CELEBRAÇÃO DA PERSISTÊNCIA NA LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO ESPETACULARIZADA

CELEBRAÇÃO DA PERSISTÊNCIA NA LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO ESPETACULARIZADA

Agora, um convite solidário e amoroso à persistência na luta. O ato público de votar acabou. Fica uma homenagem àquelas e àqueles que lutaram e continuam lutando por um Brasil melhor para todos, por um governo honesto, respeitoso, leal e justo, por uma sociedade igualitária, livre, responsável, solidária, sem preconceitos e discriminações, sem ódio, acima de tudo, por uma democracia participativa, viva. Proponho que a celebração desse ato político consciente aconteça com um brinde e com a degustação de um poema de Bertold Brecht, com o título: Os que lutam.

“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;

Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;

Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;

Porém há aqueles que lutam toda vida; esses são os imprescindíveis”.

Sim, e aqueles que não lutam nem um dia? Não lutam nenhum instante, sequer? Pior, alienam-se a quem promete mais. Muitos sequer votam, ou votam em branco, anulam o voto, há até os que nem votam.  E a culpa, de quem é? Dos alienados ou dos alienadores? Dois dos, o mais correto. Quer dizer, a culpa é dos que alienam para subjugar e dominar e dos que se deixam alienar por ignorância.

As múltiplas e as mais sagazes formas de alienação vem do passado bem distante, sempre atualizadas de formas e maneiras de acordo com os meios tecnológicos de comunicação de cada época, até o presente. Até o agora e o aqui, no Brasil.

Quem não conhece e não se lembra da expressão “Pão e Circo” – [Panem et circenses]? Uma política inventada pelos imperadores e pela aristocracia romana para exercer o domínio e a manipulação das massas trabalhadoras e suas famílias, agradando com comida – trigo, farinha, pão – e com divertimento – circo e teatro de arenas, nos finais de semanas. Assim, a plebe romana seria desinteressada em política e não teria tempo livre para pensar e se organizar em manifestações e revoltas contra os imperadores e contra a aristocracia escravizadora romana. Alienar a vontade dos súditos – oferecendo e concedendo pequenos agrados por conta do Estado – aos imperadores e dominadores para não precisar usar a violência e a força das armas, das prisões, das torturas, das execuções, sempre foi a estratégia dos políticos dominadores. Os pobres se gladiavam nas arenas, espetacularizando em luta mortal para entreter e divertir a população de trabalhadores, a plebe romana. Assistidos, em pompas e circunstâncias, pelo imperador e pela aristocracia.

Daqueles tempo – Império Romano – até hoje, muitas políticas de alienação foram inventadas e praticadas.

No Brasil, até o futebol com seus estádios pomposos e as festas de carnaval – com suas maravilhosas e luxuosas alegorias – já foram e continuam sendo uma maneira divertida, artística, cultural…para se divertir, alegrar e também para alienar multidões de brasileiras e de brasileiros. Hoje, a espetacularização ao vivo das tragédias naturais e humanas, a culpabilização pelas crises econômicas, sociais, políticas e as promessas de liquidar os criminosos, bandidos, vadios… nas redes midiáticas, fatos que se constituem na grande arma para a alienação das massas populares. Pasmem, aliena-se como nunca com a fé, a crença, o sagrado das religiões. Uma lavagem cerebral nada santa, nem divina, em nome do Senhor Deus. Voto e dinheiro acaba sendo o ato mais sagrado dos fiéis.

Bem, a história é longa e complexa. Não cabe aqui, neste espaço e neste tempo, escrevê-la. E, para regar com força e energia, vamos brindar a persistência na luta com mais um poema de Bertold Brecht – um espumante bruit – O Analfabeto Político.

“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo”.

O analfabeto político é tão antigo, velho como a própria história dos seres humanos. Ao longo da história, sempre houve estratégias de dominação e subordinação das massas populares, das plebes, dos trabalhadores braçais… pelos políticos das classes dominantes.

Há um provérbio muito antigo, de crença e uso das elites dominantes, de modo especial pelos políticos brasileiros de extrema direita, segundo o qual “quanto mais instruído o povo, tanto mais difícil de o governar”. Aí, Brecht explica no poema  Privatizado.

