por Mara Emília Gomes Gonçalves | fev 28, 2019 | Blog
Enfim, chegamos ao lugar comum.
Explico-me sem grandes pretensões, o que não significa que não tenha cá meus objetivos. É sobre previdência que tratarei hoje. E como sou leiga no assunto posso falar sobre expectativas que passei a nutrir sobre o assunto, desde que foi colocado na ordem do dia, melhor seria eu ser a expressão: balcão governamental.
Muita gente não entende, e não vai. A juventude negra, em especial a urbana, assim como indígenas e quilombolas tem como expectativa uma vida curta em qual não cabe se aposentar, na real? Durante muito tempo sequer trabalho formal, assim como postos de trabalhos mais avançados. Era muito sonho pra quem tinha o pé no chão.
Então porque reclamar agora que uma parcela de trabalhadores não vai conseguir se aposentar? Porque devemos nos unir prioritariamente a essa pauta? Eu que já tive tantas vagas, ambientes e oportunidades retiradas pela minha pele escura, pelos meus cabelos arrepiados e indomados, pela minha boca grossa. Eu que abaixo minha cabeça frente às mentiras que contam para justificar a minha ausência na lista vip.
Não me entenda mal, eu sei que é preciso lutar por todos nós. Mesmo quando o nós não é tão nós assim, é muito mais nó na garganta. Veja bem, uma massa inteira precisará de um pouco mais. Até os que não sabem que no final do arco- íris não tem pote nenhum. Empreendedorismo tupiniquiquim? Eu sei bem. Vou ser honesta, como há algum tempo tenho sido, se você quiser manter o respeito e até apreço pode parar por aqui.
É certo que a negritude vai somar força, nas pioras e derrotas somos a grande maioria, mas aprenda bem como é se aquilombar. Vamos nos unir porque seremos como sempre fomos os primeiros da fila das mazelas. É preciso que se diga, que para muitos trabalhadores, desempregados, subempregados, terceirizados, precariados: A aposentadoria não vai acontecer. Pensando bem, a gente já sabe disse quando as leis trabalhistas foram subtraídas, parece-me agora a lei do sexagenário: “Liberdade ainda que tardia” é uma falácia. Queremos ser livres agora, já.
Nunca nos demos conta do absurdo que foi sessenta anos sendo escravizado, para depois sair com a mão na frente e outra atrás, sem nada, nenhum direito, sequer teto ou chão. Não é tempo de recomeçar. Não cuidamos de nossos fantasmas e eles voltam a nos visitar, e o pior se autoproclamam (termos atualizados) convidado de um banquete de misérias e fracassos que sentarão junto aos nossos filhos e aos filhos destes. Assim sendo, eu sei a hora de falar sobre o que quero, não me diga qual a pauta do dia, e sobre o que realmente eu devo escrever ou falar, a minha urgência antecede a sua em séculos que andei sozinha, e se agora voltamos ao tempo da escravidão, de matar negros ao bel prazer da branquitude e do mercado, e acrescentou-se a isso a inseguridade social, não há pauta mais ou menos importante: Aprenda!
Se assistimos a previdência tornar-se uma esperança quase religiosa e post-mortem, e dada à apatia e ao desconhecimento um fator contrarrevolucionário, há muito trabalho para ser feito, e temos lutado para colocar essas discussões na ordem do dia, sob o nosso prisma.
E durante muito tempo não foi possível, assim construímos nossas mentiras de cada dia, não reparando nas nossas próprias contribuições para o caos. Quantos trabalhadores ajudamos a manter na informalidade, com nossas desculpas esfarrapadas, com nossa economia sovina? Quantos rapazinhos do almoxarifado poderiam ter aquele pedido de atenção especial que foi dado aos seus filhos e filhas? Mas sempre tem a exceção. E nem todos nós fazemos isso, só alguns.
Existe um déficit na previdência, e os juros que pagamos são exorbitantes. É real. Assim como existem bancos que tem os lucros anuais em torno de bilhões devendo a previdência, como eu disse acima, entendo pouco, e assim como eu, são milhões de não entendedores, e talvez não dê tempo da gente entender sem muito perder antes. Porque muitos de nós não queremos explicar, despidos de nossos preconceitos e de nossas sabedorias, e preciso falar não como quem fala com quem será lesado, mas com quem sempre foi, mas que poderá compor junto conosco as filas das misérias, falar sobre como é difícil não ter garantias no futuro com quem sabe disso desde a origem.
