De Fel & Mel, de Donizetti Adalto

De Fel & Mel, de Donizetti Adalto

HERZOG

Foi preso

Torturado

Cacetado

Suicidado

 

Subiram-no à forca

Ficou esticado

Calado

Amordaçado

 

Está sepultado

Enfim, Calado.

(A União fez a forca)

 

CANÇÃO PARA UM DESAPARECIDO

(O estudante Três Rios de Oliveira, que morava em Apucarana, Paraná, foi perseguido pelos órgãos de segurança, acusado de subversivo e foi encontrado morto, metralhado por comandos de caça anticomunistas)

 

Herói tombado pelos bandidos

Menino prodígio

Onde está você?

Quem te perseguiu?

Torturou?

Metralhou?

Quem te matou?

Por quê?

– Se opôs ao poder!

 

Onde está você?

Forte, foi e lutou

Foi cedo, nenhum alô deixou.

Lutou pela pátria,

Por outra Pátria?

Aquela que desejo

(Que desejamos!)

 

Onde está você?

Foi há tanto tempo!

Os livros ficaram

Os amigos esperaram

Mas, nada de você…

 

(in. Fel & Mel. Cascavel : Assoeste, 1984)

Para encontrar o azul eu uso pássaros

Para encontrar o azul eu uso pássaros

Este livro de Manoel de Barros sobre o seu Pantanal é um livro para ver e para ler. Edição bilíngue (português e inglês, 1ª. edição em 1999), tornada possível graças a Enersul e a Petrobras Gás S.A., com as fotos de Asa Roy e Osmar Onofre, abre com uma sequência de seis páginas em que as personagens principais são um Tuiuiú, a ave símbolo do Pantanal, já na sexta página acompanhado por um colhereiro. São aves de tirar o fôlego; são fotos de ficar olhando o pássaro sobre o branco e depois sobre o azul.

O “Pré-texto” com que Manoel abre o livro, ao mesmo tempo que diz não querer cantar a exuberância do Pantanal, faz precisamente isso: louva ao dizer que não quer que suas palavras “caiam em louvamentos”. E nos diz:

Quisera apenas dar sentido literário

aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres.

Um desafio: glosar esta obra exuberante de Deus. E confessa: para botar em prova minha linguagem.

Como sempre, o poeta nos encanta na entrada e nos conduz por poemas (extraídos de outras obras, mas também com poemas originais que acompanham como “legenda” as fotografias) a nos prepararmos para a surpresa do exuberante que virá na forma das fotografias “legendadas” por versos. Antes destas páginas, para não perder este introito:

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das

frases, mas a doença delas.

Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.

Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.

Ele fez um limpamento em meus receios.

O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas…

E se riu.

Você não é de bugre? – ele continuou.

Que sim, eu respondi.

Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –

Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.

Há que apenas saber errar bem o seu idioma.

Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de agramática.

 

Neste mundo de águas vegetação bichos – num céu azul – em ao cair da tarde podemos observar “algaravias de pássaros” como num passeio conjunto definiu Jorge Larrosa. As “nuvens” de tuiuiús cobrem o sol… e nos deixam na sombra de suas asas.

Voltemos a alguns poemas de curtos de Manoel de Barros:

Uma luz que vegeta na roupa dos pássaros.

Na falta dos passarinhos há restumes

de sol

e de azul.

 

 Uma árvore bem gorjeada

em poucos segundos

passa a fazer parte

dos pássaros que a gorjeiam.

 

 

Ah borboleta desaberta

rm forma de pássaro!

 

Um dom de ser bromélia

me arrepia

e me consagra.

 

 

 

Como se uma flor de carne

desabrochasse na escura vegetação.

 

 

 

Na Grande Enciclopédia Delta Larousse, vou buscar uma definição de pantaneiro. “Diz-se de, ou aquele que trabalha pouco, passando o tempo a conversar”.

“Passando o tempo a conversar” pode ser que se ajuste a um lado da verdade; não sendo inteira verdade. “Trabalho pouco”, vírgula!

Natureza do trabalho determina muito. Pois sendo a lida nossa de a cavalo, é sempre um destampo de boca. Sempre um desafiar. Um porfiar inerente…

 

Manoel de Barros dedica este livro a Bernardo da Mata (um ser cuja palavra amplia o silencio) e termina com um poema que fala de Bernardo:

Bernardo é quase árvore.

Silêncio dele é tão alto que os passarinhos

ouvem de longe.

E vêm pousar em seu ombro.

Seu olho renova as tardes.

Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:

1 abridor de amanhecer

1 prego de fargalha

1 encolhedor de rios – e

1 esticador de horizontes.

(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios

de teias de aranha.

A coisa fica bem esticada.)

Bernardo desregula a natureza:

Seu olho aumenta o poente.

(Pode um homem enriquecer a

natureza com sua incompletude?)