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.

É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário.

E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence”.

Só não poderão privatizar a nossa luta.

Mon Dieu, donnez moi la médiocrité!

Mon Dieu, donnez moi la médiocrité!

Nada melhor do que o enunciado de Mirabeau para invocar a Deus que me conceda a mediocridade necessária para viver os próximos poucos anos que me serão dados viver. Depois dos setenta anos, para a nossa geração que nasceu quando a previsão de vida no país era de 64 anos, cada ano é um lucro. Estou no lucro.

Mas mesmo assim, maduro, não aprendi a aquietar-me. Sempre pensei que manteria meu lema até o final: a capacidade de me indignar.

Agora peço outra graça, que esta com que convivi a vida toda precisa ser suplantada, represada, até desaparecer. Preciso da graça da mediocridade!

Uma mediocridade ao estilo Dias Toffoli, Rosa Weber, por Deus… mas se não sou digno de tanto, que seja a mediocridade de um Gabeira. Se ainda assim, senhor Deus, achais que peço muito, me serve a mediocridade ignorante do eleitor de Jair Bolsonaro, aquele que sendo mestre de obras e aceitando serviços esporádicos de uma reforma aqui, outra acolá, pensa que é empresário!

Ainda assim é muito? Então que seja a mediocridade do ajudante de pedreiro que trabalha para o mestre de obras, que trabalha para o pequeno empresário, que trabalha para o grande empresário que trabalha para o banqueiro que paga a todos os medíocres o mínimo para que sobrevivam para o adorar, venerar e votar como os banqueiros querem, como os grandes empresários querem, como os pequenos empresários querem, como o mestre de obras quer, como o ajudante de pedreiro não quer, mas que obedece.

Dai-me, pois, também a obediência do ajudante de pedreiro. Mas me deixai, senhor, continuar a ver meus filmes, escutar minhas músicas, ler meus livros. E continuar a escrever aqui mesmo que seja para apenas eu mesmo me ler.

Relato da primeira hora! (Por Hélio Solha)

Relato da primeira hora! (Por Hélio Solha)

Não resisti e saí às ruas. Tinha que ver de perto a festa de vitória dos bolsonaristas. Tinha que ouvir as palavras de sua comemoração.

Levava, principalmente, a esperança de que os meus críticos estivessem certos e eu errado. Levava a esperança de ver uma grande festejo da democracia: ruas cheias de gente alegre com a vitória e cheias de fé em um futuro melhor.

A decepção veio quase imediatamente. Decepção porque minhas avaliações anteriores foram reforçadas.

As ruas estavam cheias, sim, mas não de uma festa democrática. As pessoas gritavam e soltavam fogos, mas suas palavras não soavam a um festejo promissor. As palavras, proferidas aos gritos, soavam ódio, ressentimento e discriminação. Os rostos sorriam. Mas sorriam sorrisos de vingança. “Morte aos petralhas!” e “Vamos colocar esses vagabundos pra correr do nosso (sic) país!” eram algumas das bombas verbais que ecoavam pelas praças.

As cenas que acompanhavam esses sorrisos e gritos, não eram mais alvissareiros: bandeiras do PT em chamas, bonecos de petistas pendurados em forcas, pessoas exibindo ostensivamente armas de fogo.

Não nos enganemos, estamos, sim, sob uma ameaça fascista!

Pouco mais de um terço dos eleitores brasileiros deram vitória a um aventureiro! Mas ainda temos tempo de impedir a tragédia. Dois terços do eleitorado brasileiro não assinou um cheque em branco em favor da barbárie. Dois terços do eleitorado brasileiro quer que o próximo governo atue dentro das regras e com absoluto respeito à Constituição, às diferenças e às opiniões diferentes.

Ainda somos maioria, aqueles que não apoiam o autoritarismo sob qualquer insígnia!

Somos maioria e podemos fazer barrar as tentativas do impor um jogo fora das regras democráticas e constitucionais. Somos uma frágil maioria, que só se fortalecerá e poderá defender a democracia, se nossas instituições republicanas, como o judiciário, o legislativo, os governos estaduais, etc., deixarem o conforto dos atos preguiçosos e lentos da burocracia, passando a atuar e fiscalizar com o rigor da lei.

