por João Wanderley Geraldi | ago 31, 2018 | Blog
ROMBO NO NACIONAL CHEGA A R$ 7,5 BI
(Manchete da FSP de 06.07.96)
PC ESCONDEU US$ 400 MI PELO MUNDO
(Manchete do ESP de 07.07.96)
Para uma sociedade escandalizada com o esquema PC, que movimento US$ 1,2 bilhão, cuja elite, no entanto, justifica R$ 7,5 bilhões para apenas um dos grupos de banqueiros, não há ciência e reflexão capazes de apontar caminhos, se a indignação ética contra as elites dominantes não ocupar grande espaço de nossas paixões.
O título desta exposição, ao apontar para duas das principais tarefas que a Linguística se propõe, é suficientemente amplo para a defesa do ponto de vista que pretendo discutir e que pode ser resumido no seguinte enunciado: “no mundo letrado brasileiro, a linguística foi chamada a justificar-se para ter direito à existência”. Duas podem ser as perguntas a conduzirem a reflexão: Que práticas sociais de reflexão sobre a linguagem eram predominantes para poderem impor que uma ciência se justificasse (e se justifique) para existir? Que respostas aqueles que praticaram a praticam a pesquisa linguística têm dado a esta exigência externa que lhes impuseram as práticas letradas brasileiras?
Obviamente, meu objetivo não é responder a estas duas questões, já que elas demandariam um estudo de sociologia da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um verdadeiro balanço da pesquisa e reflexão dos últimos trinta anos. Como se sabe, embora recente em termos históricos, a inclusão dos estudos linguísticos nos cursos de Letras do Brasil, tal como os entendemos, ocorre na década de 60, e desde então os linguistas não só sustentaram polêmicas internas (no embate entre diferentes teorias e correntes) e externas (com o “mundo das letras” e com o espírito normativo do ensino da língua), mas também produziram um considerável conjunto de informações, descrições e explicações a propósito da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Bem mais restrito é o objetivo: tentar trazer alguns elementos de reflexão para possíveis respostas à primeira pergunta e apresentar alguns dados a propósito da segunda.
- Admitindo com Foucault (1970) que “a disciplina é um princípio de controle da produção de discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”, “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, impossível não recuperar polêmicas do final do século passado e início deste para traçar os laços que sustentaram (e ainda sustentam) a produção de enunciados a propósito da língua no mundo letrado brasileiro. Inúmeros intelectuais brasileiros envolveram-se na discussão a respeito da colocação correta do pronome oblíquo deste enunciado – afinal, “envolveram-se” ou “se envolveram” parecia ser uma questão crucial. São conhecidas as polêmicas a respeito do dialeto brasileiro ou brasilianismos (Macedo Soares, João Ribeiro) ou da redação do Código Civil (João Ribeiro, Rui Barbosa, Ernesto Carneiro, Clóvis Bevilácqua), ou ainda a polêmica sobre a questão da colocação de pronomes entre Paulino de Brito (gramático paraense) e Cândido de Figueiredo (gramático português). Mas não esqueçamos que a Constituição de 1988 foi revisada por gramáticos contemporâneos e que a imprensa continua a espinafrar estudantes e vestibulandos sempre que a ocasião se oferecer. Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo “que é requerido para a construção de novos enunciados” sobre a língua: qualquer enunciado deve proferir um juízo de valor (certo/errado) segundo uma regra gramatical específica.
A conquista humana do domínio da técnica da escrita, alargando incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências, deflagrou também todo um projeto de gramatização (Auroux, 1991). Foi necessário fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento possível. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos.
Ao labirinto das produções fluidas da oralidade sobrepõe-se com a escrita o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável. E antes mesmo que a escrita se torne tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, o “anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1984:43).
Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável pra o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociação de sentidos e orientar, através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos a serem trilhados.
A sociedade só pôde ser assim construída, sob o império de uma separação radical, a partir de uma estrutura de exclusão. Sob qualquer das formas com que se organizaram politicamente o Estado e o Poder, soube a cidade letrada estar próxima, adequar-se às circunstâncias (Rama, 1984). Observando sempre sob o ângulo da produção da escritura, Rama aponta, ao longo desta história de convício com o poder, uma cidade que foi ordenada, foi escriturária, foi modernizada. Politizou-se e pode ser revolucionária. A cada momento, diferentes feitos históricos, mas sempre uma constante: a capacidade paradoxal de, ao mesmo tempo, expandir-se para as periferias supostamente acolhendo novos convivas e manter a distância das distinções: erudito x popular; culto x não culto; alfabetizado x analfabeto. Pelo prisma letrado, ao outro sempre se atribui uma falta.