Antonio Cândido. Professor, militante e pensador(1)

Antonio Cândido. Professor, militante e pensador(1)

Estimado Professor Antonio Cândido, é com enorme satisfação que represento o reitor da Unicamp, Hermano Tavares, não apenas por se rum dos seus pró-reitores, mas também por ter sido, antes de mais nada, aluno e bem mais tarde diretor do Instituto de Estudos da Linguagem de nossa universidade. Do IEL, o professor Antonio Cândido foi o diretor instalador. Sua passagem pelo instituto seguramente deixou marcas que balizam até hoje sua história. Um espaço independente que valoriza a pesquisa e a atitude crítica, sem deixar de se preocupar com o ensino de primeiro e segundo graus e com os destinos políticos da nação. Com o professor Antonio Cândido aprendemos que a militância, suas andanças e suas errâncias, não prejudica a produção séria dos conhecimentos, mas enraíza essa produção na vida social. A Unicamp agradece o exemplo do professor, do militante e do pesquisador.

O senhor reitor designou-me para tornar pública sua mensagem. O professor Antonio Cândido tem sido para todos nós um modelo de cidadão, intelectual, escritor e professor universitário que nunca circunscreveu sua atividade aos domínios de seus interesses mais imediatos. Ao contrário, estendeu-a sempre pela militância, reflexão e dedicação esforçada a toda a sociedade brasileira, nas variadas conjunturas políticas e sociais em que tem vivido. Particularmente nesta universidade que hoje dirigimos, participou intensamente da elaboração do projeto do Instituto de Estudos da Linguagem, desde o embrião do Departamento de Linguística até a direção e implantação final desta unidade, em 1975. Aprendi a admirá-lo por sua presença no Conselho Universitário e pelo espírito com que dele falavam seus colegas e parceiros da administração. A presença de outros colegas, dentre os quais destaco o Prof. Carlos Franchi, demonstra o apreço que temos por Antonio Cândido e pelos que tiveram a feliz iniciativa de homenageá-lo.

 

Nota

  1. Na sequência cronológica em que venho recuperando os textos que escrevi, deveriam aparecer aqui outros dois textos (não estou incluindo nas publicações no blog os artigos escritos em coautoria porque isso demandaria outros trâmites): “O uso como lugar de construção dos recursos linguísticos” (publicado in. Espaço Informativo Técnico Científico do INES, 8, Rio de Janeiro, MEC/Instituto Nacional de Educação de Surdos, 1997:49-54) e “A prática da produção do texto escolar” (publicado nos Anais da VI Jornada Nacional de Literatura. Passo Fundo, UPF, 1997:127-144). Perdi os originais e as publicações em que apareceram…

Assim, vou direto a este texto escrito para uma sessão de homenagem a Antonio Cândido pelos seus 80 anos. Era eu Pró-Reitor e fui à sessão representando a Reitoria da Unicamp. Tínhamos recebido a instrução de que nosso tempo de fala não poderia ultrapassar cinco minutos. Cumpri à risca, e mas percebi que fui o único a fazê-lo. Antonio Cândido, que foi o diretor instalador do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, merecia um texto bem mais alentado. Fiquei restrito à homenagem, e em nome do reitor, escrevi o segundo parágrafo do texto como mensagem que deveria lhe transmitir.

Nesta homenagem tive a grata satisfação de ficar ao lado de Chico Buarque e com ele poder conversar pela primeira e única vez na vida! Recordei com ele um de seus shows em Porto Alegre, em plena ditadura militar… Respirávamos então democracia! Agora vejo que foi curta, muito curta.

Este pequeno texto, mais institucional do que qualquer outra coisa, foi incluído no livro organizado por Flávio Aguiar, em que estão textos que foram lidos na homenagem e vários estudos sobre a obra do homenageado. {Antonio Cândido. Pensamento e Militância. São Paulo : Fundação Perseu Abramo : Humanitas/FFLCH/USP, 1999). Obviamente um texto institucional e formal como este não precisaria estar no livro! Enfim…  

Matar e morte: verbo e substantivo e nada sobre política

Matar e morte: verbo e substantivo e nada sobre política

Não é um texto sobre luto ou lutar. Poderia. Talvez seja afinal. Se for, peço que vocês me perdoem.

Existem verbos que não sei conjugar. Já outros faço bem: os tempos, os modos. Gosto especialmente do presente. Já gostei mais. Antigamente no passado recente, gostava muito do futuro que hoje é presente. É que as coisas todas mudaram. Tantas coisas. Estava errada. E os erros, sobretudo os que não são nossos, têm um caráter punitivo. Então os verbos que não sei conjugar me atormentam sobremaneira.

Um desses verbos, em especial, aprendi com Clarice Lispector, em um de seus livros voltado ao público infantil: A mulher que matou os peixes. Essa obra dela me ajudou muito a entender uma infinidade de sentimentos, e já não era criança quando o li.

