Fechado para balanço de fim de ano

Entramos todos em férias… e no período de 18/12/17 a 02/01/18 não compareceremos ao blog para novas postagens. Podem acontecer desgraças neste período, como a Reforma da Previdência… mas estamos todos tão castigados que já nos acostumamos!

Agradecemos aos leitores e aos seguidores por nos lerem, pelos comentários postados durante o ano de 2017, pelos compartilhamentos, pelo incentivo a continuarmos a escrever apesar dos pesares. E mesmo sabendo que há coisas muitas e boas para serem lidos em blog de profissionais. 

Voltaremos no ano que vem, talvez com a novidade de termos mais um cronista, Alexandre Costa, o responsável pela existência deste blog! A ele, meu agradecimento pessoal por ter dado algum sentido a esta aposentadoria e ausência dos meios acadêmicos.

A todos, boas festas. Despedir-se de 2017, para começar um 2018 sob a vara de desembargadores bem pagos que farão questão de retirar do povo brasileiro qualquer veleidade de participar da construção de uma sociedade mais justa. Justo e legal, para tais servidores da elite, será sempre a desigualdade abissanal a que fomos condenados. 2018 não será diferente dos anos todos de nossa história. Os interregnos vividos foram um descuido da elite e de seus servidores da polícia e do judiciário.  

Domingo, um apólogo de Boccage

Dedicado aos…  

Os dois burros e o mono

Um burro lançado à margem

Ostentava de talentos;

Moía um seu camarada,

Exemplar dos pachorrentos.

 

Zurrando conceitos graves,

Como quem fala, e não pensa,

Cumpria o rifão do vulgo 

– Tal cabeça, tal sentença. –

 

O trombudo companheiro

A longa orelha abaixando,

Sem lhe responder palavra

Ia ouvindo, ia pastando.

 

“És bruto! Não me respondes?

(Diz o orelhudo doutor)

Envergonho-me de sermos

Iguais na forma, e na cor.”

 

Estranhandoi-lhe a bazófia

Um mono dos mais astutos,

Que numa árvore trepado

A aliviava dos frutos,

 

Cuma gargalhada exclama:

“Não verão quem alardeia!

Burro com fumos de mestre!

Isto é coisa que se creia!

 

Não zombes desse coidado,

Faz bem em não responder:

Um tolo só em silêncio

É que se pode sofrer.”

 

 

 

Textos sobre textos: Geração do Deserto

O escritor catarinense Guido Wilmar Sassi, nascido em Lajes, neste romance histórico, narra a saga da Guerra do Contestado (1912-1916), região de terras que permaneceu por longo tempo em disputa entre os Estados de Santa Catarina e Paraná, e que levou os camponeses à luta armada em defesa do direito à terra.

Na construção da estrada de ferro Rio Grande-São Paulo, o governo da República cedeu à empresa construtora nada menos do que 15 kms à direita e à esquerda dos trilhos. Depois, o território foi entregue a empresas de colonização, que expulsaram ou mataram os agricultores que ali viviam para estabelecer colônias com venda legalizada das terras a novos colonos.

O movimento de revolta foi considerado “messiânico” já que dois monges foram essenciais à crença num futuro por famílias espoliadas de seus recursos de sobrevivência e expulsos das terras que ocupavam. Primeiro o Frei João Maria, que sumiu da região prometendo que voltaria; depois um suposto frei, José Maria, que se disse irmão de João Maria, assume a liderança religiosa dos revoltosos. Morto José Maria no reduto de Taquaraçu, substitui-o Frei Manuel com as mesmas funções de preservação de uma esperança de ressurreição, de terras e de vida digna.

O romance divide-se em três partes, intituladas todas elas pelo nome da localidade em que se reuniram os revoltosos: Irani, donde saem sem confronto armado com a polícia, depois de negociações entre o líder Frei José Maria e o comando policial. Deslocam-se para Taquaraçu (sede do grupo inicial que se deslocara para Irani). Em Taquaruçu organiza-se uma espécie de estado, com ministros e milícia própria, com os 12 Pares de França designados entre os melhores e mais fortes guerreiros. Monarquistas, chegam a escolher um imperador, Dom Rocha Alves, um fazendeiro simpático aos revoltosos.