Mas a escrita populariza-se e em se popularizando, torna-se heterogênea e outros artefatos verbais somam-se às clássicas bibliotecas. Manifestos, panfletos, poemas, páginas soltas, graffitis, orações, agendas, almanaques, cópias, paródias, paráfrases: o universo de discursos escritos expande-se, vulgariza-se, circula e faz circular sentidos.
Imagine-se, portanto, o escândalo para o mundo letrado quando a Linguística inicia seus discursos sobre as variedades linguísticas, inclui entre as manifestações linguísticas dignas de estudo a oralidade, eleva panfletos e textos de somenos importância a categoria de “gêneros” e, sobretudo, quando define que “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados” exclui qualquer julgamento entre o certo e o errado.
- No que concerne à segunda questão, relativamente às respostas que vem oferecendo a Linguística àqueles que lhe impõem justificar-se para existir, é na área do ensino de língua materna que vamos encontrar a maior contribuição dos linguistas. Em estudo anterior manuseando um conjunto de 52 teses e dissertações, do período de 1980 a 1996, a propósito do ensino/aprendizagem de língua materna (Geraldi, 1996), constatei três grandes tendências da pesquisa: (1) uma tendência migratória do tema para a área de Letras, especialmente para a Linguística e a Linguística Aplicada; (2) há sensível redução dos trabalhos que, inspirando-se em teorias linguísticas e/ou educacionais, apresentam propostas definindo como o ensino deve ser ou que se dedicam ao estudo de produtos para a escola e da escola (livros didáticos, redações, livros paradidáticos, programas de ensino); (3) há uma predominância de trabalhos que analisam experiências de modo que hoje o que se encontra sob escrutínio é a prática escolar de ensino da língua.
Referências bibliográficas
Auroux, Sylvain (1992). A revolução tecnológica da gramatização. Campinas : Ed. da Unicamp.
Figueiredo, Cândido (1928). O problema da colocação de pronomes. Lisboa : Livraria Clássica Editora, 5ª. edição.
Foucault, Michel (1970). A ordem do discurso. São Paulo : Edições Loyola, 1996.
Geraldi, João W. (1994) “Políticas de inclusão em estruturas de exclusão. In. Simpósio Internacional sobre a Leitura e a Escrita na sociedade e na escola. Brasília, Anais, Belo Horizonte, Fundação AMAE, P. 65-78.
_______________ (1996) “A prática escolar sob escrutínio”. Texto apresentado em mesa-redonda do VIII ENDIPE, Florianópolis, maio de 1996.
Rama, Angel. (1984) A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense.
Nota
- Estando na presidência da ABRALIN a colega Maria Denilda Moura, da Universidade Federal de Alagoas, convidou-me para participar do encontro nacional da Associação, que ocorreu no contexto da 48ª. Reunião Anual da SBPC. Foi minha primeira e única participação em evento da ABRALIN. Tratava-se de fazer uma conferência, de curta duração. O texto dela foi publicado no Boletim da Associação, n. 19, dezembro de 1996.
por José Kuiava | ago 29, 2018 | Blog
Estamos em tempos espetaculares e tediosos de campanhas políticas eleitorais para presidente do Brasil. O grande consolo é que estas encenações acontecem apenas de 4 em 4 anos. As imagens de rostos maquiados e espetacularizados pela televisão, as falas proclamadas em tom de discursos verdadeiros e salvadores, exibidos na televisão, nos jornais e nas revistas, causam a impressão assustadora de que temos no Brasil várias fábricas e indústrias supermodernas de discursos políticos, projetados e fabricados estrategicamente para as campanhas eleitorais. É o velho, desgastado princípio positivista: dizer uma coisa na teoria para fazer o seu contrário na prática.
No lugar de planos, programas, projetos e ações de governo para o bem do Brasil e de todos os brasileiros, os candidatos, de maneiras diferentes e paradoxais, proclamam promessas de extremo e profundo valor humano material, social, educacional, cultural de interesse para o povo brasileiro – estrategicamente para as camadas sociais das classes mais pobres e mais numerosas – com o fim único e último de arrecadar os votos dos eleitores. Os candidatos de ideologias conservadoras de direita e mais emponderados, quando não fabricam os próprios discursos, por ignorância e incompetência intelectual argumentativa, compram discursos sob medida, encomendados aos intelectuais orgânicos da própria classe social e membros ou eleitores dos partidos de que fazem parte, ou ainda, correligionários dos partidos com os quais firmam sacrossantas e amorosas alianças.