Explicar porque o governo consegue pagar a previdência e garantir minimamente a dignidade humana de todos. Falar sobre coisas que eles nem imaginam, mas que você sabe como funciona.
É sabido que dá pra aumentar a arrecadação com mais gente trabalhando e contribuindo para a previdência, se o governo for competente, consegue garantir postos de trabalho e quando for possível alavancá-los, negociar com devedores, ao tempo em que se é enérgico em cobrá-los, e ao fim e a cabo se for preciso aumentar o tempo de contribuição, porque não diminuir nos últimos 10 anos a jornada de trabalho? Embora ainda não esteja convencida dessa ardilosa proposta.
Hoje estou danada a especulações, então mais uma não nos fará mal algum: é preciso colocar na pauta do dia a redução da jornada de trabalho – essa sim deveria ser a pauta atual. Se diminuíssemos a jornada, sem prejuízo salarial, talvez mais trabalhadores fossem inseridos em postos de trabalho e teríamos mais contribuição previdenciária e mais tempo cotidiano para ser livres durante a vida.
É preciso ser livre antes dos sessenta, na verdade o que disse acima coaduna com o que Lula disse de sua cela em Curitiba. Não é contraditório que um homem livre consiga pensar além das grandes, já os homens vis são presos aos seus próprios demônios e mesquinharias.
Lula livre já!
por João Wanderley Geraldi | fev 24, 2019 | Blog
Nenhum igual àquele.
A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.
Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.
E repete. Repete.
Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.
Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua soando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.
Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.
Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.
(Suplemento à 5ª. edição. Antologia poética. RJ : Record, 40ª. ed, 1998)
por João Wanderley Geraldi | fev 23, 2019 | Blog
O carioca Bernardo Carvalho é um colecionador de merecidos prêmios. Este Nove Noites recebeu o prêmio Portugal Telecom 2003.
Desde as primeiras páginas, este livro enreda o leitor numa investigação iniciada 62 anos depois dos fatos. O fato: o etnólogo – às vezes antropólogo – norte-americano Buell Quain, aluno de Franz Boas, orientado por Ruth Benedict, vem ao Brasil para seu trabalho de campo a investigar as formas de vida de indígenas brasileiros. Matou-se na noite de 1 de agosto de 1939.
O tempo narrado é, portanto, aquele do Estado Novo no Brasil e da deflagração da 2ª. Grande Guerra na Europa. O tempo da narração é dos inícios dos anos 2000: “Ninguém nunca me perguntou. E por isso nunca precisei responder. Não posso dizer que nunc ativesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Segunda Guerra.”
Na técnica narrativa, dois narradores falam, em primeira pessoa, paralelamente – o ‘corpo’ das letras mostra a mudança de narrador e de tom da narrativa. O primeiro narrador a aparecer conviveu com a personagem central da história; o segundo narrador investiga a história de vida de Buell e possíveis razões para sua morte. Estas narrativas de entrecruzam no percurso da leitura de modo que o leitor vai reconstituindo um quadro dos acontecimentos, mas sem conseguir fechar as peças do quebra-cabeça.
A narrativa da testemunha dos acontecimentos, o gênero é uma “carta” destinada a alguém desconhecido, mas esperado. Repete-se várias vezes o mesmo enunciado quando este narrador: “Isto é para quando você vier”. Aqui você encontrará um conjunto de informações sobre Buell, desde suas viagens pelo mundo, a passagem por tempo em Fiji, de que resultaram dois livros publicados postumamente, seu contato com os Trumai no centro-oeste brasileiro, de que foi expulso pelo Serviço de Proteção ao Índio sem que as razões fiquem muito claras. Depois, toda a descrição de sua chegada a Carolina (Sul do Maranhão) cidade da qual partirá para a aldeia dos índios Krahô, com os quais conviverá até o suicídio. O engenheiro-narrador foi um dos que o recepcionaram quando da chegada a Carolina. Foram apresentados, mas Buell não deu muita atenção ao apresentado. Depois se tornaram amigos, e quando vinha à cidade o antropólogo sempre o visitou, sempre lhe confidenciou suas andanças, sua passagem pelo Rio de Janeiro. Da última vez, esperava cartas da família e pediu que assim que recebidas, fossem levadas por portador para a aldeia. Foi o que aconteceu. Segundo a narrativa dos índios, o antropólogo teria lido as cartas, teria ficado desesperançado e as queimou todas. Então decidiu voltar.