A polícia militar do Paraná faz uma primeira tentativa contra os revoltosos, e é rechaçada. Segue-se uma segunda frente, do exército e da polícia, que arrasa com o vilarejo. Os que sobreviveram escolhem outro lugar, mas defensável: Santa Maria, um vale entre serra e mais serras, um desfiladeiro. Imaginado inexpugnável.

Já sem seus santos João Maria e José Maria, a orientação da vida passa a ser dirigida por leigos, sempre crentes. Elias de Morais se tornará a liderança principal; a condução religiosa será exercida por Frei Manuel que interpretava os contatos das “virgens eleitas” com seus santos padroeiros. Adeodato assumirá a Defesa e chefiará os ataques contra os soldados que agora, vindos do centro do país, buscam acabar com o fanatismo dos caboclos, até chegarem ao extermínio da revolta…Este o pano de fundo histórico sobre o qual o narrador tecerá inúmeras histórias vividas por seus personagens, frequentemente em forma de espelho.

As desavenças entre Daniel e Gegé, ambos candidatos a maridos da mesma mulher, sendo Gegé o escolhido, resultam no assassinato de Daniel depois de um enfrentamento com os soldados. De forma especular, mas distinta, estas se repetem nas desconfianças entre Tavinho (cego) e Tibúrcio (o leproso que lhe servia de guia), este escondendo daquele que havia encontrado dinheiro com um soldado morto. Dinheiro maltido, dinheiro papel, da República. Dinheiro que não podia circular entre os revoltados, mas com que Tibúrcio comprava doces, cigarros, guloseimas que consumia à noite quando supostamente Tavinho estava dormindo. Este chega até a ensaiar planos de morte de Tibúrcio, mas este morre sem que haja explicações no enredo. Tavinho, a partir de então, dedica suas noites para encontrar o corpo e apossar-se do dinheiro. Consegue fazê-lo, mas perdido na mata acaba sendo morto pelos soldados.    

As andanças dos revoltados, o enfrentamento com a polícia e com o exército, as primeira vitórias e a retumbante derrota, a crença em seus santos, a demonização da república e o sonho com o retorno da monarquia, tudo aproxima este movimento a Canudos.

Sob José Maria, tudo tentava imitar sua predileção: Carlos Magno e seus Pares de França; sob Elias de Morais, uma interpretação bíblica: ele estava conduzindo seu povo a uma nova terra prometida, mas fazia parte da geração que “morreria no deserto” e não chegaria ao lugar sagrado da bonança. Por isso, Elias se enxergava como um Moisés no deserto (certamente desta imagem vem o título do romance, Geração do Deserto).

O romance é muito bem escrito, em estilo leve e com ações que se desenvolvem com rapidez, como a própria guerra que durou quatro anos. Às vezes aparecem referências à cessão das terras à Estrada de Ferro, às colonizadoras, ao extermínio da população, à concorrência desleal trazida pela indústria madeireira com suas máquinas modernas que levou à falência pequenas serralherias. Mas o romance não explora as causas que fizeram emergir e que sustentaram por tanto tempo uma revolta de uma população desarmada e sem recursos até para a sobrevivência física. A narrativa prefere enveredar por “cotidianos” entre os revoltosos, em pequenos episódios, sempre entremeados pelo enfrentamento com as forças da lei e da ordem.

Chama a atenção o emprego, ao longo de todo texto, de itálicos em três expressões: fanáticos, peludos, pé redondo. As duas últimas expressões eram usadas pelos revoltosos referindo-se aos soldados; a primeira é do narrador referindo-se aos revoltados, também frequentemente chamados de jagunços, mas esta expressão não vem em itálico. Esta marcação pode significar um distanciamento ou estranhamento do narrador com a forma de referência. Mas também pode ser o modo de chamar atenção do leitor para a própria expressão.

Diferentemente de A Guerra do Fim do Mundo, de Mário Vargas Llosa, sobre Canudos, aqui você não encontra nenhuma simpatia do narrador pela luta que seus personagens travam contra a exploração!  Aparentemente o narrador se coloca num ponto de vista externo às condições de emergência e às realidades concretas vividas na revolta. Também não assume a defesa das forças da ordem mandadas a campo para exterminar com os revoltosos.

