Nós, homens de negócios

Nós, homens de negócios

Ensina uma autoridade federal que se deve sonegar tudo o que for possível, ao nos dar o exemplo:  “Eu sonego tudo que for possível”. É bem verdade que para aqueles que vivem de salários, que não são “homens de negócios”, a sonegação é quase impossível, mas há possibilidades de uma ou outra informação semiverdadeira para dar conta de cumprir o preceito exemplar do futuro presidente.

Mas os “homens de negócios” têm mais chances, entre outras até de apropriação indébita: recolhem as contribuições e impostos de seus empregados, mas esquecem de depositá-las para o fisco. Em geral fica por isso mesmo… e alguns anos depois, uma confissão de dívida e um prazo de uns 100 anos para pagar.

Mas “homem de negócio” mesmo, aquele que somente ganha dinheiro, quer dizer, “faz dinheiro” é aquele que não precisa se estabelecer com endereço comercial, registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas: nenhuma complicação. Somente fazer dinheiro. Não tem gastos de aluguel, não tem gastos com salários, não tem gastos com taxas e impostos. O telefone e a conta bancária são seus endereços naturais.

Melhor ainda é “o homem de negócios” que tem clientela fixa, que paga mensalmente sem qualquer incômodo: todos os meses, religiosamente, estes clientes recebem seus salários e imediatamente depositam na conta do “homem de negócios”.

Ser um homem de negócios desta ordem é o sonho de qualquer sujeito com espírito empreendedor. O que não sei é se os cursos de empreendedorismo ensinam a mágica de fazer dinheiro cativo, com clientela cativa, e ainda gozando da possibilidade de amigo que lhe empresta dinheiro para pagamento quando der, quando puder.

Seria sonho? Não, no Brasil, há um homem de negócios que tem todas estas vantagens. E a patuleia acredita e inveja… porque é bom acreditar no que acreditam autoridades como o Ministério Público Federal. Eles dão o exemplo de crença necessária no mundo que inicia este novo ciclo com Deus presente, como nos ensina o novo chanceler diplomata Araújo, ara, ujo!!!

À esperança, de Hölderlin

À esperança, de Hölderlin

Ó esperança grácil! bondosa e diligente!

    Que não desprezas a casa dos tristes,

       E, serviçal de bom grado, ó nobre, reinas

         Entre mortais e potências celestes,

 

Onde estás? – Pronto vivi. Mas o anoitecer me bafeja

   Com seu hálito gélido já. E, como as sombras, eis-me

      Já calado aqui; e o coração sem canções

        Me adormece no peito arrepiado já.

 

No vale verde acolá, onde a fonte fresca

    Murmura caindo constante do monte

       E o belo colóquio me desabrocha no dia outonal,

          Lá, ó graciosa, quero eu, no silêncio,

 

Buscar-te, ou quando à meia-noite a vida

   Invisível palpita no bosque

     E sobre mim as sempre-alegres

       Flores, as estrelas brilham,

 

 

Ó filha do Éter! surge então

    Dos jardins de teu Pai, e, se podes vir

       Como espírito da terra, oh! assusta,

         Assusta-me ao menos o coração com outro Espírito!

(Hölderlin. Poemas. Tradução de Paulo Quintela.  Lisboa : Relógio d’Água)

Senilidade, de Ítalo Svevo

Senilidade, de Ítalo Svevo

Este é o segundo romance do ‘fundador da moderna ficção italiana’. O primeiro romance foi Uma vida (de 1892; no Brasil: Nova Alexandria, 1993), e depois Senilidade veio  A consciência de Zeno (1923; no Brasil há uma edição na coleção “Biblioteca Foha” de 2003; além destes publicou ainda Uma farsa bem sucedida (1928, no Brasil “Uma gozação bem sucedida, editora Carambaia, 2017) e postumamente uma coletânea de contos.

Ítalo Svevo é pseudônimo de Ettore Schmitz, nascido em Trieste ao tempo em que a cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro. O sobrenome de origem alemã e o nome tipicamente italiano já desvelam hibridez que se revelará no tom mais ou menos soturno e paradoxalmente um tanto zombeteiro deste seu romance, desde o título “Senilidade”.

O enredo é a história de amor entre Emílio Brentani, um pequeno burguês de família outrora abastada, hoje reduzida à sobrevivência como empregado de escritório, já ‘maduro’ pela idade, e Angiolina, uma bela coquete de procedência humilde, filha de operário que ao final se descobre estar completamente maluco. Ingênuo, Emílio se apaixona sem querer compromissos maiores:

Aos trinta e cinco anos ainda encontrava na alma a chama insatisfeita do prazer e do amor, e já a amargura de não os haver desfrutado, enquanto que no cérebro um grande medo de si mesmo e da fraqueza de seu próprio caráter, de que mais suspeitava do que conhecia por experiência. […]

Se a moça, como seria de imaginar pelo seu olhar límpido, era honesta, certo que não seria ele quem se exporia ao perigo de corrompe-la; se, ao contrário, o olhar e o perfil mentiam, tanto melhor. Seria divertido em ambos os casos, sem se arriscar em nenhum deles.

Mas a paixão por Ange será maior do que recomenda a razão. Ele a tem por “pura”, ainda que vá tomando conhecimento de seu antigo noivado com Merighi, em cuja casa vivera por dois anos… Vai ainda percebendo que sua amada gostava de ser admirada, paquerada, cortejada pelos homens por quem passam em suas caminhadas pelos lugares românticos de Trieste. Mas Emílio não quer abusar…

Enquanto ele age como um apaixonado respeitador da moça, seu amigo Stefano Balli, um escultor de pouco renome, faz todos os esforços possíveis para ensinar a Brentani algumas lições de vida para que compreendesse que a mulher com quem vinha saindo e a quem frequentava na própria humilde casa não era digna do respeito que lhe era devotado. Nos vários intentos, Balli somente se sai aparentemente vitorioso, porque retornando à própria casa, no silêncio da solidão o amor se revigora, e lá vai Emílio em busca de sua amada. Neste sentido, sua compreensão do amor ainda é aquela do amor cortesão: parece crer no que o homem dos Séc. XII e XIII acreditavam: a fusão entre o Bem e o Belo. “Uma bela aparência não pode senão refletir profundas qualidades interiores” como ensina Michel Pastoureau (No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda).

Para que possam ambos desfrutar de seu amor, Angiolina propõe que seria necessário um terceiro que com ela noivasse e casasse. Assim, sem qualquer perigo, Emílio a teria por amante. E de fato Ange encontra um possível pretendente (a corno), o alfaiate Volpini, a quem supostamente se entrega diante da promessa de casamento, compromisso que logo se desfaz.

O alfaiate foi motivo de grandes ciúmes! Ele a procura para terminar o relacionamento, porque não poderia se rebaixar a tanto: ser inversamente o ludibriado por um reles alfaiate! Angiolina o faz ver que se entregara a Volpini por amor a ele, Emílio. Que isto fora uma combinação entre eles, e que agora estavam livres para se amarem… é o que acontecerá, numa primeira noite na própria casa de Angiolina e depois num quarto alugado num edifício um tanto suspeito (mas em que Ange circulava como se tudo conhecesse).

O relacionamento perdura, apesar de todas as advertências de Balli, o amigo, que pretendia fazer Emílio conhecer a vida. “Balli estava disposto a curar definitivamente o amigo.” No entanto, todos os indícios dos tempos em que Emílio e Angeolina não estão juntos, a invenção de um suposto emprego numa família que lhe ocupa muito tempo e às vezes parte da noite com que justifica seus atrasos para os encontros programados entre eles, nada faz Emílio arredar pé da paixão e da crença na pureza e honestidade de sua amada.