Via de regra, de maneira muito descarada e camuflada reivindicam o privilégio e o direito à irresponsabilidade. Quando eleitos, podem e precisam dizer que não irão fazer o que prometeram, senão a verdade se torna inimiga deles. Por conta disso, não dizem o que pensam e não fazem o que dizem.
Assim, a política se converteu em mercadoria industrializada – artigos de consumo. Os presidentes, os governadores, os prefeitos, os senadores, os deputados e os vereadores são eleitos pela televisão, pelos jornais e pelos espetáculos musicais, por conta de quem é mais empoderado.
Nada melhor, porque verdadeiro, o escrito de Eduardo Galeano para dizer sobre o papel da televisão na formação do mundo que temos.
“A democracia é de um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e a fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si” […] “A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona”. (Eduardo Galeano. O Livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2018).
Nós, os eleitores e as eleitoras, precisamos assumir um compromisso coletivo de todos e com urgência: educar e formar políticos que dizem o que pensam e fazem o que dizem. E é claro, formar eleitores e eleitoras conscientes, que primeiro escolhem, depois votam. E não somente votam.
Tomem cuidado senhores candidatos e senhoras candidatas, porque nem todos os brasileiros e nem todas as brasileiras nos encantamos com os discursos de vocês.
por João Wanderley Geraldi | ago 28, 2018 | Blog
Há tanto voto para Lula. Há tanto voto 13, que o golpe arriou as calças e está de cócoras. Seus dois candidatos explícitos, Geraldo Alckmin, conhecido como picolé de chuchu, amarga índices inferiores aos dois dígitos – ele que era para estar na cabeça! O segundo candidato, aquele que resmunga e não fala, responsável pela política econômica do governo e cujo bastão, pensavam eles, seria entregue a Pérsio Arrigo, pois este só se ouve que é candidato porque resmunga…
Então, fazer o quê? Ou o mercado abandona seus “queridinhos” e fecha questão com o fascismo – até que gostaria de ver o “príncipe dos sociólogos, o estadista de Higienópolis, pedindo votos para o fascismo brasileiro a mando do mercado!!!
Mas o mercado tem outra saída, e logo veremos isso começar a acontecer: Marina Silva, a madrinha da floresta, a voz mansa e inaudível. Mais uma vez ela se prestará ao serviço que vem executando nas eleições presidenciais: ser inflada, no passado para haver segundo turno (porque nunca foi levada a sério mesmo, a não ser pelo Banco Itaú); agora será inflada para que haja uma candidatura possível para o tal centro-direita, antigamente, muito antigamente, liderado pelo PSDB, partido que se encontra à beira do túmulo: já morreu, só falta enterrar.
Enquanto a mídia tradicional e hegemônica, a mídia de poucas famílias e de capilaridade exuberante, está censurando a população que não deve saber, segundo esta mídia, a agenda da candidatura do PT, que não deve saber quais suas propostas para recuperar o país, esta mesma mídia abrirá seus canhões: para se salvar, precisa elevar a floresteira do passado, a inefável Marina Silva para o segundo turno.
O problema é: com votos de quem? Dos que votam em Lula? Marina já perdeu todo o respeito dos eleitores de esquerda… ninguém confia nela. Nem os votos do PSOL, que detesta Lula, serão dela. Então não virão votos deste setor; neste território a banda da mídia tradicional não terá colheita.
Esperam somar as intenções de voto dos nanicos: Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, Amoêdo. Mas todos juntos ajuntam um percentual minguado… Mas no salvemo-nos da mídia golpista, há que somar tudo, multiplicar o somado para ganhar do candidato do PT, seja Lula, seja Haddad que seguramente estará no segundo turno.
Mas o trabalho hercúleo a fazer é afastar o candidato do fascismo, aquele que representa mais claramente, mais explicitamente a cara da elite brasileira: escravocrata, racista, machista e dona do estado. Acontece que este monstro que se escondia agora foi despertado por esta mesma mídia e não quer voltar a sua toca, não quer mais ser uma massa de manobra da centro-direita de discurso melífluo e todo empenado, com bicos longos. Acabou este namoro! A elite está na rua e tem seu representante nestas eleições.