Neutralidade? Considerando as comezinhas das brigas internas, as evidentes crendices em patuás, em bênçãos, em ressurreição, em contato das virgens com seus santos que lhes mandavam através delas recados, o misticismo religioso, os castigos infligidos às mulheres viúvas que duvidavam que seus homens estivessem retornando para com elas deitarem (a fórmula encontrada por Elias para resolver o problema da falta de mulheres para os guerreiros) e a forma continuada de referência aos guerreiros tratados como jagunços desvela o contrário: não há simpatia pela causa.

Certamente escolher este pano de fundo; trazê-lo à leitura nos anos 1960 quando havia luta pelas Reformas (o livro foi publicado em 1964); deixar claro que houve expulsão de camponeses e destruição de pequenas indústrias, que houve fome entre peões e trabalhadores rurais, tudo isso é já uma escolha significativa. Mas a posição distanciada da narrativa jornalística de Euclides da Cunha se impôs, ainda que o que se narra seja ficção, a história aparecendo como pano de fundo! Obviamente, o modelo não poderia ser Mário Vargas Llosa: o romance A Guerra do Fim do Mundo é de 1981.

O leitor de hoje de Guido Wilmar Sassi, no entanto, tem outros parâmetros em função de outas perspectivas antropológicas de compreensão da Guerra do Contestado. E por isso estranha a suposta isenção e a falta de simpatia do narrador para com seus personagens. 

Textos de Arquivo XX: A leitura em sala de aula – as muitas faces de um leitor

Nota introdutória

A Fundação de Desenvolvimento da Educação – FDE, órgão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, com mais de 30 anos de existência, promovia cursos para professores, realizava constantes seminários e encontros de professores. Era (é?) o órgão encarregado da “educação continuada” no estado. Não acompanho mais suas atividades desde a primeira metade dos anos 1990.

Entre suas atividades, havia a publicação de obras técnicas. A revista IDEIAS era uma publicação destinada a professores. E seus temas, em geral, estavam vinculados aos programas de formação em andamento. Foi para um destes volumes que escrevi o texto, depois de ter participado de vários seminários na Fundação.

Este texto, publicado na revista Ideias, número 5, 1988, vem marcado, como não podia deixar de ser, pelos estudos que fazia na época e fundamentalmente pela perspectiva de que um leitor nunca é o mesmo, em seu percurso de leituras. E mesmo que volte a ler um mesmo livro, não lerá do mesmo modo aquilo que materialmente não se modificou, porque ele mesmo já é outro por suas relações ampliadas no tempo e no espaço.

Nesta época ainda não conhecia as obras do Círculo de Bakhtin, com exceção de Marxismo e Filosofia da Linguagem. Se tivesse então conhecimento de “Os gêneros do discurso”, teria, com maior facilidade, tratado dos “campos” que necessariamente entram na composição da leitura como objeto de estudos, particularmente a explicação da seleção vocabular, do estilo dos enunciados e a correlação do texto com sua esfera social de comunicação. Infelizmente, só depois de 1990 é que comecei a estudar as obras do Círculo, para achar um “lugar” para minha atividade na pós-graduação, como aconteceu com muitos docentes universitários no meu tempo.

Este texto foi reelaborado e foi publicado com o título “A leitura e suas múltiplas faces” no livro A aula como acontecimento (São Carlos : Pedro & João Editores, 2010).

 

A leitura na sala de aula. As muitas faces de um leitor

A leitura e (pretensiosamente) um linguista receoso

Tratar de um tema multiface, como é o caso da leitura, é sempre um risco. Risco que se apresenta de duas formas: ou bem o especialista restringe-se ao ponto de vista de sua disciplina, excluindo outros em nome da conveniência de delimitar a questão, ou bem “corre à rédea solta na multidisciplinaridade e cai numa deriva que leva frequentemente a deixar o campo de sua disciplina para tudo dizer, tudo descrever, ser especialista em tudo e de fato nada dizer” (Fall, 1988:74)

Enveredando pelo primeiro caminho, claramente poderia buscar na linguística contemporânea elementos que necessariamente deverão ser considerados se se quiser constituir a leitura em objeto de estudos. Mesmo consciente de que a “operação inaugural” que transforma um fenômeno em objeto produz alterações (deformações?) redutoras, não se poderá negar que no mínimo quatro níveis de estudos estritamente linguísticos deverão ser levados em consideração: do léxico, do enunciado, do texto e do contexto (1).