Balli, que também admira Angiolina, mas como uma mulher desfrutável, se propõe a fazer uma escultura da namorada do amigo. Uma traição com Balli seria tudo o que Emílio não suportaria… Aliás, ele vivia com ciúmes e imaginando relações com vários outros jovens de suas relações: Sorniani será um deles. Entre este e Emílio ocorre um diálogo revelador que, no entanto, cujo verdadeiro sentido o apaixonado Emílio não consegue compreender. Quando ambos se encontram, pergunta Sorniani:

– Como vão os amores?

Emílio fingiu não compreender: – Que amores?

Aquela zinha. A loura, Angiolina.

Ah, sim – fez Emílio com ar de indiferença. – Nunca mais a vi.

– Faz muito bem – exclamou Sorniani com grande entusiasmo, aproximando-se de súbito. – Aquilo não é mulher para jovens como você e que, além do mais, não têm uma saúde muito sólida. Transformou a cabeça do Merighi e depois andou por aí aos beijinhos com  meio mundo.

A apagada e feia irmã de Emílio, Amalia Brentani, vivia sua solidão já que o irmão, a partir da paixão por Ange, pouco se importava com ela. E poucas vezes trazia seu amigo Balli para a casa. É por Balli que Amalia se apaixonará, uma paixão que obviamente será mal sucedida, já que ao escultor a vida de família não lhe assentava, e para quem “amava apenas as coisas belas e desonestas, aquele afeto fraterno que h era oferecido por uma jovem feia só causava incômodo”.

Este amor escondido, guardado, será importante no desenvolvimento do enredo: afinal, Amalia fala alto nos sonhos e Emílio descobre sua paixão. Depois, num de seus retornos à casa, encontra a irmã totalmente transtornada, numa crise de histeria, que a leva à febre e posteriormente à morte. Balli acompanha o amigo, percebe o amor guardado e escondido de que era objeto. Sente-se um pouco culpado…  Seria a morte da irmã o remédio maior que apagaria de Emílio sua paixão por Angiolina. Não apagou: apenas pôs cinzas sobre o que fora seu sonho de encontro com uma mulher que amou. Há, sempre há um último encontro.

 Foi ao encontro. O sofrimento voltar-lhe-ia pouco depois: nesse instante ele amava, a despeito de Amalia. Não havia sofrimento nem que podia fazer exatamente aquilo que sua natureza exigia. Saboreava com volúpia o sentimento calmo de resignação e de perdão. Não preparou nenhuma frase para comunicar seu estado de espírito a Angiolina; essa última entrevista devia ser-lhe mesmo absolutamente inexplicável, pois agiria como se algum ser de inteligência superior estivesse presente para julgar a ambos. […]  

O encontro será mais uma vez no passeio de Sant’Andrea, onde se conheceram. Quando Emílio chega, Angiolina reclama de seu atraso, mas ele lhe mostrou o relógio que provava estar chegando na hora marcada. Ela vinha vestida com aprumo, num vestido castanho que Emílio não conhecia. Apressada, alegou o frio para remarcar o encontro para o dia seguinte, mas ele a segurou e por fim, como queria lhe dizer a verdade, gritou-lhe que esta era a última vez que se veriam…

E sabe por quê? Porque você é uma … – Hesitou um instante, depois gritou a palavra que até mesmo à sua ira parecia excessiva, gritou-a vitorioso, triunfando sobre sua própria dúvida.

– Largue-me – gritou ela transtornada pela raiva e peo medo -. Largue-me ou grito por socorro.

– Você é uma puta! – gritou de novo, vendo que conseguira irritá-la e assim renunciar à agressão física. – E pensa que eu não tinha percebido há muito a espécie de pessoa que você é? Quando encontrei você vestida de criada, na escada de sua casa – relembrou aquela noite em todos os seus pormenores – com aquele xale todo colorido na cabeça, os braços ainda quentes da cama, pensei logo na palavra que agora lhe disse. Mas preferi não dizê-la e continuar aproveitando-me de você como fizeram os outros todos, Leardi, Giustini, Sorniani e… e… Balli

Livre depois disso, viveu solitário. Até chegou a escrever um capítulo de um novo romance… mas depois tentou retornar à atividade artística, mas nada lhe surgiu. O destino lhe reservara viver esta experiência:

Durante muito tempo a sua aventura o deixou desequilibrado, descontente. Parram pela sua vida o amor e a dor e, privado desses elementos, encontrava-se agora com a sensação de alguém a quem tivesse sido amputada uma parte importante de seu corpo. Mas o vazio acabou por encher-se. Renasceu nele o amor pela tranquilidade, pela segurança, e o cuidado de si mesmo afastou-o de qualquer outro desejo.

Trago esta citação específica por duas razões:

  1. A personagem Emílio Brentani tinha escrito um romance que lhe dava a fama de escritor na cidade, mas vivia ou sobrevivia de seu trabalho alienante num escritório. Aliás, no romance, pouco aparece esta vida de trabalho. Seu romance não havia feito sucesso, mas o colocara no convívio com outros jovens artistas: escultor, pintor, etc. Tendo passado pelas duas mais fortes experiências – a da paixão e a da morte – retorna à literatura. Um segundo livro em que contaria a vida atribulada de uma paixão mal sucedida. Aqui aparece o registro de uma ficção possível que teria por tema precisamente a história fictícia que se acaba de ler… um jogo que pondo como ficção do livro a escrever, tornaria o que se narrou “verdade” vivida…
  2. Ítalo Svevo escreveu um primeiro romance que passou desapercebido pela crítica, mas que lhe deu fama de escritor em Trieste… Depois publicou Senilidade, novamente recebido sem qualquer entusiasmo. No entanto, sua amizade com James Joyce o incentivou a republicar o livro, porque este havia feito ver a dois críticos franceses – Benjamin Crémieux e Valéry Larbaud – o valor dos dois romances publicados. A segunda edição do livro, em 1927, vem precedida de um prefácio do autor que narra as vicissitudes do próprio romance.

Estas duas observações tem para mim um interesse particular: a primeira porque traz uma técnica que fazer passar por verdade o que se acaba de narrar pelo jogo de contraponto entre duas narrativas; a segunda porque remete às relações entre a própria vida do autor e sua obra. É inescapável que num romance, o ambiente – físico e social – em que vive o autor apareçam; mais raro é que a história de vida deste também apareçam, mas aqui é inegável que num sentido muito vago, Emílio Brentani é Ítalo Svevo, que na verdade é Ettore Schmitz.

Talvez uma das razões para tomar o autor como fundador da moderna literatura italiana tenha a ver com uma mudança radical em relação aos romances românticos. Enquanto a história de madame Bovary se dá entre a pequena nobreza rural, enquanto o tédio e enfado fazem de Bovary pecar, aqui o que encontramos é um romance tipicamente urbano, entre um “empregado” pequeno burguês (com resquícios de um tempo passado) com uma mulher filha de operário, vivendo na cidade e nela encontrando uma forma de explorar o único bem que lhe coube: a beleza física. Madame Bovary é de meados do século; Angiolina Zarri é uma mulher do começo do século XX. E isto faz uma diferença enorme.

Referência. Ítalo Svevo. Senilidade. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982.

A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética através da estética

A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética através da estética

Não acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja estão com os olhos vendados, Que estranho, por que será, Como hei-de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não vêem, Engano teu as imagens vêem com os olhos que as vêem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que eu não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja,

(José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, p.301-302)

 

Resumo

Neste trabalho serão tomadas algumas noções da estética bakhtiniana, tais como de ‘excedente de visão’, formulada com base na relação com a alteridade e transposta para a análise da relação autor-herói, e as noções de ‘acabamento’ e ‘memória do futuro’, formuladas para explicar as relações autor-herói, transpostas para a construção de uma ética que, assumindo a diferença, mantém a transcendência humana não como criação mas como processo, sempre inacabado, de relações dialógicas de constituição da subjetividade, lugar de integração dos “três domínios da cultura humana – a ciência, a arte e a vida”. Poemas de Manoel de Barros e Patativa do Assaré e um texto de João Guimarães Rosa serão tomados como referências para a discussão das relações entre arte, identidade e diferença.