Dois índios acompanharam o antropólogo que voltava para Carolina e que tinha se despedido dos Krahô. A certa altura da viagem, ele pediu para descansar. Mandou que um dos índios fosse à fazenda mais próxima, com um bilhete em inglês que obviamente o portador não saberia ler. Pedia pás e enxadas. Eram os materiais com que queria que fosse cavada sua sepultura. E então começou a escrever cartas, oito no total, destinada a diferentes pessoas. O outro acompanhante dormiu, mas preocupado: acorda-se quando ele estava se mutilando, se cortando com gilete. Tenta convencê-lo a parar. Consegue e vai dormir. Quando o primeiro rapaz retorna da fazenda sem nada, porque o dono – Sr. Balduíno – estava viajando e nenhuma outra pessoa sabia ler na fazenda, encontra o Dr. Buell enforcado, pendurado de uma árvore. Foi enterrado ali mesmo, onde morreu e onde queria ser enterrado. Apavorados e com medo de serem acusados de assassinato, os índios levam tudo o que pertencia ao antropólogo a seu amigo. Todas as cartas e as narrativas os inocentavam. As cartas foram remetidas para os destinatários, mas uma delas o engenheiro guardou. É para o desconhecido destinatário desta carta que ele escreve, porque esperava sua chegada, mas com ficou velho, achou que deveria preparar este amigo que viria com certeza.
Nesta longa “carta” ao desconhecido, inúmeras vezes o leitor é levado a imaginar ‘coisas’ sobre Buell: questões de relações sexuais, família nos EEUU, traição da mulher, gosto por prostitutas, relações homossexuais, e sempre uma possível doença de que sofria o antropólogo. Todas estas “insinuações” fazem o leitor ir tentando construir uma explicação para o inesperado suicídio.
O segundo narrador é um investigador. Vai atrás de documentos, das cartas, das notícias. Vai a um encontro de povos indígenas, porque a eles compareceriam membros do povo Krahô: quer informações. No entanto, ninguém que tenha convivido com o antropólogo está vivo. Somente um idoso conhecia a história porque lhe haviam contado. Ele tenta desesperadamente obter novas informações, mas nada descobre. Compulsa as cartas e a cada vez mais desconfia de que a outra história não contada que esclareceria o ocorrido. Alguns indícios nas cartas de Buell confirmariam isso, desde uma frase que ficou sempre martelando: numa das cartas escritas na noite do suicídio, ele diz que “os índios felizmente estão salvos”. Salvos de quê, se pergunta o narrador-investigador. Neste segunda narrativa, com seus avanços e recuos, com as hipóteses formuladas e abandonadas, o leitor acompanha três histórias que vão emergindo: aquela de Buell; aquela da vida do próprio narrador; e por fim a história da própria investigação.
Como se pode ver, o entrelaçamento de tantas histórias mantém o leitor em atenção constante. A partir de certo momento da leitura, tudo o que se quer saber é: há razões para além daquelas do próprio suicida, para que ele cometa o suicídio?
A investigação do segundo-narrador, buscando em todos os cantos algum elemento que justificasse o suicídio (ou o assassinato), acaba por ter contato com o suposto filho de um fotógrafo que fora amigo (amante?) de Buell: no hospital em que estava internado o pai do “investigador”, no mesmo quarto, estava hospitalizado um senhor desconhecido para o investigador. Ele sempre esperava a visita de alguém. Confunde o investigador com este alguém que esperava, e o que o investigador escuta é “Well”… mais tarde se dá conta: o moribundo falava “Buell”! Assim, descobre que este era o fotógrafo a que já havia chegado em sua investigação. Vai atrás de seu filho, consegue contatá-lo e por fim, por um acaso, consegue ser recebido por ele. Descobre a semelhança física entre Buell (que ele conhece somente por fotografia) com este suposto filho do fotógrafo, que lhe conta sua própria história: a mãe o deixara, o pai o entregara aos avós, quando chegou aos 17 anos fica sabendo que não era filho do fotógrafo e os avós o expulsam de casa!!!
