por João Wanderley Geraldi | jun 14, 2017 | Blog
Nota introdutória
Este é um texto de linguística estrita, ainda que na época de sua produção muitos linguistas considerassem que não eram linguísticos os estudos semânticos (e particularmente a Semântica Argumentativa de Oswald Ducrot, praticada então entre nós pelos professores Carlos Vogt e Eduardo Guimarães). Eu era um aprendiz que mais tarde abandonou a teoria ducrotiana. Lembro que ao decidir fazer minha dissertação de mestrado em Semântica Argumentativa, sob orientação do Prof. Carlos Vogt, o coordenador do curso me disse: “trazemos vocês do sul para fazer linguística e vocês acabam não fazendo!”. Os tempos mudaram, a área mudou.
Seguramente este texto, dentro da teoria ducrotiana, está desatualizado. Acompanhei-a até suas aproximações com o pensamento bakhtiniano incluindo o conceito de polifonia, que representa por um jogo de interlocutores no interior do enunciado.
O leitor notará, também neste texto – e o que considero o último desta série de “linguística estrita”, da qual tentaria escapar pela via da preocupação com o ensino. Este é meu melhor exemplo deste peso pesado da “academia” sobre a produção de textos e tentativas de circulação de ideias. Não por acaso, a partir deste ano abandono minha tese de doutoramento, que seria sobre o esquema “A ou B”, depois de ter escrito as primeiras 20 páginas e saber que tudo se resolveria, segundo o orientador, pela lógica clássica, fazendo desaparecer a minha questão de pesquisa: por que uma mesma expressão “ou” reúne contrários e também diferentes modos de dar o mesmo sentido? Já nesta páginas perdidas havia uma influência clara de Bakhtin e do jogo interacional que levava ao emprego deste esquema para apresentar supostamente o mesmo sob dois ângulos.
Este texto foi publicado em Sobre a estruturação do discurso (IEL/Unicamp, 1981. p.63-90) e é talvez o mais hermético texto que escrevi na vida! Cheio de medos, de cuidados: um sobressalto da injunção dos leitores privilegiados. Penso que ele testemunhe, ainda assim, que poderia ter me tornado um bom caçador de irrelevâncias…
Tópico-comentário e orientação argumentativa
Introdução
O desejo de compreender a natureza da linguagem tem provocado que, cada vez mais, os problemas do discurso se tornem objeto da pesquisa linguística. Isto não quer dizer, em absoluto, que o discurso seja aceito, hoje, como objeto da Linguística.
“alguns trabalhos conseguiram mostrar que é possível formular leis gerais neste domínio, contrariamente à crença firmada anteriormente, segundo a qual se estava necessariamente, nesta questão, no nível do individual e, portanto, do fenômeno não controlável. […] Na verdade, esta ideia ainda não se constitui como ideia oficial. Os linguistas “sérios” ainda a consideram uma questão de mera opinião”. (Possenti, S. 1979, p.9)
Parece-me que uma das questões fundamentais para todos aqueles que desejam ultrapassar os limites do enunciado para melhor compreender a linguagem reside precisamente na questão da estruturação do discurso, ou, para ser mais explícito, na questão dos mecanismos linguísticos de estruturação do discurso.
Embora alguns céticos possam dizer que estamos longe de uma resposta satisfatória para esta questão – “há tantos problemas a serem resolvidos ao nível da frase, por que ultrapassá-la?” – não se pode dizer que nada tenha sido adiantado como soluções ao problema. Limito-me aqui a apenas apontar para dois tipos de trabalhos que, partindo de posturas distintas, me parece fornecer valiosas contribuições ao estudo do discurso e, consequentemente, a uma melhor compreensão da natureza da linguagem.