 

Abstract

This article consists of some notions of Bakhtin’s aesthetics, as that of an “excess of the author’s seeing”, formulated according to the relation with the alterity and transposed to the analysis of the relation author-hero, and the notions of  “consummation” and “memory of the future”, formulated to explain the relation author-hero, transposed to the construction of such an ethics that, assuming the difference, keeps the human transcendence not as creation, but as an always unconsummated process, of dialogical relations of subjectivity constitution, place of integration of  the “three domains of the human culture – science, art and life”.  Poems by Manoel de Barros and Patativa do Assaré and a text by João Guimarães Rosa will be taken as reference for the discussion of  the relations amongst art, identity and difference.

 

  1. Introdução

Talvez este seja um tempo em que as imagens que projetamos como futuro tenham deixado de nos ver porque nós, vivendo o presente de uma ordem mundial globalizada e assentada no movimento de capitais virtuais e de seus lucros, deixamos de enxergar quaisquer caminhos alternativos de construção de uma nova ordem. Na seriedade superficial e cotidiana de uma imprensa que comenta fatos e prega o discurso hegemônico e com pretensões de ser único, os discursos que apontam as desgraças, as misérias e os sofrimentos são ironizados. De qualquer voz contrária que se levante, cobra-se a proposição de um mundo acabado e sem as mazelas contemporâneas. Cobra-se que da proposição surja uma realidade por passe de mágica. Não havendo tal proposição nem sua magia, o discurso é tornado vazio de sentido pela imposição dos sentidos pré existentes. Quer se fazer crer que estamos para sempre presos à racionalidade do mercado e a suas técnicas. A ordem está dada, como se a ela não tivéssemos chegado depois de um longo percurso histórico, um tempo em que as imagens não eram cegas porque enxergavam pelos nossos olhos que ainda carregavam sonhos. Será possível escapar à ordem sem compor imagens de futuro?

Talvez este seja um tempo de purgar a desqualificação: apostamos tanto em nossos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade – e tínhamos fé no caminho do progresso como forma de sua concretização – que esquecemos de compreender qualquer outra fé, qualquer outra idéia, qualquer outra pessoa. Empacotamos nossos modos de ser e os espalhamos por toda a parte como “informação e modernidade” no mercado da cultura de massa construída pelos processos mediáticos, e no mercado da especulação transformamos a todos em devedores, e quando a dívida não foi suficiente para imobilizar, de exércitos lançamos mão para impor aos outros serem espelhos de nós mesmos. O mundo viu desaparecerem outros saberes, tornou-se pobre em narrativas e em narradores, apequenou-se no grande feito de desqualificar o diferente e moldá-lo à imagem real e concreta do homem branco, ocidental e europeizado. Para fugir a este mercado mundial da cultura sobraria apenas a submissão aos autoritarismos das comunidades (Touraine, 1997), muito próximas aos fundamentalismos de todos os matizes? O conjunto de conflitos dos mais diferentes níveis – desde as entusiastas e pacíficas manifestações do Fórum Social de Porto Alegre, passando pelos movimentos contrários ao “fast life” contemporâneo, pelas formas de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra do Brasil, chegando à resistência dos zapatistas no México ou mesmo aos desesperos dos gestos suicidas de palestinos – não estaria a mostrar que é pequeno demais o uniforme com que se quis vestir o mundo?  Mesmo sob peles aparentemente bem comportadas de um mundo desejado uniforme, dos conflitos parecem emergir diferenças insubmissas.

Talvez este seja um tempo de retorno às perguntas cruciais: quem somos? Perturbados pela consciência da mortalidade, e conseqüente desassossego dos sentidos, parece que estamos condenados a significar:

…nós, os humanos, não podemos crescer, viver e envelhecer sem instituir um tempo, sem fragmentar, pautar e contabilizar seu devir e seu passar; não sabemos deixar transcorrer nossa vida sem nomear, seqüenciar, ordenar e esclarecer o sentido do que passa e do que existe, do que permanece e do que se desvanece; não desejamos viver sem especificar o indivíduo próprio e o alheio, o que nos une e nos separa, o que nos diferencia e nos iguala. (Placer, 2001, p.82).

Projetar, qualificar e significar. Memória de futuro, cálculo de horizontes de possibilidades e acabamento transitório do presente: três aspectos de uma mesma, complexa e contínua perturbação: a das perguntas fundamentais,

que deveriam acompanhar-nos sempre como sinal de uma capacidade, essa sim, comum a todos os seres humanos: a capacidade que mantém viva a pergunta precisamente porque, sabendo que não há resposta, obriga-nos a continuar perguntando. (Ibañez, J. El regreso del sujeto, apud. Ferre, 2001, p.206)

 

  1. Dialogia e alteridade

Sem dúvida alguma, o pensamento bakhtiniano alicerça-se em dois pilares: a  alteridade, pressupondo-se o Outro como existente e reconhecido pelo “eu” como Outro que não-eu e a dialogia, pela qual se qualifica a relação essencial entre o eu e o Outro. Evidentemente, assumir a relação dialógica como essencial na constituição dos seres humanos não significa imaginá-la sempre harmoniosa, consensual e desprovida de conflitos. Estes são princípios gerais de toda a arquitetura do pensamento de Bakhtin e não serão aqui retomados, mas assumidos como axiomas.

Sem qualquer pretensão de utilizar com fidelidade outros conceitos igualmente produtivos, expressos em dois de seus primeiros trabalhos (Autor e Herói – Filosofia do Ato Ético), o objetivo deste trabalho é correr o risco de percorrer conceitos formulados na análise estética para extrair conseqüências éticas. As infidelidades, possíveis e previstas pelo próprio autor, para quem a compreensão é uma construção do leitor a partir de suas contrapalavras, podem ser mitigadas comparando-se as conseqüências extraídas para o campo ético com as afirmações de Bakhtin neste campo.

O contexto maior, dentro do qual os conceitos de ‘excedente de visão’, ‘memória do futuro’, ‘cálculo de horizontes de possibilidades’ e ‘acabamento’ serão manuseados, é o contexto da concepção de linguagem como atividade constitutiva tanto da consciência dos sujeitos, e portanto da formação da subjetividade pelos processos de internalização dos signos nas interações sociais(2), quanto da própria língua, entendida esta como uma sistematização em aberto de recursos expressivos, signos cuja vocação é a mudança, paradoxalmente pelo reaparecimento e reconhecimento do idêntico e mesmo em novo contexto – um enunciado concreto – em que é a construção do novo,  e portanto do diferente, que importa.

2.1. Excedente de visão

A consciência do autor é consciência de uma consciência, ou seja, é uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo, que engloba e acaba a consciência do herói por intermédio do que, por princípio, é transcendente a essa consciência e que, imanente, a falsearia. O autor não só vê e sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e todos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse excedente, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em comparação com cada um dos heróis, que fornece o princípio de acabamento de um todo – o dos heróis e o do acontecimento da existência deles, isto é, o todo da obra.