O campo do léxico: obviamente, num texto há palavras e por mais que se queira fugir da “objetalidade” do texto (2), não há como negar que é no texto enunciado que se marcam os processos de enunciações e é nele, portanto, que o leitor encontra chaves, orientações, para ressituar o texto na história da sua produção. O léxico não é neutro e seu agenciamento para o interior de um texto responde a estratégias da enunciação, conseguindo, não raro, pelo uso de certos termos, dar ao texto uma certa configuração e um certo tipo de ancoragem institucional. A título de exemplo, lembro o vocabulário médico, a terminologia recente da informática etc.

Aqui, duas posições são possíveis: “a adaptação de um sentido previamente construído ao contexto corresponde ao trabalho que faz toda leitura que recorre ao dicionário. A formulação de hipóteses sobre o sentido de uma palavra em função de seu contexto é o trabalho que efetua o leitor, quando não utiliza o dicionário para elucidar uma palavra que ele não conhece” (Fall, 1988:77). Em ambas as saídas, reconhece-se que o significado efetivo da expressão depende do contexto de seu emprego. E em ambas há trabalho do leitor: adaptação ou formulação de hipótese, o que nos mostra que desde esse nível, talvez o menos significativo, no ato de ler se produzem significações.

Esta produção de significação é uma flecha em dois sentidos: ao ler, o leitor trabalha produzindo significações e é nesse trabalho que ele se constrói como leitor. Suas leituras prévias, sua história de leitor, estão presentes como condição de seu trabalho de leitura e esse trabalho o constitui leitor e assim sucessivamente.

O campo do enunciado: se aceitarmos que a frase é uma relação de predicação independente de contexto, de situação, e que o enunciado é uma relação predicativa determinada, localizada numa situação, é o enunciado que importa mais para a leitura.

No estudo da sintaxe, é legítimo abstrair o contexto, construir a noção de frase e estudar seus mecanismos de estruturação, isto até para poder fornecer indicações que permitam melhor compreender os processos de construção de enunciados. Mas é através do enunciado que o enunciador oferece ao outro as coordenadas com as quais este buscará estabelecer uma relação entre o objeto físico (que é o enunciado) e o acontecimento representado por ele. 

Note-se que na situação de enunciação, o próprio ato de enunciar é já um acontecimento, e este deixa suas marcas no enunciado. Estas marcas são retomadas pelo co-enunciador (o outro no diálogo, o leitor do texto) como sinalizações, não por si só suficientes, mas necessárias para a produção da significação.

Estamos, novamente, diante de nossa flecha de dois sentidos, mas avançando um pouco mais: o outro (o leitor) não apenas se constitui por suas leituras, mas está já presente no próprio processo de produção do texto (objeto) que será lido, e enquanto leitor virtual (3), ele é co-enunciador do texto. Em quanto leitor real, ele é o enunciador (4) da significação que construiu em sua leitura, e o outro (o autor) passa, neste momento, a co-enunciador.

O campo do texto: um texto não é apenas uma sequência de frases ou enunciados: mecanismos de coesão e conexidade asseguram-lhe uma dimensão sequencial; o tema ou objeto e as representações que sucessivamente sobre este o enunciador vai fazendo asseguram-lhe uma certa configuração, de tal modo que “a enunciação de uma proposição (= enunciado) não é um ato de enunciação de uma proposição isolada, mas de n proposições ligadas, tomadas num processo sequencial dinâmico que funda a própria textualidade” (Adam, 1988:80).

Tomando um texto descritivo como exemplo, notaremos que a descrição se constrói através de diferentes operações: operações de inscrição de um objeto como pertencente a certas categorias, apresentando um conjunto de propriedades do objeto ou afirmando seu pertencimento a determinadas classes, o enunciador vai mostrando a representação que tem (ou faz supor que ter) e que quer construir, através de seu texto, do objeto; operações de determinação e de simbolização: o objeto é renomeado de maneira a permitir ao enunciador inscrevê-lo num certo campo ideológico e avaliativo (por exemplo: O computador está cada dia mais presente nas diferentes atividades humanas. Esta revolução influirá na forma de as pessoas conceberem o trabalho”, onde revolução  retoma e qualifica o que se disse antes); operações de condensação: de natureza anafórica, condensam parte do texto anterior e permitem, na sequência, tornar sempre possível um prolongamento do texto (por exemplo: “A competência em leitura não se define por si, mas a partir de diferentes relações que consideram o tipo de saber envolvido, os objetivos da leitura, o nível de escolaridade. Por isso é impossível uma só definição”, onde “isso” retoma tudo o que se disse antes); operações de explicitação: o enunciador retoma aspectos já assinalados. Geralmente, estas operações são linguisticamente marcadas por expressão do tipo “isto é”, “quer dizer”, etc. (5)