De um lado, as propostas de Pêcheux, privilegiando a relação entre discurso e suas condições de produção, mostram-se sensíveis à presença dos interlocutores, estabelecendo a partir de tal relação princípios gerais capazes de explicar, ao menos em parte, alguns dos mecanismos linguísticos postos em ação na estruturação do discurso. De outro lado, os trabalhos de Halliday e Hasan, privilegiando os recursos linguísticos da coesão, permitem ao menos descrever como uma sequência se correlaciona as que a precedem, ao menos em alguns sentidos desta correlação.
Por mais insatisfatórias que estas respostas possam ser consideradas, não podem ser simplesmente descartadas na consideração do discurso, enquanto problema a ser abordado pela Linguística.
Sem qualquer pretensão de trazer para este debate uma resposta à questão geral que nos ocupa, gostaria de discutir uma hipótese a partir da qual estou iniciando meus estudos do discurso: trata-se de considerar a argumentação como atividade estruturante do discurso.
Antes de mais nada, é preciso que explicite tal afirmação, a fim de que a hipótese que formulo se torne menos vaga e, ao mesmo tempo, possa ser contradita.
2. Argumentação
Dado que a fala se realiza entre os homens, do homem sobre o homem, pode-se dizer que há argumentação toda vez que um locutor, pro seu discurso, procura interferir sobre os julgamentos, opiniões, preferências de seu interlocutor. Como tal, a argumentação designa um modo perfeitamente corrente de interação humana, pois aquele que argumenta pretende interferir sobre as representações ou convicções do outro, com o alvo de modifica-las (ou aumentar a adesão a tais convicções) (1).
No mínimo três aspectos são, aqui, fundamentais:
- a argumentação é uma atividade;
- a argumentação se dirige a sujeitos;
- a argumentação procura modificar as motivações que o locutor (argumentador) imagina responsáveis por tais ações.
Estes aspectos, evidentemente, poderiam ser resumidos em uma única expressão: a interlocução presente no discurso, ainda que este se possa deixar classificar como um discurso autoritário. Ao me referir a um ou outro aspecto, não poderei escapar de tal fato.
É evidente a importância que assumem as imagens que o locutor faz a propósito das convicções de seu interlocutor (ou auditório) a respeito do problema que está tratando. Tais imagens determinarão, por exemplo, a escolha dos argumentos que jogará em seu discurso, os contra-argumentos a que rebaterá, etc. Não me ocuparei de tal aspecto. Apenas um exemplo que diz respeito, para mim, à hierarquização entre argumentos.
Um boletim estudantil, em que o DCE convida os estudantes para debater a deterioração dos serviços oferecidos pela universidade, são apresentadas como evidências as “tradicionais filas” para o ônibus e para o restaurante. Tais problemas são considerados “frequentes” e “nítidos”. No entanto, no último parágrafo antes do convite para a reunião, se lê:
“Como se isso não bastasse, fala-se em reservar o restaurante velho para o pessoal do Hospital das Clínicas, pois o próprio restaurante do hospital não pode ser concluído pela falta de verbas. Isso aumentaria ainda mais as filas para o almoço.”
O que gostaria de notar, aqui, é o fato de que “falar em reservar o restaurante velho…” – uma mera possibilidade (2) – é apresentado como argumento principal, introduzido pela expressão “como se isso não bastasse”, embora os outros argumentos trazidos à consideração dos elitores tenham sido apresentados como “evidentes”, “nítidos”, “conhecidos de todos”. Tal estruturação dos argumentos apresenta entre eles uma hierarquia, e tal hierarquia é assim constituída em função da imagem que faz o(s) autor(es) das motivações capazes de levar um maior número de estudantes a uma reunião. Aqui, um fato apresentado como possível é mais importante em termos argumentativos do que os fatos considerados, no mesmo texto, como problemas verdadeiros, conhecidos de todos.
Assim, como a argumentação se dirige a sujeitos, é importante considerar a presença do interlocutor na atividade argumentativa desenvolvida no discurso, pois os argumentos de que se servirá o locutor, sua hierarquização, etc. dependem, de certa forma que não tenho pretensões de precisar, da imagem que o locutor faz do interlocutor.