[…]

…a fórmula geral do princípio que marca a relação criadora, esteticamente produtiva, do autor com o herói, uma relação impregnada da tensão peculiar a uma exotopia – no espaço, no tempo, nos valores – que permite juntar por inteiro um herói que, internamente, está disseminado e disperso no mundo do pré-dado da cognição e no acontecimento aberto do ato ético; que permite juntar o próprio herói e sua vida e completá-lo até torná-lo um todo graças ao que lhe é inacessível, a saber, a sua própria imagem externa completa, o fundo ao qual dá as costas, sua atitude para com o acontecimento da sua morte e do seu futuro absoluto, etc. (Bakhtin, 1992, p.32/33 e p. 34)

Transportemos o conceito de “excedente de visão” para o mundo da vida. Da vida não há um autor(3) e se estou vivendo, tenho um por-vir e portanto sou inacabado. O todo acabado de sua vida o ‘eu’ não o domina. Por isso o mundo da vida é um mundo ético, embora a vida possa ser vivida esteticamente. Imaginemo-nos dentro deste mundo: estamos expostos e quem nos vê, nos vê com o “fundo” da paisagem em que estamos. A visão do outro nos vê como um todo com um fundo que não dominamos. Ele tem, relativamente a nós, um excedente de visão. Ele tem, portanto, uma experiência de mim que eu próprio não tenho, mas que posso, por meu turno, ter a respeito dele. Este “acontecimento” nos mostra a nossa incompletude e constitui o Outro como o único lugar possível de uma completude sempre impossível. Olhamo-nos com os olhos do outro, mas regressamos sempre a nós mesmos e a nossa incompletude, pois “tudo quanto pode nos assegurar um acabamento na consciência de outrem, logo presumido na nossa autoconsciência, perde a faculdade de efetuar nosso acabamento” porque a experiência do outro, mesmo sendo do ‘eu’, lhe é inacessível.

Se a experiência do ‘eu’ vivida pelo outro é inacessível, esta inacessibilidade, a mostrar sempre a incompletude fundante do homem, mobiliza o desejo de completude. Aproximamo-nos do outro, também incompletude por definição, com esperança de encontrar a fonte restauradora da totalidade perdida. É na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem. É nesta atividade que se constrói a linguagem enquanto mediação sígnica necessária. Por isso a linguagem é trabalho e produto do trabalho. Enquanto tal, carrega cada expressão a história de sua construção e de seus usos. Nascidos nos universos de discursos que nos precederam, internalizamos dos discursos de que participamos expressões/compreensões pré-construídas, num processo contínuo de tornar intraindividual o que é interindividual. Mas a cada nova expressão/compreensão pré-construída fazemos corresponder nossas contrapalavras, articulando e rearticulando dialogicamente o que agora se apreende com as mediações próprias do que antes já fora apreendido.

 

2.2. Memória do futuro

Uma efetiva vivência interior minha – na qual tomo parte ativa – não pode ser tranqüila, deter-se, terminar-se, findar-se, acabar-se, não pode escapar a minha atividade, cristalizar-se de repente numa existência autônoma, concluída, com a qual minha atividade nada mais teria a ver, pois o que vivo é vinculado às coerções do pré-dado, e, de dentro, nunca pode deixar de ser vivido, ou seja, não posso livrar-me da minha responsabilidade para com o objeto e o sentido. […] Posso esquecer o objeto e então ele deixa de existir para mim, mas, se o guardo na memória (em seu valor), será no nível do que lhe é pré-dado e não do que o faz já-aqui.. Para mim, a memória é memória do futuro, para outro, memória do passado. […]

…é somente no futuro que se situa o centro de gravidade efetivo de minha própria autodeterminação. Por mais ingênua e aleatória que seja a forma que o-que-deve-ser e o-que-é-esperado podem revestir, o importante é que eles não se situam aqui, nem no passado, nem no presente. E o que quer que eu obtenha no futuro, mesmo que seja tudo o que eu anteriormente antecipara, o centro de gravidade de minha determinação não deixará de ser arrastado numa evolução que o impelirá para frente, para o futuro, e eu me apoiarei em meu próprio por-vir.   (Bakhtin, op.cit.p.139-141)

Enquanto a posição exotópica ocupada pelo Outro lhe permite um excedente de visão, pelo qual também nos orientamos na busca de completude e acabamento, o próprio sujeito desloca-se, no tempo, e estabelece no futuro a razão de ser de sua ação presente que, concretizada, torna-se pré-dado para futuras ações, sempre orientadas pelo sentido que lhe concede a razão perpetuamente situada à frente. Se no mundo estético, o futuro da personagem e dos acontecimentos são desde já ‘conhecidos’ do autor – e é precisamente as formas de operar com este conhecimento na relação com o herói que define relações monológicas ou polifônicas nas narrativas – no mundo ético, tempo dos acontecimentos, cada um tem a responsabilidade pela ação concreta definida não a partir do passado – que lhe dá condições de existência como um pré-dado – mas a partir do futuro, cuja imagem construída no presente orienta as direções e sentidos das ações. É do futuro que tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e  com que estamos sempre revisitando e recompreendendo o passado.

 

Por isso, o apagamento de imagens de futuro cega a compreensão do presente, já que este encontra naquelas o seu valor. Obviamente, os modos de construção do futuro, do qual nos sobram as memórias, podem ser derivar para uma acabamento absoluto, prévio, pré-dado: o futuro não como uma memória no presente, mas como uma determinação fechada e autoritariamente imposta. O sutil traço que separa a memória do futuro da ideologia, é o fato de esta fixar previamente como deve-ser-o-futuro, descurando-se de que cada ação do presente, tornando-se condição de possibilidade do futuro, pode alterar os desenhos destes futuros. Numa perspectiva, o futuro é estabilidade instável, sem território, perpetuamente deslocável; noutra, o futuro é território mapeado, sem surpresas, a ser implantado.

 

2.3. Cálculo de horizonte de possibilidades

… um autor modifica todas as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que, na vida, reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que nos rodeiam: na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta, etc., expressamos unicamente a posição que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e esse juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele.

[…]

Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo estar inacabado, aberto para mim mesmo – pelo menos no que constitui o essencial da minha vida -, devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.

(Bakhtin, 1992, p.25 e p.33)

Vivendo o cotidiano da história, sem um autor que nos conduza,  a cada momento somos “solicitados” a optar por caminhos pelos quais conduzimos nossas vidas- e freqüentemente nela somos conduzidos. Decidimos por um ou outro caminho a partir de um cálculo de possibilidades, sempre limitadas de um lado pela situação do presente e, de outro lado, pelo por-vir imaginado. Se o passado permitiu o presente, é com base na memória do futuro que selecionamos dentre as possibilidades do presente aquela que efetivamente será nossa ação (ou nossa opção).

 

A organização social rotiniza os acontecimentos, fazendo com que neles não vejamos o singular, mas a repetição do mesmo, de modo que a cada momento vamos deixando de calcular os horizontes de possibilidades – os inéditos viáveis na expressão de Paulo Freire. Para a estabilização da história, é necessário não refletir sobre a nossa própria prática cotidiana e singular. No entanto, é no singular que o tom emocional e volitivo se tomam corpo enquanto parte inalienável do ato ético.

 

The emotional-volitional tone, encompassing and permeating once-occurent being-as-event, is not a passive psychic reaction, but is a certain ought-to-be attitude of consciousness, an attitude that is morally valid and answerably active. This is na answerably conscious movement of consciousness, which tansforms possibility into the actuality of a realized deed (a deed of thinking, of felling, of desiring, etc). (Bakhtin, 1993, p.36)

 

A sociedade em que vivemos hoje, construída com base no conjunto de valores, saberes e conhecimentos que nos foram transmitidos, é cada vez mais excludente. E sendo excludente, cada vez é menor o número de sujeitos considerados competentes para calcular possibilidades: por isso o ‘pão nosso’ de cada dia nos é servido pronto e acabado, como caminho único possível, de modo que ao deixar de definir as ações do presente, alienamos também a definição do futuro.

