por Mara Emília Gomes Gonçalves | jan 30, 2019 | Blog
Começarei pelo começo, os que ainda lembram de minhas escritas sabem que este não é meu feitio, aos desavisados pode parecer redundante. Não é, embora em geral meus textos sempre sejam circulares, vão e voltam numa cadência sem muitas explicações formais, avançamos.
Então vejam que me perco sempre tentando me fazer entender, como se compreender o tempo atual fosse questão de leituras, e explicações. Não é.
Fato é que começo desse jeito porque não é possível outro. O fim não está dado, mas pode vir a ser a qualquer momento: tal qual a esperança. Começo pela ausência e pela lembrança de um texto que desde que li pela primeira vez, marcou-me profundamente, danadamente.
Talvez já o tenha citado em outros textos que escrevo, e ainda o vá fazer sempre. Este é um dos truques do texto literário: provoca-nos até que façamos cada linha, cada espaço, cada palavra e significado, um experimento para momentos vários em que precisamos dele. O texto a que me refiro é de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina.
Durante muito tempo eu não entendia como tal conto podia me tocar tão fundo.
Um enredo simples até. A história de uma menina apaixonada por livros e leituras que tem como oponente uma outra menina, que é filha de “dono de livraria”. A trama se dá no fato de que a menina possui um livro: As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato e promete-o para a narradora. Essa pequena personagem, que é Clarice, adolescente, cabelos lisos, alta, magra, loirinha e sem posses em tudo se opõe a outra. O que me iguala a Clarice é a classe social e a sede de leitura e conhecimento. As questões étnicas e estéticas talvez me exigissem o contrário, mas deu que a classe que nos orienta fizesse o contrário possível.
A outra menina tem cabelos crespos e arruivados, bustos enormes, gorda e baixa… São descrições do conto que vão construindo as diferenças. Clarice é judia, nessa época morava no Recife e ela nos diz do que é ser uma menina excluída, e do outro lado a sua rival ganha contornos e características próprias de uma adolescente moura. Mas o cerne do conto nada tem de étnico. O cerne é o que sempre é. Como os pobres devem ser castigados e torturados por ousar querer acesso a pequenas coisas.
A menina sequer gostava de ler. Ainda assim usa de toda sua maldade para punir a narradora:
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Esse é o começo.
Não vou dizer sobre o que este texto nos fala. Não mesmo. Para mim este tempo passou. Agora é preciso que as pessoas sejam provocadas pela sua própria dor. Embora no fundo, no fundo, a gente saiba quando lê este conto que a maldade de uma classe social sobre os pobres não tem limites, e bom que se entenda.
Vejamos ainda esse trecho
O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
O texto é indicado para jovens leitores, é importante porque fala que mesmo diante da adversidade não podemos cair, e precisamos ter alegria em nosso caminhar. Os dias não tem sido fáceis: – Eles venceram e o sinal está fechado para nós.
Embora as pessoas que sempre estiveram às margens não saibam muito bem sobre os sinais fechados, pois sempre inventam novos caminhos. Também agora será preciso aprendizagem e amadurecimento, não será mais possível fingir que não vê, pois será cada um de nós em pé ao portão: mulheres, negros, LGBTI, estudantes, professores, alunos… sobretudo pobres.
Espero que cada um aproveite essa leitura, e finalizo deixando meus sentimentos de pesar a família do presidente Lula da Silva e a cada um dos brasileiros que perdeu um ente seu no crime de Brumadinho.
por João Wanderley Geraldi | jan 30, 2019 | Blog
Há quem diga que aquele que comete uma injustiça contra alguém, mesmo que aparente tranquilidade, vive com seu fantasma. Há até a expressão “estar com o morto debaixo da cama”. O ato cruel e injusto destrói tanto a vítima quanto o desumano e criminoso agente. É o que dizem, é o que dizem…
E a voz do povo parece ter razão. Há pessoas que mesmo tendo chegado aos mais altos cargos do poder que vivem sob a angústia do defunto que o acusa em silêncio. O resultado desta acusação silenciosa é que o criminoso enverada cada vez mais pelos caminhos da prática criminosa de injuriar e vilipendiar de forma desonesta e ilegal aquele a que, por circunstâncias momentâneas, está sob seu poder, pequeno poder que não perdurará e que será julgado pela história.
O “diabo está no meio do redemoinho”. E quem entrou no redemoinho da prática desumana e ilegal se faz semelhante ao rei do redemoinho… e se pensa rei com brilhos platinados.
Assim, estas vítimas, que o povo chama de mortos, mas que estão vivas, assombram aqueles que sabem que lhes devem muito. Mas há mortos reais, efetivos. E estes não retornarão e não haverá tempo para um reencontro pacificador.