Gostaria, ainda, de apontar para duas questões (3):
- a necessidade de distinguir argumentação de coerção;
- o fato de que, às vezes, o discurso argumentativo não espera obter, de fato, a modificação das motivações do comportamento de seu auditório e nem por isso deixa de ser “argumentativo”.
Se a coerção, como nos diz Michel Charolles, é num sentido o último dos argumentos, ela é também, de uma outra maneira, o horizonte de toda a argumentação. Esta procura o sujeito enquanto alguém que pesará argumentos, que se “convencerá” coma força que se lhes dá no discurso. Aquela atuará diretamente nas ações do sujeito, proibindo-as [ou obrigando], ainda que o sujeito não esteja “convencido” ou “persuadido” das vantagens de agir desta ou de outra forma. Um exemplo que me parece claro: um texto de lei é coercitivo: proíbe ações ou determina formas de ações; a justificativa da oportunidade de uma lei é um texto argumentativo. (É fácil imaginar inúmeros casos em que coerções substituem argumentações…)
A distinção, aparentemente clara, nos mostra a fatalidade da argumentação, já que seu ideal consiste em reduzir o outro ao ‘silêncio’. Explico-me: encontrar o argumento que provoque a adesão, que force o acordo, que ‘imponha’ a evidenciada tase é o que, em suma, aspira todo aquele que argumenta. A fatalidade está precisamente aí: alimentando-se do outro, constituindo-se com o outro, o desejo secreto da argumentação é, paradoxalmente, o ‘silêncio’ do outro pela modificação das motivações. (4)
Quanto à possibilidade de um discurso argumentativo de antemão saber que não obterá a adesão de seu auditório, parecem-se exemplos claros os casos de anti-candidaturas (lembro aqui a anti-candidatura de Ulisses Guimarãesà Presidência da República). Embora tais discursos não visem “provocar ou aumentar a adesão de um auditório (penso no Colégio Eleitoral…) às teses que lhe são apresentadas”, tais discursos em nada deixam de ser argumentativos. Representam tais casos testemunhos do porquê o locutor pensa o que pensa: é o registro de uma posição. (5)
Espero ter, até aqui, delineado porque considero a argumentação uma atividade interacional. Gostaria, agora, de situá-la num campo mais amplo para melhor especificar porque a considero como atividade estruturante do discurso.
Numa situação discursiva, estão prsentes dois polos: o locutor e o interlocutor. Suponhamos que dispuséssemos de um discurso (isto é, de um produto resultante da interação locutor/interlocutor) e que desejássemos analisar como tal produto foi construído.
Para mim, tal análise deverá considerar:
- que a participação do locutor na construção do discurso está vinculada a uma formação ideológica de que ele faz parte; a uma instância discursiva específica onde se deu tal construção; aos conhecimentos que possui sobre o tema do discurso; a condições específicas de sua fala (entre as quais é necessário incluir o interlocutor a quem ele se dirige e com quem constrói o discurso), etc. Estes e outros aspectos correspondem ao que se tem denominado de condições de produção. Tais condições determinam que argumentos serão selecionados e para que serão utilizados e as estratégias específicas de que o locutor fará uso neste discurso;
- que a participação do interlocutor na construção do discurso também está vinculada a uma formação ideológica de que ele faz parte; à mesma instância discursiva específica onde se deu tal construção, etc. Sua contribuição se dá de duas formas: indiretas, dado que o interlocutor constrói o discurso via imagens concebidas pelo locutor; e direta por certos gestos, meneios de cabeça, etc. que fornecem ao locutor pistas para confirmar ou infirmar suas imagens.
Posso agora registrar, explicitamente, uma diferença que espero ter estabelecido implicitamente: a diferença entre argumentos e argumentação.