O campo do intertexto: um texto cita outros textos. A voz do enunciador não é a voz que “clama sozinha no deserto”. Não há enunciador sozinho. Na sua voz, há vozes. E há diferentes forma de citar(6) e, como mostra Marcuschi (1982) na escolha do verbo que introduz a fala de outrem há julgamentos ou sobre o sujeito citado ou sobre o discurso citado (um ministro pondera; um sujeito diz, afirma; uma testemunha declara).

Não só o leitor, como vimos, opera com os textos lidos anteriormente no seu trabalho de produção de significações. O autor produz seu texto num universo já povoado de outros textos, a que faz referência: “a cultura letrada, sábia, se define pela referência; ela consiste num jogo permanente de referências que se referem mutuamente umas às outras; ela não é outra coisa que não este universo de referências que são inseparavelmente diferenças e reverências, distanciamentos e deferências” (Bourdieu, 1967:142).

Que sirva de exemplo de intertextualidade toda esta primeira parte de um (pretenso) linguista. Consciente de que estas indicações nem de longe esgotam, de cada campo, o que se poderia buscar na linguística para se estudar a leitura, aceitemos o desafio do objeto, de sua multidisciplinaridade, já que “a valorização excessiva da especialidade torna o pesquisador ignorante das dimensões globais do seu tema de estudo. A fragmentação do objeto de investigação em facetas dispersas acentua o processo de alienação […] e impede a perspectiva totalizadora que recuperaria os laços da ciência com a comunidade eventualmente tornando o saber mais atuante e comprometido com as mudanças sociais” (Zilberman e Silva, 1988:16).

Afinal, entre o especialista e o polivalente, estamos nós, professores, “pau para toda obra”.

A leitura (e menos pretensiosamente) um professor preocupado

Não se pode discutir a leitura sem se perguntar sobre as condições de possibilidade desta. Para Bourdieu (1987:133), perguntar-se sobre as condições de possibilidade é “se perguntar sobre as condições sócias de possibilidades de situações nas quais se lê e também sobre as condições sociais de produção de ‘lectores’”.

Magda Soares (1988:19) também focaliza a leitura a partir do que ironicamente chama de “olhar de fora” para a leitura, considerando a questão das condições sociais de acesso à leitura e a questão das condições sociais de produção da leitura.

Se, para efeitos da exposição, as duas questões precisam ser diferenciadas, sua compreensão resulta do entrecruzamento de ambas. Numa sociedade como a nossa, com oito milhões de crianças em idade escolar fora da escola, com dois milhões de analfabetos só no Estado da Bahia (na capital são 200 mil), com 240 mil analfabetos no rico estado do Mato Grosso do Sul (7), daria para se dizer que os alunos que estão nas escolas são já privilegiados!

Mas que dizer de outro logro: alfabetizados, sabe Deus por obra e graça de que e de quem, que condições tem a população de acesso ao livro? “Uma das ilusões do lector é aquela que consiste em esquecer suas próprias condições sociais de produção, em universalizar inconscientemente as condições de possibilidade de sua leitura” (Bourdieu, 1987:133).

Se a escola é um dos lugares sociais privilegiados de acesso à leitura, outro paradoxo deve ser acrescentado ao anterior: para quem ensina a ler, para quem tem por obrigação formar leitores inexistem condições sociais de leitura. Os professores, num processo histórico que já se revela no nascedouro da universalidade da escola (8), estão concretamente hoje afastados do livro e das bibliotecas pelas condições de trabalho e de salário.

Vivendo entre dois paradoxos (ensinar a ler a quem sabe que não terá direito a ler; ensinar a ler sem ter direito a ler) não é de surpreender que !a escola tem se revelado impotente na formação de leitores” (Projeto Leitura na Escola, FDE, 1987, p. 1).

