesus. Outrora posso construir uma narrativa em que alguém, mulher e negra, sem tantas oportunidades, precisa limpar a sujeira dos homens e mulheres brancas como Bettina – que acumulou um rico patrimônio investindo em ações, e recebendo pomposas doações de incentivo do pai. Eu disse limpar? Queria dizer catar. Eu gosto da catadora. Papéis e leituras tão imbricados que parecem mesmo uma coisa só. Aquilo que botamos fora, um lixo. Descartável. Carolina, escritora primorosa, negra e favelada, que o diga. Em seus relatos e compreensões da vida, surgem intercaladas mãe, fome, apreensões da vida, política, exclusão, crianças, fome, analfabetismo e a fome. Sim, citei fome duas vezes anteriormente, é o desejo de intensificar essa sombra que está em todo texto de Quarto de Despejo. Revisito essa obra prima, e cada leitura é uma nova que se faz em outras possibilidades e olhares. Um trecho que antes não me marcava, mereceu destaque no meu caleidoscópio, trata de uma intimação para que ela comparecesse a delegacia, e uma vez lá, em diálogo com um policial/ delegado, ele fala da educação de seus filhos e conclui que educação pode transformar a vida das pessoas, ao que ela concorda, mas vai além e pensa que ele deveria dizer isso aos políticos e não a ela, e finaliza a sua reflexão relacionando-a fome.
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”
É interessante que a autora tida como semi-analfabeta, escreve e lê como poucos. É por isso mesmo que é um tanto prazeroso fazer a leitura de seus diários, e ver a ótica de uma intelectual negra a respeito do seu fazer literário e de sua vida. A autora entende as frustrações das mulheres, as opressões. Relata cotidianos de desventuras que arrastam para vícios, violências, marginalidades, e morte. Errado pensar que ela estabelece julgamentos sobre essas questões, seus relatos muito mais do que um pedido de socorro, minto, não são um pedido de nada, esmola era outra coisa, seus textos são tentativa de organizar seu pensamento, e fazem-se denúncias de várias situações de invisibilidade. À medida que vamos lendo, somos transformados no quarto de despejo. Talvez só os negros, talvez só os pobres. Não sei ao certo o significado deste cômodo nas casas pelo Brasil, a mim parece-me um quarto escondido, onde depositamos nossas sobras, rejeitos, quinquilharias e aquilo que ainda não podemos/queremos jogar fora. Tem uma passagem da narrativa que somos submersos nessa realidade de desumanização das pessoas, vejamos:
Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com meu filho José Carlos sem motivo. …Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganância de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monótono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas: – Hum! Tá gostosa! A dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.
Ao revelar seu entendimento, que não é pouco, sobre a organização econômica e seu papel diante das misérias, torna impossível que quem lê não se sinta incomodado com a sociedade que permite tais condutas, e conclui ambiguamente que está podre. Na trajetória de seus relatos vamos experimentado um pouco de tudo: a tentativa de calar a mulher negra – que não é pra casar –, a maternidade dos filhos bastardos, a estranheza da erudição, o assédio sexual, a objetificação do corpo negro e a recorrente amargura e desespero pela incerteza do futuro e sobrevivência, dia após dia.
“Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que Ele ficou de mal comigo?”
Não estamos de mal, outras vezes estamos mesmo. O bem e o mal de cada um, quando renunciamos aos nossos textos, nossas dores, nossos silêncios. É o mal que esvazia tudo, e eu consegue fazer compreensível que uns tenham fome, não me refiro àquela que alimenta a poesia, ou a escritura, mas a que nos torna insignificantes e devastados. O bem eu não sei mesmo. Talvez um desejo e um querer. E existe vida, e nossos filhos e dos outros, ah, as crianças! E assim, seguimos. Eu sei que meu fazer não é grande literatura, já me disseram isso. Muitas vezes e vozes. E o meu mal é que não escuto sempre.
trechos extraídos de JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2007, (Sinal Aberto).