Para mim, os argumentos resultam das condições específicas de produção de um dado discurso, isto é, eles estão no interior do discurso dado que as condições de produção permitiram, estrategicamente, sua utilização. Elas são do discurso e no discurso se constituem como argumentos, mas em certo sentido são exteriores a ele, porque pré-existentes a este discurso específico na qualidade de ‘fatos’, de ‘dados’, de ‘conhecimentos’, ‘memória’, etc. (cuja natureza não pretendo discutir aqui). Por isso que um mesmo fato pode ser construído como argumento em defesa de teses opostas em discursos diferentes.
O que transforma tais ‘coisas’ em argumentos? Para mim, a argumentação, isto é, a atividade de estruturação linguística dos ‘fatos’, ‘dados’, etc. É neste sentido que considero a argumentação uma atividade estruturante.
Até aqui estou utilizando a palavra “argumento” nos três sentidos apontados por Anscombre e Ducrot (1976). Resumo-os transcrevendo Guimarães (1980):
“Poderia significar: a) “dizer A para que o destinatário pense C”; 2) “dizer A a fim de que o destinatário conclua C”; e 3) “apresentar A como devendo conduzir o destinatário a concluir C”.
Sem entrar no mérito de saber se uma ou outra interpretação de argumentar é mais ou menos interessante para a pesquisa linguística, assumo aqui os trabalhos desenvolvidos no interior da Semântica Argumentativa da linguagem
“tem marcas na estrutura mesma do enunciado: o valor argumentativo de uma frase não é somente uma consequência das informações trazidas por ele, mas a frase pode comportar diversos morfemas, ekxpressões ou torneios que, mais que seu conteúdo informativo, servem para dar uma orientação argumentativa ao enunciado.” (Ducrot, 1973)
Se a utilização d eum argumento X ou Y, na argumentação, pode ser explicada a parti8r das condições de produção específicas de um dado discurso, como seu contraponto se impõe verificar como tal utilização se estrutura no interior do discurso ou, em outras palavras, verificar que mecanismos linguísticos foram postos em ação pela argumentação.
Parece-me que é possível detectar os elementos ou operadores que permitem tal estruturação.
Já tem sido demonstrado (6) que certas partículas exercem, no discurso, a função de estabelecer uma certa orientação argumentativa. Não me ocuparei em repercorrer tais análises. A questão de que me ocuparei é saber como tais orientações argumentativas estruturam o discurso ou, de forma mais específica, como elas estabelecem uma certa continuidade do discurso.
3. Tópico/Comentário e orientação argumentativa
Se afirmo que a argumentação é uma atividade estruturante do discurso, como poderia comprovar tal afirmação? Como se daria, afinal, esta estruturação?
Parece-me que os conceitos de tópico/comentário fornecem uma pista possível.
“A articulação de oração em tópico e comentário é um fenômeno generalizado nas línguas de que se tem notícia; (…) A presença de uma articulação desse tipo em orações do português é extremamente frequente; para sermos mais exatos é obrigatória, no sentido de que toda oração se biparte em tópico e comentário ou é globalmente interpretada como comentário” (Ilari, 1981, p. 62)
Para Bally, os enunciados linguísticos respondem a duas variáveis: de um lado, o objetivo, o propósito do enunciado é fazer com que nosso interlocutor saiba, conheça o pensamento que temos a propósito de algo (propósito = comentário), de outro lado, cada enunciado é emitido, na ocasião, com base num motivo, que é seu tema (tema = tópico).
Se considerar tais colocações para buscar a resposta à questão que me ocupa, poderei, com Bally, considera que a mesma articulação tópico/comentário que se estabelece no interior de um enunciado, também se estabelece na coordenação de enunciados: frases coordenadas entre si relacionam-se pelo fato de a segunda retomar a primeira como seu tema (ou tópico) no interior do qual é necessário interpretar a segunda oração, como mostram os exemplos:
- Está chovendo. Não sairemos.
- Está chovendo, portanto não sairemos.