Como fazer? Que fazer? E agora? Nem com o Supremo e tudo a mídia conseguirá retirar os votos destes brucutus do passado para transferi-los à candidata que vão tentar inflar…
Fazendo a campanha do Lula, vamos rir muito deste esforço desesperado da mídia para que não haja o confronto que se anuncia: ou o Brasil se civiliza com a esquerda representada por Lula-Haddad, ou se brutaliza na monstruosidade de suas elites com a eleição.
E já temos o primeiro motivo para boas risadas: o convite do candidato fascista a Fernando Gabeira para ser ministro de seu governo. Um sucesso enorme, uma caminhada sem volta: do sequestro para o calção de crochê, do calção de crochê à bicicleta ecológica, para as fotos com o MBL e daí, num salto, para o ministério do desejado… Lacerda em seu túmulo se coça de inveja. Nem ele, tão preparado, conseguiu sair da esquerda e se tornar tão confiável para a extrema direita. Gabeira é um sucesso.
por João Wanderley Geraldi | ago 26, 2018 | Blog
A lua é da noite
os peixes das águas.
Só as palavras são
do homem.
Vagas que preenchem
o declive dos vazios.
Como alguém que fala às casas
e põe o sal nas feridas
ele entra na lama
sangue
e na lama se lava.
Loucura.
Oferta sagrada.
Palha
para a fome do asno.
Ouro
para a fome do homem.
Palhaço.
Sol
sempre novo
ovo
de cada dia.
Porcos
na lama
se limpam.
Deliciosamente
impuros.
Zeus
pai da linguagem
teu nome
é mar imenso:
cada palavra em cada ser
a alma
em chamas.
Vindos de lugares tão diversos
encontram-se:
rio e vale.
Um e sua lança.
Outro com seu ventre.
Quando dobro a esquina
deixo atrás um caminho
e começo outro.
Mas olhos
não fazem curvas:
bifurcam-se.
Tira
da máscara
o rosto:
fica
o rosto
da máscara.
(Fernando Paixão. Fogo dos Rios. SP : Brasiliense, 1989)
por João Wanderley Geraldi | ago 25, 2018 | Blog
Sempre que termino de ler um livro de Mia Couto e penso em como iniciar este registro, vem-me à cabeça sempre o mesmo enunciado: “Um Mia Couto é sempre um Mia Couto”. Por menor ou maior que seja a história que conta. Neste caso, uma novela curta e densa.
Ainda assim, o enredo se deixa complicar pelas reflexões que traz à tona. Por isso não é simples, ainda que se possa resumir perdendo seu encanto, com palavras poucas. É o que faço para depois retornar ao encantamento da narrativa. Trata-se da história de Zeca Perpétuo, já retirado da pescaria, já velho e “aposentado”. Filho de Agualberto Salvo-Erro. O pai também pescador de alto mar. E em alto mar carregava na canoa uma bela mulher, que o filho via da costa e para quem a mãe virava de costas. Certo dia, a amante cai n´água e Agualberto mergulha buscando a mulher que ama. Canoas e pescadores entram para ajudar. Nenhum dos dois aparece. Depois de muito tempo, Agualberto ressurge entre as ondas do mar. Festejam-no os companheiros, quando a mulher se põe em sua frente, olha-o de corpo inteiro e ao chegar aos olhos grita: os olhos se tornaram azuis, aguaram. Desde então, Agualberto se emborou, para usar o neologismo de Mia Couto.
E ainda menino, torna-se Zeca pescador e tem que lidar com a “orfandade” de pai ausente e com a loucura da mãe abandonada. Tudo isso o leitor vai sabendo porque conta Zeca à vizinha Luarmina (luar + mina, no duplo sentido desta), que sempre lhe pede histórias de sua família. Luarmina fora bela, de descabeçar machos que em seu torno “abutravam” arrastando asas. Agora, já gorda e antigada em anos, vive pacatamente vizinhando com Zeca que é por ela apaixonado e que frequentemente lhe arrasta asas:
– Sabe o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos, está a perceber, Dona Luarmina?
– Ajuíze-se, Zeca.
– Faz conta somos verbo e sujeito.
– Já conheço essa sua gramática…
– A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.
A história toda vai nesta toada – “minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência, beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela. E por entre um futuro que não vem – o futuro há e inexiste – e o passado de feitos reais ou imaginários que no presente Zeca conta, conta… e que Dona Luarmina sempre quer escutar mais.