O mar, em nossa pequena praia, murmureja. Como não sou parte do “povo das águas”, escuto mas não compreendo o que o mar tem a me dizer. Somente percebo o marulhar calmo: Barequeçaba é uma praia de raras ondas, quase uma piscina com águas que morrem na areia. E uma areia dura, boa para caminhar, plana: as caminhadas podem ser de tênis. Eu ponho o pé n’água: preciso que ao menos um pouco de litium me entre pelos poros, já que o mar é uma bacia de litium, mas mesmo morando cá, continuo eu às voltas com minhas receitas dos controlados.
Caminhar pela praia permite captar cenas. Particularmente porque esta é chamada uma praia de velhos e crianças. Muitos avós com netos; mas também muitos casais novos com seus filhos mais novos, novíssimos. Alguns nem andam, outros recém ensaiam os primeiros passos – todos vão para a água.
Noutro dia encontro pai e mãe encorajando uma menina de seus 2,5 anos a enfrentar a areia molhada, pisar com todo o pé: ela caminhava na ponta dos pés e os pais incentivavam para que pusesse todo o pé “no chão de areia molhada”. Como pais, ensinando a voar com os pés no chão, firmes, inteiros.
Mas há cenas que acabrunham. Verdadeiros abracadabras. Cenas de terror.
Falo de uma do último domingo, quando a praia recebe o que aqui chamam de “turista”: os donos de casas de veraneio e seus convidados ou seus inquilinos – afinal, o mar não está para peixes nestes tempos bicudos e a classe média que votou para que tudo isso fosse o que é, agora põe placas de “aluga-se para fins de semana e para temporada” em frente às casas, algumas delas com placas no alto dizendo “Presente de Deus”. Tudo indica que os votos não levaram deuses ao olimpo do Planalto, somente pó de traque dos gritos insistentes de MITO, MITO, MITO. Escafedeu-se. Agora alugam as casas.
Pois neste domingo a praia tinha movimento – aqui, nem na alta temporada a praia fica cheia. Faço minha caminhada. Me chama atenção um menino feliz pulando supostas ondas, atirando-se na água, voltando para areia. Brincava sozinho e em rebuliço. Ria.
E riso traz outros risos. Na volta já encontro no mesmo espaço, não um menino feliz, mas vários mais ou menos da mesma idade, entre 3 e 4 anos, brincando juntos, correndo um atrás do outro, jogando-se na água, rindo, felizes.
De repente vejo uma mulher vindo em passos apressados para perto dos meninos. Enxergo ainda de longe. Ela trazia algo nas mãos. Imaginei: vai estragar a brincadeira, vai levar o filho para um suco qualquer. Mãe estraga-prazeres.
Chegamos mais ou menos juntos, ela vindo na vertical, eu caminhando na horizontal. Então assisto o horror: ela trazia uma metralhadora cuja bala é água. Entregou ao filho para que brincassem com os amigos. Já trazia a metralhadora carregada. O menino pegou o brinquedo, arremedo do símbolo do mal, e começou a “atirar” nos amigos. Desapareceu o sorriso: ele sério, estava brincando de matar. E matar é coisa séria. Os amiguinhos corriam, caiam n’água e ele gritava: matei, matei! A mãe aplaudia a seriedade da morte que seu rebento agora causava em amiguinhos assustados. Quem sorria não eram mais as crianças, era a mãe. Os meninos desarmados fugiam, o matador, sério, matava!
Interrompi a parada… não queria mais ver o que antes alegrava minha passagem. Continuei rumo ao fim da praia, junto ao morro que a cerca pela esquerda – há outro à direita, não se preocupem. O da esquerda, habitado e habitável; o da direita inabitado e inabitável.
Mas não pude deixar de pensar: A MÃE PREPARA SUZANO. A mãe, por acaso. Poderia ter sido o pai, que provavelmente comprou o brinquedo para a praia.
Tragédias são sempre construídas pela vontade dos homens e das mulheres.