São muitas histórias intercaladas… e o suspense do narrativa deixa o leitor cada vez mais ávido por saber: afinal, o que aconteceu? Se no final, fica sabendo que Buell tivera um filho que não conheceu, com a mulher que amou e que o traiu, fica sempre a dúvida: se descobre que é pai, por que se suicida?
Por fim, uma nota sobre o título: foi durante nove noites que o engenheiro de Carolina acompanhou Buell na última de suas viagens de Carolina para a aldeia Krahô! Nestas noites, ouviu as histórias de vida do antropólogo. É daí que vem o título do romance.
Referência. Bernardo Carvalho. Nove Noites. São Paulo : Cia. das Letras, 2002.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | fev 21, 2019 | Blog
Ninguém larga a mão de ninguém, exceto algumas.
Existem mãos, e corpos que nunca foram vistos. Eles precisam mesmo ser invisíveis desde sempre para não causar constrangimento: uma criança tão nova que pede nas ruas, uma mãe tão sacrificada nos afazeres domésticos de tantas outras casas, um pai que carrega um caminhão inteiro e termina o dia sem força sequer para deitar o pequeno filho nos braços, um filho morto sob o corpo muito visível da segurança patrimonial.
Esse mesmo corpo que esta sempre a nossa espreita, multiplicados em vários, nos perseguindo nas câmeras, nos seguranças disfarçados dentro das lojas, e os clientes que escondem suas bolsas ao sinal da nossa presença: Patrimonial.
Patrimônio é para quem tem. Cor é para quem não tem.
E estou aqui de volta dizendo sobre essas coisas todas. Não sei se os ouvidos entorpecidos de medo me ouvem até o final. Os gritos todos sufocados como um caso mortal de enforcamento, estrangulamento que ganhou nova grafia.
Ninguém vê a rapidez que as câmeras, emoções, comoções e sensibilidades se calam para o assassinato. Em partes estão certos: mais um.
Não teria menor ou maior importância se fosse o último, o primeiro… Tudo guardado sob o manto do tanto faz, que está dentro do contrato da visibilidade e da invisibilidade que parece ter cláusula pétrea.
Pétrea. Pedra e Pedro.
E lá estava ele. Vivo e no instante seguinte tão morto.
Acabaram-se sonhos possíveis, Pedro.
Sem quilombo, sem luta. Tal qual acontecia nos tempos dos cafezais, dos algodoais, dos arrozais, e de tantas culturas produzidas com tantos ais. Vidas sufocadas até ser morte.
Poucos sabem o que acontecia, não conseguem imaginar o tempo verbal que conjugava oprimir até a morte junto com vadiagem, dito assim e sabe-se lá como com preces e sermões pareceria humano. O tempo de hoje é de livrinho didático com atividade que ensine a caçar escravos para voltarem pra senzala. Então teremos novos capitães do mato, bem treinados, equipados para defender a propriedade.
Ninguém segurou sua mão.
O patrimônio estava a salvo com narrativas potencialmente construídas de um bandido. Depois usuário de drogas, e depois problemas mentais. E se não for? Já era.
Era uma vez um conto de fadas, sem felizes para sempre no final, sem final, desde sempre sem história real. A ficção substitui a verdade, contada diversas vezes nos noticiários da TV: Bandido bom é bandido morto, direitos humanos para proteger bandido, tá com pena? leva pra sua casa!
Viva a show de horrores.
Temos ainda a história de Jenifer de 11 anos, sim o nome dela é Jenifer e ela poderia ser tanta coisa, de novo acabaram-se os sonhos possíveis no Rio de Janeiro, que continua lindo e de braços abertos para quem puder pagar. Cristo de costas para os tiros de fuzil que partiram do projeto que autoriza matar.
Todos digam amém.
….
Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança”.