Desdobram-se assim os episódios: o convívio com a mãe que jamais se diz abandonada e que lhe pede que escreva cartas ao pai embora ele desconheça as letras; a vida do pai a abençoar os anzóis, linhas e iscas dos pescadores que fazem fila na qual entra também Zeca, mas que jamais consegue estar frente a frente com o pai e por isso nunca tem a bênção que dá o pai para os outros; o da morte de Agualberto que pede ao filho que o leve a vários lugares porque não quer morrer num único lugar, quer plantar sua morte em vários terrenos e aproveita este fim de vida para se rearticular com os deuses abandonados no passado a quem deixa, em cada lugar, uma oferenda; a promessa que faz ao pai de sempre levar ao “mar da China”, naquele fundão, presentes e comidas para a amante afogada (e então o pai lhe conta: que nada abençoava, na verdade aproveitava iscas e anzóis para enviar à amada suas oferendas). Mas em tudo que narra, vai guardando um segredo. Um segredo que não esquece por causa das estridentes gaivotas que sempre afugenta a pedradas.
Dona Luarmina, ao contrário, gosta de gaivotas e faz-lhes uma gaiola. De modo que Zeca já não pode dormir. Certa noite, assim incomodado, leva gasolina e fósforo, põe fogo na gaiola e vê as gaivotas morrerem. No dia seguinte, leva seus pêsames a Luarmina, mas culpado que é, acaba confessando que fora ele quem ateara fogo. E no confessar, acaba por contar seu segredo: ele fora casado, uma bela mulher, Henriquinha. Todos os domingos, a mulher saía para a missa. “Aos domingos, em fecho de tarde, ela saía pelos atalhos rumo à Igreja de Nossa Senhora das Almas. Levava seu vestido preto, se afastava com passo de viúva. Olhando aquela mulher, da varanda, me atravessava um arrepio como se aquela marcha desenroscasse os fechos de minha alma. Depois, contemplando a saia eu me conciliava comigo mesmo. Uma esposa assim bela e devotada a Deus era uma agradádiva.
Vieram depois lhe contar: na verdade não ia à igreja, mas ao Morro Vermelho, onde dançava e se despia toda, mostrando sua nudez aos homens que ao pé do monte a desejavam ardentemente. Armadilha então um plano: encontra um velho calendário, coloca-o no lugar do atual, e aparece então um domingo extemporâneo… Henriquinha não compreende, mas acaba aceitando que é domingo e sai. Zeca Perpétuo a segue. E realmente constata o que lhe contaram. Sobe então também ele, desejoso do corpo da mulher, mas a empurra penhasco abaixo ao mar… nunca mais encontrou seu corpo.
Luarmina convida-o a ver seu feito: o resultado do fogo na gaiola. Ele não quer, ela insiste. Acaba indo, escudado pelas costas largas e gordas, não querendo ver. Por fim, mostra-lhe Luarmina uma gaivota que sobrevivera ao fogo. Ele não compreende como! Viva e voando, a gaivota representa Henriquinha…
“Eu me varandeava, olhando o oceano”. O tempo passa, e Zeca começa a ter pesadelos. Já não mais levanta da cama. Não sabe se dorme, se não dorme. Dormindo, o pesadelo o afogava no mar. Muito sua (febre?). Num dia destes, Luarmina o vem visitar. Traz-lhe lençóis novos. Ele confessa: está sendo castigado pelo pai porque não cumprira a promessa de levar presentes e ofertas à amante afogada. Morre afogado em pesadelos: “Mal palpebrejo, a dobra do lençol se cnverte em água e, no instante seguinte, tudo se avermelha e eu desaguo em rios de sangue. Se durmo, me afogo, se vigio me foge o juízo. Me faz falta o sonho, tudo quanto queria era sonhar”.
É então que outro segredo se revela: Luarmina lhe diz que cumpriu sim a promessa. Que a mulher jamais se afogara e que ela era esta mulher! E que Zeca a alimentara o tempo todo com suas histórias.
Seja isso consolo ao moribundo, seja isso verdade da ficção, pouco importa. Zeca Perpétuo morre nos lençóis novos que lhe trouxe Luarmina, sem realizar seu desejo de com ela se embrulhar, e cumprindo profecia do pai: “você há de morrer afogado em lençol faz conta os panos virassem ondas de água”.