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer. Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver. Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.” (LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.)

A narrativa além de ensinar a conjugar o verbo matar, ensinou-me a perdoar, e a entender que as relações humanas devem, ou deveriam, ser observadas em uma perspectiva de afeto e de compreensão, ainda mais quando envolvem perda e dor.

Ao final, descobrimos que a morte dos peixes foi uma fatalidade, um descuido, um silêncio. Logo para a autora que era tão generosa em ouvir e ver os silêncios do mundo. E só acredito no desejo de redenção genuíno da autora porque o efeito desse texto é mágico, e ainda mais para o público a que se destina. Ensina-nos a encarar a morte, e o assassinato a partir de  nossa autoria.

Aprendi a conjugar o verbo matar desde então. Sei que qualquer um de nós é capaz de fazê-lo, eu, tu, ele, nós, vós, eles. Somos todos em maior ou menor grau assassinos. E as redes sociais tem sido fundamental nisso. Absortos que estamos, não ouvimos assim como Clarice os que estão ao nosso redor: crianças abusadas, mulheres espancadas, os violentados, vítimas do abandono, os gordos, os fora do padrão, pessoas em situação de rua, usuários de drogas, sem teto, sem-terra, indígenas, quilombolas, desempregados, afastados de nossa classe social, os que não comungam de nossa fé, os que comungam, os homossexuais, os transgêneros, os jovens, os velhos, os deficientes, os doentes, os pobres, os miseráveis, os famintos e os que tem fome.

Todos mortos sucessivamente pelo silêncio. E por descuido abandonamos essas pessoas em seus aquários. Cotidianamente cuidamos de nossos afazeres, e esquecemos até de pedir perdão pelos que matamos.

E sinto que me matam todo dia. Nunca senti tão forte.

Sinto que me matam quando negam atendimento a mulheres vítimas de abuso sexual.

E morro quando vejo pessoas acreditando que não saber das vítimas é melhor, conheço vítimas de abuso infantil, doméstico, sexual, e conheço as violências várias: espancamentos, torturas psicológicas, submissão, opressão, cárcere privado, estupros, sexo sem consentimento, pedofilia, tentativa de homicídio … Em todas as vezes que soube, morreu um pouco da humanidade em mim. Explico-me: a maioria das pessoas que sofriam, poderiam ser ajudadas, mas em todos os casos eram negligenciadas por suas famílias, por seus amigos, por seus vizinhos, por seus professores, por seus patrões, por seus amores, por seus guias religiosos, por pedidos de silêncio. Entendo que em muitos casos, o pedido era motivado pela vergonha, pelo medo, e por uma tentativa de fingir que não aconteceu, como se as pessoas pudessem se curar sozinhas. Isso é o que a cultura do estupro faz: vergonha, culpa e silenciamento de um lado e de outro o estímulo a mais casos – dada a certeza da impunidade.

Pensando nisso entendo que muitas pessoas desejem matar. Querer se armar, defender seus patrimônios e coisas do gênero. Então escolhem assim não ter que ver, não ouvir. Silenciam as vitimas para que depois matar seja uma fatalidade, uma situação que fugiu ao controle. Então não seremos responsáveis:

– Estava cuidando da vida, dos meus, do que é meu. Quem imaginava? Eu não pensei nesse aspecto…

E ainda assim é preciso fazer o que é certo. Entender que não basta cuidar dos nossos e dos iguais. Comecei esse texto falando dos verbos, e agora já ao final descubro que é um texto sobre silêncio, e me lembro de outro livro, que a morte seja substantivo. Porque depois de matar, o que resta é a morte. Então  preciso indicar a leitura de O resto é silêncio, do Érico Veríssimo, que me marcou na juventude. O livro trata do suicídio de uma jovem e as várias perspectivas de quem observa o fato. Leitura que o tempo e vento vai levando da minha memória. Achei um trecho na internet, olhem que magistral:

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas… Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda… e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou… Por acaso você sabe?” (VERÍSSIMO, Érico. O resto é silêncio. 15ª ed. Editora Globo: Porto Alegre, 1980.)

Preciso reler esse livro, antes que o resto seja silêncio.

Caminhos do silêncio

Caminhos do silêncio

Metodológico

e monocórdico

os passos repetidos

nos caminhos do silêncio.

 

Em verdes tempos verdes

uma flor

uma rosa

um espinho.

 

Juventude: carinho e amor.

Depois, uma imensa necessidade imensa

de dizer, de falar, de saber, de viver

 

Mas, em tempos de euforia

vede: o peão do rei

ataca a alegria.

 

E nos caminhos do silêncio

caminha em silêncio

um canto

acalanto: já ouvimos sua voz.

Ninguém pode controlar!

(Wanderley Geraldi)