Se do ângulo das condições sociais de possibilidades de leitura o quadro é este, do ângulo da formação do leitor (ou da produção da leitura) a situação não poderia ser melhor: como esperar leituras significativas, produções de significados, construção de “história de leitores”, sujeitos “autores” de suas leituras em tais condições? E eis aqui o embricamento das duas questões (a do acesso e a da produção). Fica aberto o espaço para a imposição de leituras; para a morte dos textos pela fixação de um significado único, construído por um leitor privilegiado que, lendo, tem o direito de dizer a última palavra não só sobre o texto a ler ou lido, mas também nas outras situações sociais.

Daí não estarmos, ainda hoje, tão longe, na formação do leitor que a escola pública executa da “tradição medieval que opunha o ‘lector’ que comenta o discurso já estabelecido e o ‘auctor’ que produz discursos novos. Esta distinção é equivalente, na divisão do trabalho intelectual, à distinção entre o profeta e o padre na divisão do trabalho religioso: o profeta é um ‘auctor’ que dirige os fios de suas obras, que não tem outra legitimidade, outra ‘auctoritas’; ao contrário, o padre é um ‘lector’, detentor de uma legitimidade que leh é delgada pelo corpo de ‘lectores’, pela Igreja, e que está fundada em última análise sobre a ‘auctoritas’ do ‘auctor’ original, a que os ‘lectores’ fingem se referir” (Bourdieu, 1987:132-133).

A escola incentiva a formação do leitor que repete a leitura do professor, que repete leituras do comentarista que repete… De comentário em comentário, os textos com os quais, nas palavras de Umberto Eco (op.cit.), o leitor-modelo teria compromissos filológicos de aproximação, desaparecem e os compromissos passam a ser com os comentários. Para alunos, com os comentários da escola. Daí, a leitura, desde a alfabetização, ser tratada como decifração. Afinal, é de pequenino que se torce o pepino.

A leitura (perigosamente) na sala de aula

Somando-se a isso tudo alguns enganos metodológicos comuns no ensino de Língua Portuguesa em nossas escolas (entre outros, exemplifico com o que chamo de imediatez de resultados – leu não escreveu, o pau comeu!; leu, responda às perguntas; leu, escreva um texto no mesmo gênero; leu, pesquise sobre o tema, etc. – que revelam a expectativa de um resultado desejado como imediato após a leitura), a leitura deve ter se tornado uma coisa muito chata, a se dar ouvidos aos “aliciamentos” que tentamos todos fazer para “conquistar” leitores.

Que sirvam de exemplos as passagens retiradas cá e lá dos documentos do Curso de Dinamização da Leitura (FDE, 1987):

“… a escola torna-se responsável, sobretudo, pela formação de leitores a partir das séries iniciais: se conquistamos a criança …

… criar condições especiais que facilitem a intensifiquem a aproximação com o livro…

… uma biblioteca com atividades constantes e atraentes, capazes de despertar o interesse dos alunos…

… [a escola] não favorece, muitas vezes, um contexto agradável, afetivo, na exploração do livro…

[…] O coordenador deve ter conhecimento de um repertório razoável de textos para divulgar para as crianças, motivando-as para a leitura…”

Mas

“A população conseguiu escola, isto é fundamental. E a população precisa continuar lutando para que esta escola deixe de ser de mentira e se transforme em alguma coisa que corresponda a seus interesses. Uma escola que corresponde aos interesses populares não será, nunca, como pretendem alguns setores mais conservadores do pensamento pedagógico, uma escola que se limite a ensinar leitura, cálculo e outras noções elementares. Esta escola deverá ser também uma escola que discuta, ao mesmo tempo, o próprio conhecimento que está sendo transmitido, explicite os conceitos, os conteúdos ideológicos que estão sendo transmitidos. Os chamados ‘conteudistas’ são objetivamente conservadores nas suas colocações” (Beisiegel, 1988:21).

E mais uma vez, entre a parede e a escola, entre o peso das condições concretas de vida que levam à não leitura, e a violência simbólica do aliciamento, estamos nós, professores, remendo. “Remar é preciso viver”.