(trecho do poema Meia lágrima de Conceição Evaristo in Poemas da Recordação e outros Movimentos. )
É a comunhão.
Estamos ligados pela dor aos nossos ancestrais e aos nossos descendentes que são retirados do nosso convívio ainda jovens demais. Não sou eu que digo é ela: as inesquecíveis sombras dos que já se foram.
Ela que me abraça com seu grito. Eu só obedeço.
As sombras são vítimas, ou efeito colateral de um sistema que se aperfeiçoa em passos largos.
-Não vai sobrar ninguém para dar a mão.
Chega de lágrimas. É preciso que as mãos estejam soltas, e desejosas de socar o ar. Mãos dadas podem brecar a marcha. Soltem e comecem a enxergar, ainda que com um olho só, é possível ver ao longe e esquecer de chorar o cisco das tristezas que turva a outra visão.
Veja! que pode não ser uma boa estratégia uma ciranda alucinada que dá meia volta, e volta e meia volta dá.
Solto o grito e encontro Evaristo.
por José Kuiava | fev 20, 2019 | Blog
“Agora tenho saudade do que não fui”. Manoel de Barros, invenção genial.
A matemática da vida – da idade – é a matemática mortal da lei “soma zero”! Cada ano que passa somado aos anos já vividos é um ano subtraído dos anos a viver. A lógica é fácil: a cada ano que festejo o aniversário de mais um ano vivido é uma festa a menos para celebrar. Hoje, 19.02.2019, passo ter um ano a menos para viver dos cem anos que me dei de vida. Razão impiedosa, porque não consigo entender os motivos de celebrar, comemorar e festejar o dia e ano de nascimento. Como comemorar o dia 19 de fevereiro de 1944? Já vivi 75 anos, ou, 27.375 dias. Tô precisando rir. E agradecer ao acaso. E a todas e todos com quem convivi e convivo. Até quando, não sei.
Se por acaso na idade do meu nascimento já estivesse em moda e em vigor o planejamento familiar – o poder de escolha e a decisão do número de filhos na família, a pílula anticoncepcional, a camisinha – e não houvesse mais o império dos cânones sagrados do cristianismo, segundo os quais o homem e a mulher casados só podiam praticar o coito – o gozo corporal – para ter filhos, eu jamais teria a chance de ser concebido, de nascer e de existir. Décimo primeiro, e último, filho de um casal de cristãos praticantes e cumpridores rigorosos dos dogmas da Igreja Católica.
No dia do aniversário, muito mais do que nos demais dias do cotidiano da vida, me lembro do passado. Sinto saudades do que fui lá na infância. Vivia, corria, brincava na terra. Pulava entre as formigas e escapava para longe para não ser picado por elas, pelas abelhas, pelas vespas. Caçava passarinhos com bodoque, me divertia olhando os patos, os gansos, os marrecos tomando banho em açudes que construía com meu irmão. Trepava nas árvores bem altas e frondosas. Adorava contemplar o nascer-do-sol e o pôr-do-sol. Maravilhas da natureza – paisagens – que me fascinam, encantam e emocionam ainda hoje.
Já falei e escrevi que memória e saudade do passado todos temos. Memória e saudade do futuro, Bakhtin inventou e Wanderley Geraldi ressignificou. Saudades do que não fui, Manoel de Barros inventou.
E por falar de memória, numa bela noite do ano de 2010, num teatro de São Carlos, no intervalo do espetáculo teatral, o diretor e animador apareceu em meio às cortinas altas do palco e falou ao público: “a gente só dá atenção e importância aos velhos o dia que vira um deles”. Alguns espectadores riram, outros bateram palmas, outros mais se entreolharam e permaneceram sérios. Aos 75 anos, sinto muito bem quanto o apresentador do espetáculo tinha razão. Ele disse uma verdade melancólica. A velhice nunca foi, não é e não será nunca a “melhor idade”. Muitos – muito inteligentes, pensadores, filósofos, psicólogos, artistas da cultura clássica e da cultura grotesca – já falaram, escreveram que a velhice é a pior idade. Defende.
A grande maioria de velhas e de velhos enfrenta a solidão sem misericórdia e sem fim.
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