 

2.4. Acabamento

 

O homem não pode juntar a si mesmo num todo exterior relativamente concluído, porque vive a sua vida na categoria de seu eu. Não é por falta de material no plano de sua visão externa – ainda que sua insuficiência seja considerável – mas por falta de um princípio valorativo interno que lhe permitisse, de dentro de si, ter uma abordagem para sua expressividade externa. Espelho, fotografia, auto-observação nada mudarão. Na melhor das hipóteses, obtém-se uma falsificação, um produto estético criado de modo interesseiro, a partir do outro possível, desprovido de autonomia.

É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano de existência. (Bakhtin, 1992, p.55)

 

No mundo dos acontecimentos da vida, campo próprio do ato ético, estamos sempre inacabados, porque definimos o presente como conseqüência de um passado que construiu o pré-dado e pela memória do futuro com que se definem as escolhas no horizonte das possibilidades. Nosso acabamento atende a uma necessidade estética de totalidade, e esta somente nos é dada pelo outro, como criação e não como solução. A vida, concebida como acontecimento ético aberto, não comporta acabamento e, portanto, solução.

 

Está na incompletude a energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa. E como incompletude e inconclusão andam juntas, nossas identidades não se revelam pela repetição do mesmo, do idêntico, mas resultam de uma dádiva da criação do outro que, dando-nos um acabamento por certo sempre provisório,  permite-nos olharmos a nós mesmos com seus olhos. Como muitos são os outros em cujos olhos habitamos para dar-nos um acabamento, nossas identidades são múltiplas, estabilidades instáveis a que sempre regressamos, pois

 

Tudo que pode nos assegurar um acabamento na consciência de outrem, logo presumido na nossa autoconsciência, perde a faculdade de efetuar nosso acabamento e apenas amplia em nossa consciência a orientação que lhe é própria; ainda que conseguíssemos apreender o todo de nossa consciência, no acabamento que ele adquire no outro, esse todo não poderia impor-se a nós e assegurar nosso próprio acabamento, nossa consciência o registraria e o superaria, assimilando-o a uma modalidade de sua unidade que, no essencial, é pré-dada e por-vir; a última palavra pertencerá sempre à nossa consciência e não à consciência do outro; quanto à nossa consciência, ela nunca dará a si mesma a ordem de seu próprio acabamento. (Bakhtin, op.cit. p.36)

 

Também as mediações sígnicas, construídas neste trabalho contínuo de interações com o outro e de constituição das consciências, não podem ser compreendidas como um sistema fechado e acabado de signos para sempre disponíveis, prontos e reconhecíveis. A linguagem, enquanto atividade, implica que até mesmo as línguas (no sentido sociolinguístico do termo) não estão de antemão prontas, dadas como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-las segundo suas necessidades. Sua indeterminação não resulta apenas de sua dependência dos diferentes contextos de produção ou recepção. Enquanto “instrumentos” próprios construídos neste processo contínuo de interlocução com o outro, carregam consigo as precariedades do singular, do irrepetível, do insolúvel, mostrando sua vocação para a mudança. Se os instrumentos de constituição da consciência têm tais características, não se pode imaginar que o processo de internalização dos signos, que nos constitui como sujeitos, seja um processo de cristalização dos sentidos e da fixação do idêntico. Ao contrário, as identidades socialmente constituídas nestas relações com o outro – os outros – e através destes signos, encarnam as mesmas características e fazem múltiplas as identidades de cada um.

 

  1. Desigualdades e diferenças

 

Se os conceitos bakhtinianos introduzidos aqui para pensar relações entre arte e identidade elevam a alteridade, e com ela a diferença, ao patamar máximo da necessidade para a vida ética, tornando o outro e o diferente o único consolo de nossas incompletudes e de nossas insolubilidades, como se tornou possível uma organização social, cujo lastro é um sistema de exclusões(4), num  mesmo tempo em que, de todos os lados, as ciências apontam para as instabilidades e indeterminações, para as identidades diferenciadas, para o local e único,  para as bifurcações e para os acasos? Aqueles que se beneficiam com a exclusão, os únicos rumores que ouvem são os humores do mercado. E no mercado atuam seus pares. A estes não interessa pensar o inimaginável e arriscar-se a extrair dos acontecimentos os conteúdos para o futuro. Interessa-lhes transmitir o conhecido para que o já acontecido permaneça como o único acontecimento possível do futuro. Para recuperar a relação com a alteridade é necessário

 

refletir sobre como hoje, no interior de um sistema social no qual o fetichismo inicial da mercadoria tem sido já compensado, redobrado e transbordado pelo “fetichismo das identidades e das diferenças”, essas ambiciosas empresas de nossa Consciência Humanitária, essa pretensão tão atual, tão nossa e tão ocidental de encarnar o Humano – com letra maiúscula – de saber significar de forma universal e definitiva seus limites, só se pode conseguir mediante uma plural e sistemática depredação e recusa do Outro que se sustenta, mais do que no acréscimo das rivalidades e/ou na demolição das fronteiras e barreiras (econômicas, militares, religiosas, ideológicas, políticas etc.), na permanente exterminação de qualquer sinal de singularidade, de qualquer registro que pudesse quebrar ou romper a homologação lavrada e esculpida por nosso princípio de identificação/diferenciação, de qualquer vestígio de alteridade no “ser-outro do outro”; exterminação, ainda que paradoxal e presumivelmente nunca finalizada, visto que, entre outras coisas, corre paralela à extrapolação enlouquecida do Mesmo, e à constante reprodução diferencial e perpétua produção (real e virtual, simbólica e imaginária), também, do Outro. (Placer, op. cit., p. 80)

 

Depredação e recusa na relação com a alteridade produziram desigualdades, e muitas do que denominamos “diferenças sociais” são produções destas desigualdades, já que diferenças apenas podem emergir entre semelhantes ou entre iguais. Somos contemporâneos das desigualdades, aprofundadas à medida que a globalização, resultado das mudanças tecnológicas e mediáticas, ao invés de ampliar o mundo, o reduziu encurtando distâncias, convertendo-nos em “seres desenraizados; não há mais territórios de familiaridade, mas atomização, multidão de fragmentos dispersos que combinam familiaridade e estranheza” (Birulés, 1996, p.223). Diferença não é sinônimo de desigualdade. Com diferenças muitas vezes escondemos desigualdades. Diferenças só são percebidas nas familiaridades compartilhadas; desigualdades são recusas de partilha.

Ano de 1971, eu aluna do quarto ano de medicina. Primeira aula prática de ortopedia. Dez colegas adentramos numa sala de consultas, seguindo o professor. Lá dentro, uma mulher com uma criança de uns nove meses no colo, mãe e filha. Sob a manta, escondem-se os pés tortos da criança. O professor começa a aula, manipulando os pés defeituosos, para nos mostrar a doença. A criança chora todo o tempo, porém naquele espaço-tempo, só existem seus pés, o problema, o plano terapêutico. Não agüento e saio da sala, sem querer ver/ouvir mais nada – verdade seja dita, independente de meus sentimentos, o que cada um dos dez poderia ver/aprender, naquelas condições? Enfim, saio indignada, revoltada, porque sabia que poderia ser diferente.

Primeiros anos de minha vida… Várias imagens se confundem, se fundem, como se todas tivessem acontecido na mesma data. Eu, no colo de minha mãe, me jogando para os braços de um homem de branco. Eu, no colo da tia Rosa, pernas engessadas, choramingando e pedindo para o mesmo homem não usar a máquina, eu tinha medo que ela cortasse minhas pernas e ele, sorrindo, tirando o gesso com uma faquinha… Ele me consolando, me compreendendo, dizendo que o gesso era mesmo muito chato, pesado, mas eu tinha que agüentar mais um pouco para ficar boa… Dezembro de 1967, eu emocionada indo contar a ele que havia entrado na faculdade de medicina. Ele, o Dr. Assis (Luís Tarquínio de Assis Lopes) o meu ortopedista, de quem eu gostava muito, que me viu pela primeira vez com três dias de vida – eu tinha pés tortos congênitos – e em quem eu confiava plenamente.