A visitação destes mortos irredutíveis, já de dentro da cova, tornam-se fantasmas inafastáveis, irredutíveis, constantes, martelando as consciências daqueles que sequer permitiram um enterro entre entes queridos.
A proibição do luto e do velório há de emergir como culpa, como chaga, como ferida que os mortos visitarão. Cutucarão a ferida que não adormecerá na inconsciência dos desumanos.
E os mortos humanos não são pastos de corvos togados ou extogados, quando vão à sepultura. E assim a imagem completa permanecerá para assuntar e assustar o dia-a-dia dos que não deixaram que fosse velado.
Para estes, a visitação dos mortos é esta visão sorrateira, constante, futricando lá no fundo a maldade que lhes é natural e que civilização alguma consegue lhes extrair, sejam estes desumanos elegantes mulheres elevadas a julgadoras, sejam triunfantes homens com caneta na mão: seu triunfo será sempre o triunfo do mal.
Ganham, mas perdem sempre e cada vez mais. Mesmo aqueles que, para não ficarem mal na fita, autorizam que o morto visite o vivo, já que proíbem que o vivo vele o morto, mas autorizam no dia e no momento em que o morto segue em procissão para a cova. Nem o vivo visitou o morto, nem o morto visitou o vivo.
Mas ambos estão em visitação constantes às consciências pesadas: esta a visitação dos “mortos” que merecem. E que na visitação, os visitantes aferrolhem, aferrolhem até que a culpa os leve aos quintos de onde saíram.
por José Kuiava | jan 30, 2019 | Blog
Tragédias Humanas
Tragédias Ambientais
Tragédias Ecoambientais
Tragédias Ecossociais
Tragédias Biológicas
Tragédias Ecológicas
Tragédias Extrativistas
Tragédias Políticas
Tragédias Éticas
Tragédias Ideológicas
Tragédias Governamentais
Tragédias Educacionais
Tragédias …
Todas estas tragédias – e muitas outras mais – são catastróficas. As tragédias acontecem cada vez mais intensas e frequentes por planos, projetos, obras, ações e pela ganância possessiva de bens e capital sem limites de alguns seres humanos. Vivemos um ecocídio cotidiano. Na sua essência, as tragédias são destruidoras da vida das espécies animais – da própria espécie humana – e das espécies florais. Vivemos no Brasil – e no mundo – sob o comando e mando da atual onda devassaladora do populismo da extrema direita. Vivemos no mundo cada vez mais globalizado, mais cheio de fronteiras intransponíveis.
No Brasil, o mais triste e desolador é ver, a cada dia, o atual governo substituir a pedagogia do diálogo civil e consciente pela pedagogia militar da ordem, impostora e autoritária. Escutamos na mídia televisiva e eletrônica os gritos: “Direita volver! Marcha!”! Assim, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento mortal de instituições democráticas críticas. As crises das democracias tradicionais, cada vez mais intensas, geram e gestam riscos mortais à democracias representativas globalizadas e impedem a gestação das democracias vivas, substantivas, participativas.
A pedagogia autoritária do governo Bolsonaro a cada dia adquire mais feições militares. Assim, essa pedagogia militar consolida sua hegemonia política de governo com 7 ministros militares e 45 assessores militares e ex-militares, além do próprio presidente Bolsonaro de autêntica e rigorosa formação militar e do vice presidente Mourão, um general. Por conta desta feição, o governo Bolsonaro não permite “reflexão”, só exige flexão. Os comandantes só emitem ordens. Não fazem propostas de programas. O princípio supremo – e único – da pedagogia militar é: cabe aos comandantes superiores dar ordens inquestionáveis e cabe aos súditos cumprir as ordens em obediência tácita, sem discordar, sem divergir, sem opinar, sem criticar. Portanto, na pedagogia militar não há lugar, vez, possibilidade de ousar, de criar, de inventar o novo e diferente, o original, o melhor. Em contraposição à pedagogia do diálogo, a pedagogia militar autoritária não permite a conversa dialógica.
Vimos e assistimos inconformados estes absurdos desde a campanha. O então candidato Bolsonaro, em ato de encenação teatral ao vivo, recebeu uma facada para não participar de debates na televisão ao vivo e não responder a perguntas dos adversários e dos jornalistas. Acontece que o debate público de candidatos à presidente da República exige conhecimento. O diálogo, por sua vez, exige argumentação, portanto, conhecimento. Riqueza que não pode faltar a um presidente do Brasil. Somente ao Bolsonaro.
O fato mais cabal da falta de conhecimento e de argumentos, visto e testemunhado pelo mundo inteiro, foi não comparecer à entrevista marcada para a imprensa universal, dias atrás, em Davos, por Bolsonaro. Nem ele, nem os seus assessores compareceram. Uma vergonha mundial. Dizem que foi o medo da bolsa romper e derramar o material do baixo corporal. Seria uma indecência malcheirosa. Indecentes, mesmo, são as palavras faladas de improviso.
por João Wanderley Geraldi | jan 28, 2019 | Blog
Até quando me casei ainda se dava de presente de casamento um moedor de carne: assim como se batia bife, moía-se em casa. As facilidades oferecidas pelos açougues fizeram com que a máquina de moer carne caseira se transformasse em peça de museu ou de antigualha.