– Minha mãe, faça-me a ceia, depressa, não devagar,
qu’ eu tenho uma aposta feita ou de perder ou de ganhar.
– Não apostes, ó meu filho, deixa-te de apostar,
Mariana é muito fina, não se deixa enganar.
– Pelo modo que há-de ser, ninguém no há-de pensar:
hei-de me vestir de madama, ao jardim vou passear.
– Oh, que dama é aquela no jardim a passear?
– Sou filha de tecedeira, fiado venho buscar.
– Esse fiado, menina, ‘inda ‘stá por dobar.
– Doba, doba, Mariana, depressa, não devagar,
é noite, faz escuro, tenho muito para nadar.
– Também tenho bons cirados para a ir acompanhar.
– Nos criados da menina há bem pouco que fiar.
Doba, doba, Mariana, depressa, não devagar.
– Também tenho boas salas para a menina ficar.
Também tenho bons colchões para a comigo deitar.
A dama, de contente, à noite não quis cear.
Por essa noite fora, Mariana começou a gritar.
– Não grites, ó Mariana, não te queiras defamar,
que eu sou um rapaz solteiro para contigo casar.
‘Inda para mais certeza sou conde de Montalvar.
Logo nessa mesma noite à venda se foi gaber.
– Enganei a melhor donzela que havia em Portugal,
Onde estavam três irmãos, ficaram logo a pensar.
– Seria nossa Mariana? Não havia outra igual…
Onde ‘stava o irmão mais velho: – Vamo’ nós a queimá-la?
Onde ‘stava o irmão chigante: – Vamo’ nós a degolá-la?
Onde ‘stava o irmão mais novo: – Vamo’ nós a dotá-la?
Um bom dote suprimidinho… não faltará com quem casá-ça.
Mariana que isto ouvia, logo se pôs a chorar.
– Quem me dera um irmão que me ele fosse leal!
Que me fosse levar esta carta ao conte de Montalvar!
– Avia-te, ó Marian, depressa, não devagar.
Jornadinha de três dias eu n~u1 hora a hei-de andar.
– Se ele estiver a jantar, deixará-lo acabar;
se ele estiver a dormir, deixará-lo acordar;
se ele andar a passear, a carta le irás entregar.
– Oh, que menino aquele, que tão bem sabe falar!
– Sou irmão de Mariana, que ela lá vai a queimar.
– Tanto se me dá que a queimem, como deixem de queimar,
Tenho pena do ventre dela, que leva sangue real.
Venha daí, minha mãe, conselhos me venha dar,
para acudir à Mariana, qu’ ela lá vai a queimar.
– Meu filho, veste-te de padre, ao caminho a vai esperar;
p’lo motivo que ela der, já a podes experimentar.
– Ó justiça, ó justiça, ó justiça general,
onde levam na menina tão nova por confessar?
Confesse-se, ó menina, faça confissão geral,
no meio da confissão um abraço me há-de dar.
[….] Que eu da morte a hei-de livrar.
Confesse-se, ó menina, faça confissão geral,
No meio da confissão um beijo me há-de dar.
[….] Que eu da morte a hei-de livrar.
– Não permita Deus do céu, nem nos santos do altar,
abraços que conde abraçou não é para frades abraçarem.
Não permita Deus do céu, nem nos santos do altar,
boca que conde beijou não pe para frades beijarem.
– Tire o anel desse seu dedo que a vai a condenar.
– Tanto se me dá que condene, como deixei de condenar,
onde quer que eu for morrer o anel há-de acabar.
Por esse bulir de beiços, por esse meu lindo falar,
assim me está parecendo sê’ lo conde de Montalvar.
– Venha daí, ó menina, o cmainho hemos de andar,
que venham agora seus manos, se a quiserem matar!
(versão de Medrões (concelho de Santa Maria de Panaguião), distrito de Vila Real)
(Referência: Pere Ferré. Romanceiro português da tradição oral moderna.
Versões publicadas entre 1828 e 1960. Vol. I Lisboa : Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000)
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