E entre formar ‘lectores” e formar ‘lectores-auctores’, insinua-se na sala de aula (perigosamente) uma outra concepção de leitura, não mais um ato solitário, muito menos um ato de repetição do já dito. Mas um ato de produção, que leva em conta “todos os nossos conhecimentos anteriores da língua e nossa experiência de vida”. Onde “cada leitura é uma nova escrita do texto. O ato de criação não estaria, assim, na escrita mas na leitura, o verdadeiro produtor não seria o autor mas o leitor (Bella Josef, citada por Soares, 1988:26). Ou, em outras palavras, “a cultura e a língua mudam porque elas sobrevivem num mundo que muda: o sentido de um verso, de uma máxima, ou de uma obra muda pelo simples fato de que mudou o universo das máximas, dos versos ou das obras simultaneamente propostos àqueles que o aprendem, o que se pode chamar de copossíveis” (Bourdieu, 1987:143).

Construção de significados, mudanças de significados, atribuição de sentidos: partem sempre do texto, são trabalhos de leitura. Numa sociedade onde a leitura não é uma prática social, ler na sala de aula para construir possibilidades, construir significações, torna-se perigosa subversão. Lutar por ela é lutar, onde se está, contra o status quo.

Notas

  1. Retomo distinções feitas por Fall (1988:77-88), acrescentando outros pontos de vista e os meus próprios, sem qualquer preocupação de me restringir às questões por ele levantadas.
  2. Cf. Orlandi, E. (1988:9): “O leitor não interage com o texto (relação sujeito/objeto) mas com outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor, etc)[…] Ficar na ‘objetalidade’ do texto, no entanto, é fixar-se na mediação, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele, logo, sua significância.”
  3. Para um conceito de leitor virtual, ver Orlandi, E. (op.cit.). Para Umberto Eco, “um texto postural o próprio destinatário como condição indispensável não só da capacidade concreta de comunicação, mas também da própria potencialidade significativa” (1979:37).
  4. “Para realizar-se como leitor-modelo, o leitor empírico tem naturalmente deveres filológicos, ou seja, tem o dever de recuperar, com a máxima aproximação possível, os códigos do emitente.” (Eco, 1979:47)
  5. Em Miéville (1988) o leitor interessado encontrará uma tipologia e melhores exemplificações destas operações de descrição discursiva de um objeto. Preferi assinalar os mecanismos de coesão como operações, no sentido deste autor, por me parecerem mais próximas de uma perspectiva discursiva do que outras análises mais conhecidas dos fenômenos da coesão textual.
  6. Bakhtin (Voloshinov) (1929) dedica toda a terceira parte de um livro seu ao estudo das formas de enunciação do discurso de outrem.
  7. Os dados sobre a Bahia me foram fornecidos por colegas do setor de educação de adultos da Secretaria Municipal de Educação de Salvador (fev/88); os dados de Mato Grosso do Sul me foram fornecidos por colegas da SEED (mar/88).
  8. Refiro-me aqui à analogia de Comenius: o professor não precisa ser o compositor da sinfonia, basta ser um executor. Analogia profética: o livro didático fornece a sinfonia da aula pronta, a execução fica por conta do aluno; para o professor, a intermediação.

Bibliografia

Adam, J. M. (1988). “texte et représentation dans de sequences argumentativas et desciptives”  Travaux du Centre de Recherches Sémiologiques 55 : 71-87.

Bakhtin, M. (Volochinov) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. SP, Hucitec, 1981.

Beisiegel, C. R. (1988). “Política educacional e programas de alfabetização”. Ideias – A educação básica no Brasil e na América Latina. Repensando sua história a partir de 1930. SP, FEDe, p. 16-22.

Bourdieu, P. (1987) Choses dites; Paris, Minuit.

Eco, U. (1979) Lector in fabula. SP, Perspectiva, 1986.

Fall, K. (1988). “Linguistique et didactique de la lecture”. Langues et linguistique, 14, 71-88.

FDE (1987). Curso de dinamização da leitura. SP, FDE.

Marcuschi, L. A. (1982). “A propósito de estratégias jornalísticas”. Linguagem Oral, Linguagem Escrita. Série Estudos 8. Uberaba, Fiube, p. 18-23.

Méville, D. (1988) “Description et représentation”. Tavaux du Centre de Recherches Sémiologiques 55, p. 147-164.