Só poderemos defender a civilidade, se nossas autoridades republicanas saírem da proteção do manto da covardia, tomarem chá de coragem e passarem a cumprir os seus deveres.

28.10.2018

Hélio Solha é professor do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp. Passará a integrar a equipe de escritores. Agradeço por ter aceitado participar deste blog e usar este veículo para fazer circularem seus textos.

Enfim, completa-se a urdidura do golpe. E pelo voto.

Enfim, completa-se a urdidura do golpe. E pelo voto.

Como venho apontando aqui, desde a derrota de 2002, o centro, a direita e a extrema direita brasileiros não se conformam por terem perdido o poder da caneta presidencial. De fato, jamais perderam o poder. Perderam apenas o governo. E perderam porque o modelo neoliberal foi um remédio que deixou o Brasil exangue.

A estes grupos políticos, pouco importa que a hemorragia destrua o país, desde que lhe sobrem as gordas migalhas a que estão acostumados desde as Capitanias Hereditárias. O povinho teve a audácia de levantar a cabeça e eleger um trabalhador. Um acinte!

Mas ter o governo não é ter o poder. E para governar, o operário teve que tecer alianças, expelir de seus ministérios companheiros antigos, dar conta do toma lá, dá cá da política parlamentar brasileira. Graças a este jogo, conseguiu manter o governo e não ser engolido pelo primeiro golpe armado: o processo do mensalão que se sabe. Como sabia o relator do processo, então, na verdade não houve dinheiro público envolvido: a invenção de recursos desviados do BB através da campanha do cartão Visa foi o que foi: invenção. Tanto que o segundo diretor do BB que assinou o contrato teve seu processo desmembrado e corre em segredo de justiça, porque nele estão as provas não aceitas no mensalão: não houve desvio aí. Mas pode e é provável tenha havido desvios em outros lugares. Não estou inocentando quem errou.

Lula se recuperou, não houve um voto ao estilo Rosa Weber, do não há provas, mas a literatura me permite condenar! E realizou grandes feitos nas três áreas que lhe interessavam: reduzir a miséria; colocar o país no concerto das nações de forma independente; e criar empresas brasileiras capazes de concorrência internacional.

O golpe foi para os porões dos conspiradores de sempre. Chegou Dilma que opta por outro caminho no desenvolvimento da sociedade brasileira, com um projeto que não deu certo. Assim mesmo, é reeleita ainda na memória dos bons tempos do governo Lula. Ganha, mas não leva. Desde que foram anunciados os resultados das eleições de 2014, Dilma deixou de governar o país. Os golpistas estavam assanhadíssimos.

E tiveram sucesso: conseguiram afastar uma presidente honesta, e nas articulações políticas conduziram um grande malandro e ladrão para a presidência, para este período de governo-tampão.

No processo de construção do impeachment, o centro, a direita e a extrema direita perceberam que tinham nas mãos o apoio da maioria da população, graças à narrativa que impuseram à nação os meios massivos de comunicação. Os políticos do centro-direita imaginavam que conseguiriam trazer para seu reduto, mais uma vez, a extrema direita. Não conseguiram. Na verdade, a voragem de extrema direita os engoliu a todos. E surge a figura sinistra do Jair Bolsonaro. De extrema direita, fascista de pensamento, sem qualquer conhecimento sobre o país e seus problemas. Com uma só frase respondia a qualquer pergunta ou colocação: “vamos mudar isso daí, ok?!”

O golpe, perceberam os golpistas, poderia ser dado pelo voto! E não por acaso um general da reserva se torna o candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro. Estava dado o aval da força. Uma campanha cheia de ilegalidades não reconhecidas como tais pelo golpismo do Judiciário abria o caminho para o “tudo vale”. Houve até juiz que autorizou a calúnia nas redes sociais porque os outros poderiam se contrapor nos espaços para os comentários!