Eu havia vivenciado uma relação entre um médico e uma criança diferente, em que a criança não era abstraída, o pé torto era apenas uma parte de mim, por isto eu sabia que podia ser diferente.

Quando me retirei da aula, provavelmente foi por raiva, indignação. Hoje identifico aí possíveis lampejos de compreensão humana. E não posso deixar de me questionar: como conseguir ensinar isto? Como atingir essa educação do futuro? Será necessário que cada futuro médico passe pela experiência de atravessar a fronteira e ser transformado em objeto da prática médica para se tornar um profissional solidário?

(Moysés, Maria Aparecida Affonso, Memorial de Titularidade, FCM/Unicamp, inédito)

 

A narrativa, talvez uma das remanescentes formas de compartilhar saberes de experiências vividas, mostra-nos com riqueza exemplar a distinção entre desigualdade e diferença:

  • são crianças socialmente desiguais, aquela que já com três dias é atendida pelo seu ortopedista, a outra é “um pé torto” exposto a um ortopedista e dez alunos num consultório: crianças desiguais;
  • uma criança com que uma aluna se identifica, semelhantes em seus medos, seus choros e seus pés; na aluna, a memória inalienável de um passado que é um pré-dado de construção de um futuro possível: podia ser diferente;
  • identidades compartilhadas, somos diferentes mas não somos desiguais, levam a compreensões diferentes da prática médica e acabam iluminando as ações do presente na construção de um futuro.

 

Do ponto de vista bakhtiniano, no mundo da vida “calculamos”, a todo instante, com base na memória do futuro desejado, as possibilidades de ação no presente. Não se trata de reintroduzir, a partir da idéia de memória do futuro, a idéia de salvação terrestre. O “devir está problematizado e assim ficará para sempre”,  pois vivemos um “contexto no qual  as metanarrativas de qualquer gênero são olhadas com profunda desconfiança” (Silva,2000, p.14). Trata-se de pensar que a todo momento, a todo  acontecimento, o futuro é repensado, refeito e deste lugar desterritorializado, sempre mutável, o sujeito se situa para analisar o presente vivido e, nos limites de suas condições e dos instrumentos disponíveis, construídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados, ou recriados pelo presente, uma das possibilidades de ação é selecionada. Somos movidos pelas utopias, pelos sonhos, pois “nada é mais pobre que uma verdade sem o sentimento de verdade”(Morin, op.cit. p.33).

 

Assumindo que a relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo dos sujeitos, com a  precariedade própria da temporalidade que o específico do momento implica, a instabilidade dos sujeitos – e da história – não é um problema a ser afastado, mas ao contrário é inspiração para recompreender a vida, assumindo a irreversibilidade de seus processos.(5) Como temos distintas histórias de relações com os outros – cujos “excedentes de visão” buscamos em nossos processos de constituição – vamos construindo nossas consciências com diferentes palavras que internalizamos e que funcionam como contrapalavras na construção dos sentidos do que vivemos, vemos, ouvimos, lemos. São estas histórias que nos fazem únicos e “irrepetíveis”. Unicidade incerta, pois se compreendemos com palavras que antes de serem nossas, foram e são também dos outros, nunca teremos certeza se estamos falando ou se algo fala por nós.

 

  1. Arte, mundo das diferenças

 

Quando o olhar para as construções estéticas deixarem de lado as classificações que tornam desigual tudo o que é diferente – a escultura deles é “artesanato”; o poema deles é literatura de cordel; as artes plásticas deles são ingênuas; a crítica deles é ideologia – talvez reecontremos na experiência estética o que de comum compartilhamos como homens – a capacidade de criar. Para isso, será necessário lutar contra as desigualdades e abrir-se para enfrentar o inusitado. Entre os saberes necessários à educação do futuro, Morin (2000) inclui “enfrentar as incertezas”, e inicia a discussão desta proposta  com uma epígrafe de Eurípedes: “Os deuses criam-nos muitas surpresas: o esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho”.

 

Certamente a arte é um destes lugares do inesperado e, como o gênio, sua possibilidade

 

decorre de que o ser humano não é completamente prisioneiro do real, da lógica (…), do código genético, da cultura, da sociedade. A pesquisa, a descoberta avançam no vácuo da incerteza e da incapacidade de decidir. O gênio brota na brecha do incontrolável, justamente onde a loucura ronda. A criação brota da união entre as profundezas obscuras psicoafetivas e a chama viva da consciência. (Morin, op.cit.p.60-61)

 

O poeta Manuel de Barros desvela esta mesma faceta da arte, em poema em que homenageia outro artista, o escritor João Guimarães Rosa:

Passarinho parou de cantar.

Essa é apenas uma informação.

Passarinho desapareceu de cantar.

Esse é um verso de J.G. Rosa.

Desapareceu de cantar é uma graça verbal.

Poesia é uma graça verbal.

 

Salientando a graça verbal do dizer, onde a racionalidade da informação eficiente abre espaço ao inusitado, Manoel de Barros trabalha a linguagem para mostrar o trabalho estético de outrem: ao mesmo tempo que exemplifica faz poesia.

O trabalho estético com a linguagem somente é possível porque seus sentidos e suas formas não são determinadas de antemão: as línguas não são sistemas estruturados e acabados, mas sistematizações em aberto que incorporam as indeterminações necessárias para que ela mesma possa funcionar. Ao mesmo tempo que exerce uma função reguladora pelos signos – sempre ideológicos – que internalizamos, a linguagem abre-se ao trabalho do homem no fazer aqui e agora de seus enunciados concretos. Estes não seriam possíveis se tudo estivesse já determinado. A “graça verbal” seria intolerável. O jogo de dizer o que seria o dizer do outro, voz que Manuel de Barros empresta a João Guimarães Rosa, para com um suposto dito deste sobre ele dizer. Polifonia de vozes operando determinações de sentidos a partir do retorno das significações reconhecidas: o corpo material dos recursos expressivos presente e desnudo ao mesmo tempo. Reconhecimentos e significações; compreensões do novo concomitante à definição da profissão do poeta: Poesia é uma graça verbal. Definição poética do ofício, exercendo o ofício.

Por seu turno, Guimarães Rosa, em uma de suas histórias, oferece à reflexão formas de relações consigo próprio e  com a alteridade:

Espelho

[…]

“O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho? (…)

 

O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel.

Mas, que espelho?

Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não.

E onde situar o nível e ponto dessa honestidade e fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?”

[…] (6)

O espelho, são muitos. E ainda que devolvam, bons ou maus, favorecendo ou detraindo, imagens que vemos, resta a pergunta: como somos, no visível? Somente o outro pode dizer e os outros são nossos espelhos muitos, mas nas relações com eles é preciso estar aberto à diferença para que o praticamente imudado se torne mudado. A passagem de Ensaio Sobre a Cegueira, aqui utilizada como epígrafe, dialoga tematicamente com Guimarães Rosa: a falta do outro, a falta do espelho, produz cegueira. Na leitura destes textos, a memória traz à tona um terceiro autor, uma nota do náufrago e solitário  Robinson Crusoé, na versão de Michel Tournier:

Sei agora que todos os homens trazem em si – e dir-se-ia, acima de si – uma frágil e complexa montagem de hábitos, respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações, que se formou, e vai-se transformando, no permanente contato com os seus semelhantes. Privada da seiva, esta delicada florescência defina e desfaz-se. O próximo, coluna vertebral do meu universo.