Em minha casa, a mesma máquina também era usada, colocando-se alguns acessórios, para fazer bolachas amanteigadas. Uma festa rara na casa, mas o sabor das bolachas compensava o tempo e a força para fazer a máquina girar com a massa.
Mas também moíamos o amendoim com que fazíamos, na Páscoa, nossos ovos de Páscoa: durante toda a quaresma nós, as crianças, montávamos guarda na cozinha: qualquer ovo que fosse usado deveria ter apenas uma abertura pequena. Guardávamos as “casquinhas” para fazermos nossos próprios Ovos de Páscoa. Torrávamos amendoim, moíamos o amendoim, misturava com açúcar cristal e enchíamos as casquinhas, não sem antes as pintarmos. Os ricos pintavam as casquinhas com tinta óleo, de várias cores, de modo que cada uma acabava com um desenho diferente. Nós pintávamos com algo que também deve ter desaparecido: tinta para tingir roupa – e aí tínhamos vermelhas, amarelas, verdes, azuis… (não havia cor-de-rosa nem para as meninas!)
Mas havia ainda uma terceira técnica: enrolávamos as casquinhas em “papel de seda” de várias cores, molhávamos o papel e colocávamos as casquinhas para secar no forno do fogão de lenha: depois de secos, desembrulhar a casquinha era sempre um gesto de curiosidade: que cores ‘pegaram’, que desenhos apareceram.
Pois vejam só: quantas utilidades domésticas dávamos para as máquinas de moer carne! Aquela que ganhamos de presente de casamento se perdeu nas inúmeras mudanças: em algum momento a abandonamos sozinha em alguma casa ou a colocamos entre os “bagulhos” que se ninguém quisesse se tornariam lixo. A máquina era de ferro e certamente ninguém a quis: jaz morta em algum aterro sanitário. Naqueles tempos não havia recolha de lixo reciclável…
Agora só temos máquinas semi-industriais que enxergamos nos açougues. E “máquina de moer carne” se tornou apenas uma expressão que se usa metaforicamente como quando nos referimos ao modo de funcionamento do judiciário, particularmente o atual judiciário do Brasil: “A justiça dos sistemas totalitários funciona ininterruptamente, como um moedor de carne que gira sem parar” (Imre Kerstész). Mas no bojo da máquina, somente entram carnes escolhidas a dedo, de corpos condenados porque suas mentes pensam ou agem segundo uma lógica que os sistemas à Moro rejeitam. Outras carnes, mesmo de corpos marcados por ações pouco louváveis, jamais irão para a máquina de moer carne que maneja, sem parar, aquilo a que chamavam de Justiça.
por João Wanderley Geraldi | jan 27, 2019 | Blog
A TI, Ó DEMOCRACIA
Venha, farei o continente indissolúvel,
Farei a mais esplêndida raça sobre a qual o sol jamais brilhou,
Farei divinas terras magnéticas
Com o amor dos camaradas,
Com o amor de toda vida dos camaradas.
Plantarei o companheirismo copioso como árvores ao longo de todos os
rios da América e ao longo das margens dos grandes lagos e por todas as pradarias,
Farei cidades inseparáveis, cada uma com os braços em volta do pescoço da outra,
Pelo amor dos camaradas,
Pelo másculo amor dos camaradas.
A ti, isto de mim, Ó Democracia, a fim de servi-la ma femme!
A ti, a ti estou trinando estas canções.
A base de toda metafísica
E agora cavalheiros,
Uma palavra digo para permanecer em vossas mentes e memórias,
Como base e também finale para toda metafísica.
(Assim para os estudantes o velho professor
Ao término de seu curso repleto.)
Tendo estudado o novo e o antigo, os sistemas Grego e Germânico,
Tendo estudado e exposto Kant, Fichte e Shelling e Hegel,
Exposto o saber de Platão, e Sócrates maior do que Platão,
E, maior que Sócrates pesquisado e exposto, Cristo divino havendo longamente estudado,
Vejo hoje em reminiscência aqueles sistemas Grego e Germânico,
Vejo os filósofos todos, igrejas cristãs e cédulas de dez dólares vejo,
No entanto sob Sócrates claramente vejo, e sob Cristo o divino vejo,
O caro amor do homem pelo seu camarada, a atração de amigo por amigo,
De cidade por cidade e de terra por terra.
(in. Grandes Poetas de Língua Inglesa do Século XIX, organização e tradução de José Lino Grünewald, RJ : Nova Fronteira, 1988)
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