Os votos no primeiro turno ofereceram o prato principal: jogaram para fora do campo o setor de centro-direita, invertendo a submissão histórica. Agora quem passaria a dar as cartas seria a extrema direita. O Centrão e os sociais democratas se tornaram apenas parceiros da mesa do jogo, sem direito a distribuir as cartas. Não se trata de uma criatura que engoliu o criador. Trata-se da emergência fustigada do que há de pior no ser humano, trazido para a luz do dia – ódio, violência, preconceitos – que a educação e a civilização mantêm represados. O líder Jair Bolsonaro pregou o ódio, a violência e os preconceitos. Se o líder pode abrir o represado, os seguidores também podem…

Os resultados das eleições mostram um país geograficamente dividido; são dois países diametralmente opostos em seus votos, até com semelhanças nos percentuais das diferenças entre os dois candidatos, em torno de 70% a 30%; no Nordeste e dois estados do norte, este percentual foi favorável a Haddad, o candidato com compromisso com a democracia; praticamente os mesmos percentuais, agora a favor de Jair Bolsonaro, no Norte, no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul. Aos primeiros: capim porque há que acabar com o “coitadismo” na expressão do presidente eleito; aos segundos, arrocho salarial e concentração de renda.

O golpe tão arduamente tecido no período Lula; costurado com facilidade no período Dilma; chega ao seu final VITORIOSO. As urdiduras do golpe completaram-se. O serviço que virá, agora, será apenas o serviço sujo que se deixará a cargo dos porões onde lágrimas, dor e sangue serão derramados, lá pela “ponta da praia” como já apontou o presidente do país, mas não de todos nós, o Sr. Jair Bolsonaro.

Alguém disse que perder eleições na democracia faz parte do jogo; mas perder a democracia nas eleições é outra coisa, espanta, assusta, e fará doer. Foi isso que a maioria do povo brasileiro quis. É isso que terá a população inteira.

PEDIDO QUASE UMA PRECE, de Manoel de Barros

PEDIDO QUASE UMA PRECE, de Manoel de Barros

 

A Nelson Nassif

Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa

Com janelas de aurora e árvores no quintal –

Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores

E ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores.

 

O que desejo é apenas uma casa. Em verdade.

Não é necessário que seja azul, nem que tenha cortinas de rendas.

Em verdade, não é necessário que tenha cortinas.

Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.

 

Sem nome, porém honrada, Senhor. Só não dispenso a árvore,

Porque é a mais bela coisa que nos destes e a menos amarga.

Quero de minha janela sentir os ventos pelos caminhos e ver o sol.

Dourando os cabelos e os olhos de minha amada.

 

Também a minha amada não dispenso, Senhor.

Em verdade ela é a parte mais importante deste poema.

Em verdade vos digo, e bastante constrangido,

Que sem ela a casa também eu não queria, e voltava pra pensão.

 

Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos

E a dona é sempre uma senhora do interior que tem uma filha alegre.

Eu adoro menina alegre, e daí podeis muito bem deduzir

Que para elas eu corro nas minhas horas de aflição.

 

Nas minhas solidões de amor e nas minhas solidões do pecado

Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,

E vou procurar prostitutas. Ó Senhor, vós bem sabeis

Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas!

 

Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas

Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas

Vós vem sabeis tudo isso, e portanto permiti

Que eu continue sonhando com a minha casinha azul.

 

Permiti que eu sonhe com a minha amada também, porque:

– De que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro?

Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes descalça

E quando me vier beijar faça-o como se vê nos cinemas…

 

O ideal seria uma que amasse fazer comparações de nuvens com vestidos, e peixes com avião;

Que gostasse de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no corrimão da escada

E na sombra das tardes viesse pousar

Como a brisa nas varandas abertas…

 

O ideal seria uma menina boba: que gostasse de ver folha cair de tarde…

Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra,

E ficasse assustada quando ao cair da noite

Um homem lhe dissesse palavras misteriosas…

O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como nuvem,

Que não tivesse destino nem nome – senão que um sorriso triste

E que nesse sorriso estivessem encerrados

Toda a timidez e todo o espanto das crianças que não têm rumo…

 

Senhor, ajudai-me a construir a nossa casa

Com janelas de aurora e árvores no quintal –

Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores

E ao crepúsculo fiquem cinzentas como as roupas dos pescadores…

(Manoel de Barros. Poesia completa. São Paulo : Leya, 2010)