Na primeira estrofe de “Desarticulados para viola de cocho”, Manuel de Barros, mais uma vez faz jogo das polifonias, desta feita trazendo ao final da estrofe uma referência bibliográfica: Neto Botelho in Psicologia das mulatas do Catete, O vaqueiro metafísico e outras estórias, livro suposto de autor suposto existente, e do qual supostamente retirou o seguinte diálogo:

Compadre Amaro: – Vai chuvê, irimão

Compadre Ventura: – Pruquê? irimão?

Compadre Amaro: – Saracura tá cantando.

Compadre Ventura: – Ué, saracura é Deusi?,

– se fosse imbusi, sim…

Jogo de vozes de um diálogo explícito entre os dois compadres, e um elo na cadeia infinita de enunciados, pela remessa de Manuel de Barros a Neto Botelho, remessa por seu turno interna ao verso entre uma mesma crença que se manifesta por signos diferentes: o saber de experiência feito, que prediz o futuro pelo acontecimento do presente: o canto dos pássaros anunciando a chuva. Este é um saber de experiência, produto da observação e convívio com a natureza. Mas os narradores vêem cantores diferentes: saracura e imbusi. Se para compadre Amaro, o canto de saracura é prenúncio de chuva, para compadre Ventura somente o canto de imbusi faz o mesmo anúncio. No raciocínio de Ventura, saracura não é Deus, portanto não “manda no tempo”; mas o imbusi sendo pássaro – de Deus? – pode ser porta-voz de deus e cantar a chuva que vem! O diálogo encenado coloca os interlocutores num mesmo mundo de previsões, mas atribuições distintas a pássaros distintos, sem que o quadro cultural das crenças seja recusado.

Importante também registrar enunciadores e enunciados postos em circulação pelo poeta Manuel de Barros. O primeiro poema remete à sociedade letrada, de onde sai o interlocutor Guimarães Rosa, autor que, como o poeta, recolhe na língua viva do sertão os modos de expressão que lhes são próprios para com eles criar e fazer circular uma língua outra. O segundo poema remete à cultura rural e encena um diálogo de interlocutores que expõem em sua linguagem crenças e graças verbais, sem que estes sejam apresentados como desiguais. O poeta – como o romancista – exploram a diferença e através delas põem em circulação diferentes discursos e diferentes saberes. Não há uma depredação e recusa do Outro: ao contrário, suas vozes e saberes passam a circular nas vozes que o poeta e o romancistas lhes emprestam.

Por fim, o último exemplo é de Patativa do Assaré

 

O meu livro

 

Meu nome é Chico Braúna

eu sou pobre de nascença,

diserdado de furtuna

mas rico de conciença.

Nas letra num tive istudo

sou mafabeto de tudo

de pai, de mãe, de parente.

Mas tenho grande prazê

Pruquê aprendi a lê

duma forma deferente.

 

ABC nem beabá

no meu livro não se incerra.

O meu livro é naturá

É o má, o céu e a terra,

cum a sua imensidade.

Livro cheio de verdade,

de beleza e de primô,

tudo incadernado, iscrito

pelo pudê infinito

do nosso Pai Criadô.

 

[…]

 

Deus quando o mundo criou

ordenou a paz comum

e com amô insinou

O devê de cada um

Os home pra trabaiá

Um ao outro respeitá

e a boa istrada segui…

e os bichos irracioná

prumode se alimentá

produzi e reproduzi

 

Ainda hoje os animá

as orde santa obedece

sem uma virga faltá

se alimenta, omenta e cresce

eles que nada imagina

que nada raciocina

não pensa nem tem razão

continua sem disorde

sempre obedecendo as orde

do sinhô da criação.

 

Neste poema, em que Patativa do Assaré contrapõe dois modos de estudar o mundo – o estudo através do livro e o estudo da natureza – reaparece uma velha e conhecida metáfora: Deus escreve no livro da natureza. Ao homem compete “ler” a natureza, e nela encontrar uma forma de “naturalizar” as relações. Às afirmações do poeta subjaz uma crítica ao animal racional, que não obedece as ordens do Senhor da Criação, e por isso não segue a natureza. A natureza não é uma voz qualquer, é a voz de Deus.

Estes são os “termos” que funcionam como contrapalavras para incorporar princípios positivistas da ciência no interior de uma formação discursiva religiosa. Um mundo já acabado e previamente definido, com que o poeta exorta os letrados para um retorno às garantias que a natureza pode oferecer. Certamente este poema de Patativa do Assaré, para além da exploração das características formais do poema, faz dele o porta-voz de uma cultura que se gestou longe das grotas do sertão: uma voz que incorporou a voz letrada do passado, e que retorna hoje ao mundo letrado para dele exigir coerência com suas próprias metáforas. Poema  carregado dos modos religiosos de sentir e ler o mundo, faz reaparecer um discurso de certezas no meio da insegurança ontológica e dos compromissos contemporâneos com o efêmero.

Apoderar-se da arte que se define pela diferença e é o lugar por onde podemos nos identificar; aprender a conviver com o inusitado; reencontrar sonhos abortados e, por fim, fazer ressurgir o sujeito – não como imagem de um deus criador com o qual cada um tem compromissos de concretizar na vida sua perfeição, à sua imagem e semelhança, nem como o sujeito todo poderoso certo e certeiro de sua racionalidade e de suas técnicas – e sim um sujeito frágil, humano demasiadamente humano, cuja identidade, estabilidade instável, se define pelos gestos de responsabilidade de ordenar a experiência do nosso fazer e do nosso padecer. Nossa liberdade maior, aquela que a arte nos ensina, é precisamente a capacidade de nos darmos uma lei

 

A liberdade, para dizê-lo numa clave sartreana, nos condena a darmo-nos uma lei (mas não nos diz que lei temos de dar-nos). A lei que nos damos pressupõe a liberdade, mas uma liberdade que não é ‘nossa’, de que não somos donos, uma liberdade que somente se converte em nossa liberdade quando nos damos uma lei, uma liberdade de que somente nos apropriamos inventando uma lei. (Pardo, 1996, p. 152-153)

 

Esta liberdade de darmo-nos uma lei remete à noção de responsabilidade tal como definida por Bakhtin e certamente não tendo compromissos ontológicos outros que não com o próprio princípio supremo do ato ético – a relação concreta entre o eu e o outro, inscreve a lei a nos darmos na complementaridade que o excedente de visão do outro permite, porque diferente seu posto de observação; calculados nossos horizontes de possibilidades, defendendo, ainda que conflituosamente enquanto vivemos entre desiguais, a sociedade que nossa memória do futuro projetou, dando-nos acabamentos provisórios para com eles construirmos nossos roteiros de viagens: eles dirão de nós o que fomos.

 

Notas

  1. Texto apresentado no V Congress of the International Society for Cultural Research and Activity Theory, realizado na Vrije Universiteit Amsterdam, 22 de junho de 2002, Invited Symposium “Art and Identity  Formation”. Agradeço à Fapesp que tornou possível a participação no Congresso. No mês de julho este mesmo texto foi a base de uma conferência proferida na Universität Siegen (Alemanha). Aqui o texto aparece em sua primeira versão. Para publicação, ele foi reduzido, particularmente nos exemplos (poemas) e nas notas de rodapé para ficar dentro dos limites exigidos pela publicação. Publicado em Freitas, M.T., Souza, S.J. e Kramer, S. Ciências Humanas e Pesquisa. Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo : Cortez Editora, 2003, p. 39-56.
  2. “Assim como o corpo se forma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a consciência do homem desperta envolta na consciência do outro.” (Bakhtin, 1992, p.378)
  3. Note-se que no pensamento religioso, uma das expressões com que se refere a divindade criadora é precisamente a de “autor da vida”. Enquanto autor e para o autor, a vida dos “heróis” está, em princípio, acabada pelos desígnios da própria obra.
  4. Nas sociedades capitalistas anteriores à globalização, mesmo os excluídos eram necessários ao funcionamento dos processos produtivos. Os desempregados constituíam o “exército de reserva”, necessário à manutenção da exploração da mais-valia. Hoje, os excluídos do mercado não têm sequer esta função! Os excluídos do passado estavam fora para que o sistema funcionasse; os excluídos do presente são absolutamente descartáveis, estão efetivamente fora do sistema. (Miotello, 2001)
  5. A propósito da reintrodução da “seta do tempo” nas ciências da natureza, ver Prigogine (1996)
  6. Agradeço a Cecília Goulart pela lembrança e sugestão de uso deste texto de Guimarães Rosa, quando de sua leitura da primeira versão deste trabalho.