Orlandi, E. (1988). Discurso e Leitura. São Paulo, Cortez e Editora da Unicamp.

Soares, M. B. (1988) “As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto”. In. Zilberman, R. & Silva, E. T. (org), p. 18-29.

Zilberman, R. e Silva, E. T. (org) (1988). Leitura – Perspectivas interdisciplinaras. SP, Ática.

POBRES UNIVERSIDADES, POBRES

A primeira ordem: “é proibido falar de partidos políticos e ensinar política em escolas públicas”. Formação de consciência política nas escolas e universidades, jamais! Nem pensar na formação crítica de jovens em classes escolares e universitárias.

A segunda ordem: “caça aos reitores das universidades federais”. Estas duas ordens geniais são as grandes metas do governo puro, inocente e anticorrupto do Brasil de hoje para garantir a educação pura, inocente e de qualidade para os pobres. O presidente golpista Temer esnoba um excedente de orgulho jamais visto nas telas de televisão.

Pessoalmente, jamais imaginei que um dia eu teria o desprazer, a dor, a amargura de me defrontar com medidas e determinações políticas de sentido ideológico pré-mediavalesco como as medidas impostas à nação brasileira no momento atual. Sou professor de escolas públicas e  universidade estadual desde o ano de 1970. Nos tempos da ditadura civil-militar – era rigorosamente proibido falar mal do golpe e combater o regime – havia as disciplinas de “Educação Moral e Cívica” (no Ensino de 1º e 2º graus) e OSPB – Organização Social e Política do Brasil ou Estudos de Problemas Brasileiros (no ensino universitário). Nestas disciplinas ensinava-se a moral, a ética e a organização e formação política dos adolescentes e dos jovens nas escolas públicas. Formação orientada pela perspectiva da ditadura, mas como sempre tendo contrapontos de professores nas quatro paredes da sala de aula. Hoje, 40 anos depois e superado o regime ditatorial pelo regime democrático – embora uma democracia precária, corrupta e corrompida – são proibidas a educação e formação política nas escolas públicas. Pasmem! É inacreditável.

Para entender estas medidas hediondas é preciso examinar a questão na raiz da história – a sociedade de classes sociais – para entender os benefícios invertidos na educação brasileira. As crianças, os adolescentes e os jovens das famílias mais ricas estudam, desde as creches, jardins de infância, ensino fundamental, ensino médio e pré-vestibular, em escolas e colégios particulares, com mensalidades elevadíssimas, mas com ensino de boa qualidade, via de regra. Já as crianças das classes pobres, da periferia, das favelas, da zona rural estudam em escolas públicas – sem mensalidades – em condições precárias, insuficientes, com educação e ensino de baixa e má qualidade. Aí acontece a inversão no ensino superior. Os jovens ricos passam nos vestibulares das universidades públicas de boa qualidade – nos cursos “nobres” –  e não pagam mensalidades. Enquanto os jovens pobres ingressam no mercado de trabalho de dia e de noite estudam nas universidades e faculdades particulares, pagando mensalidades elevadíssimas. Alguns passam nas universidades públicas no período noturno nos cursos considerados “não nobres”.

Porém, tivemos políticas, no Brasil mais recente, que alteraram esse processo para melhor. Os governos Lula e Dilma criaram e instalaram dezenas de universidades federais, com campus e cursos pelo Brasil inteiro e criaram e implantaram as políticas de “cotas” – vagas garantidas para indígenas e afrodescendentes – e as vagas do ENEM. Assim, milhões de jovens pobres estão estudando nas Universidades Federais. Este fato vem assustando as elites brasileiras. A caça aos reitores é uma estratégia ideológica, um truque, uma trapaça junto à opinião pública que o governo usa e abusa para sucatear as universidades federais e estaduais, reduzindo em muito os seus orçamentos. Assim, policiais agem de maneira truculenta a mando de ordens judiciais e prendem reitores sem provas e sequer indícios de corrupção. Este é o argumento e a justificativa para privatizar as universidades federais e estaduais.

Agora, o que me incomoda, e muito, é a quietude, o silêncio das universidades. Onde estão os dirigentes, os professores, os estudantes e os servidores das universidades? O silêncio e a passividade são atitudes, atos de concordância. Ou melhor, atos irresponsivos.

                                                                         Cascavel, 12 de dezembro de 2017.