Imaginem agora esta história toda contada no linguajar de Mia Couto. Cada capítulo deste Mar me quer, tem uma epígrafe, uma fala atribuída a uma personagem sempre presente em sua ausência: o avô Celestiano. Para uma amostra do estilo de Mia Couto, em lugar de inventariar seus estupendos neologismos, transcrevo as epígrafes:
- Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem, cai. (Dito do avô Celestiano, reinventando um velho provérbio macua).
- Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.
- A canoa se fez ao mar, um cisco entrou nos olhos de Deus.
- Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para entrar o céu.
- O mar tem um defeito: nunca seca. Quase prefiro o pequenito lago da minha aldeia que é muito secável e a gente sente por ele o mesmo que por criatura vivente, sempre em risco de terminar.
- O caracol se parece com o poeta: lava a língua no caminho da sua viagem.
- O coração é uma praia. (Provérbio macua, citado pelo velho Celestiano)
- Quando sentiu que estava morrendo, meu avô Celesgtiano chamou a mulher e pediu-lhe:
– Deixa-me fitar teus olhos!
E ficou, embevecido, como se a sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.
– Tens frio?, perguntou ela vendo-o tremer.
– Não. És tu que estás a chorar.
– Chorar, eu? Começou foi a chover.
(Lembrança de minha avó sobre o último instante do velho Celestiano).
Restam ainda alguns comentários sobre os nomes próprios desta novela. Ainda que possam ser nomes comuns na sociedade moçambicana – o que duvido – cada nome resulta de uma composição. Já apontamos para “Luarmina”: luar + mina. Antes de tudo, a lua está longe, inatingível aos desejos humanos, como Luarmina se fez o tempo todo de inatingível para Zeca Perpétuo. Na palavra “mina”, os dois sentidos possíveis: o de joia ou de raridade (beleza), mas também o de mina donde se tiram riquezas, e aí temos uma dicotomia: lua/mina equivalem a alto/baixo; mas mina também pode referir às “minas” (bombas) plantadas no caminho do inimigo (muito comum nas guerras) e neste sentido Luarmina pode ser uma bomba que explode homens. Tomemos agora o nome da personagem principal: este parece ser o único sem referências externas, além do segundo nome: Zeca Perpétuo. Zeca é nome da língua importada, do colonizador e Agualberto havia abandonado os antigos deuses para seguir o deus do colonizador, daí talvez o nome “José” tornado Zeca; Perpétuo fala por si. Pensemos em Agualberto Salvo-Erro: há aqui água + aberto (além do nome Alberto), cuja leitura pode ser “Adalberto do mar, da água” ou aberto à água, já que pescador de mares profundos. Salvo-Erro também fala por si, já que não se salvou da paixão que o acometeu. Henriquinha, nome da primeira mulher de Zeca, para além de “riquinha” em beleza, parece não fazer outras referências. Resta avô Celestiano, que é celeste, que habita o celeste. E que do celeste traz suas sabedorias que aparecem nas epígrafes mas também nas citações que faz Zeca, de que transcrevo:
Em algum lugar, lá n onge, a maré está-se a virar, o oceano se cambalhota na mudança das marés. Enquanto não recebia sinal desse reviramento, ele (Agualberto) se mantinha sem nenhuns modos nem pestanejo. Quem sabe não fala, quem é sábio cala. Como dizia meu avô:
– Diferença entre sábio branco e o preto sabe qual é? O branco responde logo-logo às perguntas. Para nós, pretos, o homem mais sábio é aquele que demora mais a dar resposta.
Por fim, o nome próprio do livro: Mar me quer, que remete de imediato a ação continuada de Luarmina que desfolha em todos os anoiteceres as flores, pétala a pétala, repetindo “mar me quer, bem me quer”, mas que também remete ao mar que “me quer”, sentido que resulta também da história de pescadores e de mortes por afogamento.
Há ainda as ilustrações de João Nasi Pereira. São espetaculares. São oito. Fica-se querendo mais. Numa delas, aparece Luarmina a desfolhar flores no bem me quer, mal me quer… Esta ilustração servirá de capa do livro. Um livro, na edição que leio, de capa dura, no formato de “livro de literatura infantil”. Aliás, eu o comprei pensando que seria um livro para minhas netas! Será, mas num futuro ainda longuínquo…
Referência. Mia Couto. Mar me quer. Ilustrações de João Nasi Pereira. 9ª. Edição, Lisboa : Editorial Caminho, 2000.
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