 

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Natal, que Natal?

Natal, que Natal?

Hoje é dia de Natal. Uma manhã quieta, serena, de incômodo silêncio. Manhã de sono prolongado, silenciada, talvez, pelo excesso de festas exuberantes, de extravagantes custos. Manhã silenciada pelas alegrias efervescentes e barulhentas em interiores exóticos, iluminados por mil luzes de múltiplas cores – ou manhã de Natal silenciada pela falta absoluta de alegria em grande parte dos lares. Manhã de Natal silenciada pelo excesso de algazarra das crianças, abrindo pacotes de brinquedos elétricos-eletrizantes-eletrônicos, todos já prontos e programados-automatizados-robotizados para encantar os pequeninos – diferentemente aos milhões de crianças sem presente nenhum para se encantar. Bonecas mecânicas que falam, riem, choram, cantam, tocam músicas, bonecas mágicas que encantam crianças e adultos; caminhões, trens, máquinas, aviões, carrinhos em miniatura, que andam, viram cambalhotas, correm em trilhos e pistas, voam, comandados por controles eletrônicos, guiados por botões sob a pressão inteligente de dedinhos infantis. É uma manhã de Natal lenta, sonolenta, um tanto tristonha e preguiçosa, silenciada pelos efeitos da quantidade e variedade de bebidas alcoólicas e líquidos gaseificados, ingeridos pelos corpos adultos e infantis, desmesuradamente. Manhã silenciada pela extravagância de comida natalina  – ou pela falta absoluta de alimentos vitais para a massa de pobres – alimentos engolidos de uma vez só por bocas vorazes e depositados em estômagos dilatados. Manhã de Natal silenciada pelos estampidos e estrondo de bombas festivas, explodidas para acalmar as mágoas e as tristezas do dia a dia da vida sofrida. Uma manhã de Natal quieta, silenciada, por força de que mais?

A meia-noite de Natal já foi. Já se foram os abraços apertados, prolongados,  delicados, amorosos, de afeto contido ou magoado; os beijos de Natal, não importa se verdadeiros ou falsos, também se foram. Agora, quem sabe, só no próximo Natal. Os amigos secretos (e os presentes tão esperados) já não são mais secretos, se revelados. Se o presente foi generoso e precisamente o presente esperado, então a alegria é plena e o amigo será amado de verdade. Do contrário, se o presente foi módico, displicente, então o amigo é decepcionante e menor.  E como foi a alegria daqueles sem presente algum? A propósito, é possível haver alegria de Natal sem presentes?

Ainda é manhã de Natal. Olho, da janela do meu apartamento no sétimo andar do prédio, e vejo o mundo vazio. E me pergunto: onde estão as massas de compradores, consumidores, de clientes? Para onde foram as multidões agitadas, apressadas, indo e voltando, vindo e retornando pelas ruas, avenidas, praças? Onde foram parar as pessoas que na véspera de Natal entravam e saiam das galerias, dos shoppings, das lojas de vitrines todas enfeitadas de papais-noéis, de  estrelinhas e bolas douradas e coloridas, com pacotes dependurados nos braços, nas mãos, nos ombros, no peito e nas costas? Onde se esconderam os milhares de papais-noéis, com suas barbas brancas, gorros e roupas vermelhas, de botas de enfrentar a neve das montanhas em dias de pleno verão? Novamente me pergunto: qual o papel do papai-noel na sociedade de consumo de massa? Seria o papai-noel um ator ou uma mercadoria? Um trabalhador fantasmagorizado de velhinho bondoso, carinhoso, amante das criancinhas? Ou um vendedor excepcional mal remunerado?

Nesta manhã de Natal, os atores papais-noéis sumiram do cenário – ruas, praças, avenidas, marquises – e com eles sumiram os espectadores da plateia – consumidores compulsivos irrecuperáveis-incontidos-irremediáveis. Fico triste por isso? Nem tanto. Talvez aliviado. Os papais-noéis sumiram também da TV e com eles o mundo de propagandas fantasmagorizadas de felicidade. Aqui sim há alívio.

E para onde foi o Menino Jesus recém-nascido?  Certa ocasião, uma criança ao deparar-se diante da árvore de Natal em sua casa, recém montada e ornamentada com estrelas e bolas douradas e prateadas, com anjos de Natal, gordinhos, de bochechas rosadas, cabelos loiros e caracolados, infinidades de pequenas lâmpadas de luzes multicoloridas e uma montanha de caixas e pacotes de presentes, perguntou: “mamãe, onde vamos colocar o presépio com o Menino Jesus”? A mãe respondeu: “filha, nesta árvore de Natal, tão linda, cheia de brilho e de luzes, não há lugar para o presépio, tão pobre sem luzes na escuridão da noite. Você precisa entender que o Menino Jesus nasceu numa estrebaria entre animais e foi deitado numa manjedoura – prato em que se põe comida para os animais – sobre resto de palha e feno – comida seca para animais. A mamãe Maria e o papai José não tinham casa, plano de saúde, ginecologista, bercinho, roupinha macia e quentinha para o filhinho Jesus, então deitaram Ele na manjedoura, chamaram as vacas e os jumentos para bem pertinho aquecer “Jesus com o bafo”. Ao ver a filhinha triste com esta triste história, a mãe falou com severidade: “filha, esquece o presépio, esquece o Menino Jesus. Lembra-te do Papai Noel, que lhe trará um montão de presentes. Aqui, na nossa árvore de Natal, não há lugar para menino pobre e nem para sua família”.

Assim, no Natal de hoje, não há mais espaço e lugar para a celebração do sentido sagrado da vida.  Natal, então, como tudo na vida, virou mercadoria. A vida foi reduzida às coisas minúsculas e banais.

Agora já é meio-dia. Nada de novo para o almoço de Natal. Para aqueles que celebraram a ceia de Natal, comida requentada. Para aqueles sem ceia, comida de sempre, pouca e sem tempero. À mesa, pouca conversa.

Chegou a tarde de Natal. Já respiramos a aura do fim do Natal. A tristeza paira na vastidão do horizonte, anunciando 365 dias para o próximo Natal. As crianças, exaustas de operar os novos brinquedos, estão irritadiças e choronas. As pessoas grandes, aborrecidas ao se lembrar das contas que terão que pagar nos próximos meses.

Ao entardecer do dia de Natal, é hora das despedidas dos parentes e amigos. Muitos “obrigados”, muitos “pedidos de desculpas”, muitos convites para próximas visitas e abraços breves e sem muito entusiasmo. Então, é o fim do dia de Natal. O sol, já no horizonte, com seus raios sem muita intensidade, brilha, anunciando o fim de mais um dia cósmico. Exatamente o dia histórico de Natal e o fim de mais um dia de existência de cada um que viveu este Natal. As nuvens vermelhas anunciam estiagem para os próximos dias. O esplendor de uma tarde de Natal está esfumaçado de melancolia. O tédio retornou num nível mais elevado.

Assim, termino essa crônica natalina. Conversas comigo mesmo sobre o dia de Natal, escritas ao longo do dia de Natal.