Restringindo a minha hipótese de que a argumentação é uma atividade estruturante do discurso, a fim de poder especificar como tal estruturação aí se dá, posso agora apresentar um argumento para tal: não só o conteúdo posto pelo primeiro enunciado é retomado pelo segundo enunciado. Também as conclusões que tais enunciados podem permitir são possíveis de serem retomadas. E se se quiser, mais especificamente ainda, a orientação argumentativa resultante do emprego de operadores argumentativos presentes no primeiro enunciado pode ser o tema (ou tópico) a que o enunciado seguinte se articula (ou coordena), estabelecendo-se, desta forma, a continuidade de um discurso.
Esta continuidade do discurso se desenvolve num movimento duplo: de retorno e de avanço. Retorno porque toma o já dito e, ao retomá-lo, re-significa-o, especificando e determinando seus possíveis sentidos. Avanço porque se constitui como novo tópico da enunciação seguinte, abrindo novas possibilidades. Esquematicamente, tal movimento discursivo poderia ser visualizado da seguinte forma:
A | B
tóp com
AB C
_________________|_______________
tóp com
ABC …
_____________________________________ |________________
tóp com
Parece-me importante neste movimento de dupla direção o fato de que não somente o dito explicitamente poder se constituir como tópico, mas também as conclusões para onde o locutor está tentando conduzir o interlocutor; é neste sentido que a “retomada” consegue re-significar o já dito, dando-lhe especificidade, fechando e esvaziando significações ou, ao contrário, abrindo para outras significações.
Apesar da natureza programática deste texto, gostaria de avançar dois possíveis aspectos do uso da linguagem que me parecem oferecer argumentos para a análise proposta:
- em discussões, debates, assembleias, etc. é muito comum participantes desejarem falar numa ocasião bem precisa da fala do outro. Dado que uma “mesa” dirige o debate, o que ocorre é apenas a inscrição do participante. No momento em que a palavra lhe é concedida, a oportunidade já passou e ao participante cabem duas opções: desistir de falar ou repetir a fala do outro para re-criar a situação (seu tópico). Por que desiste? Por que re-situa? Parece-me que a desistência está ligada ao fato de que a fala do outro, em que desejava interferir, fechou e esvaziou significações, e ao fazê-lo, o que o participante tinha a dizer ou já foi dito ou adquiriu uma significação onde sua possível intervenção já não faz sentido. O fato de re-situar a fala do outro me parece estar ligado a especificações outras a que se oporá, ou a que acrescentará novos sentidos. Talvez seja por isso que em júris, por exemplo, a fala “não concedida” é altamente significativa;
- em literatura, é muito comum que, num conto, por exemplo, o último enunciado re-situe tudo o que foi narrado, dando-lhe uma significação ambígua tal que se torna necessário “re-ler” todo o conto [isto é, ressignificar episódios anteriores a que se tinha dado outra significação].
4. Análise de alguns exemplos
Nesta secção, retomarei algumas análises já presentes na literatura linguística, preocupado fundamentalmente em demonstrar a importância da articulação entre dois enunciados em função de suas orientações argumentativas.
O primeiro exemplo é retirado de um trabalho de Guimarães, já citado aqui (1980).
- (a) É possível que chova hoje. E choverá, sem dúvida.
? (b) É possível que chova hoje. E não choverá, sem dúvida.
Comparando estas duas sequências, nota-se que enquanto (a) é aceitável, (b) não o é. Para mim, a razão para tal reside precisamente no fato de que o enunciado “É possível que chova hoje” orienta-se argumentativamente jpara a conclusão “Choverá hoje”, como o demonstrou Guimarães (1980). O segundo enunciado coordena-se a esta conclusão e no caso a explicita, retomando-a. A impossibilidade de (b) se deve ao fato de que a continuidade da sequência contradiz tal conclusão, o que torna uma afirmação contraditória a outra [ainda que logicamente uma possibilidade aponta para o sim e para o não], em termos argumentativos, e consequentemente se constrói algo não estruturado. (7)
Um segundo exemplo:
- (a) “Se Pedro Simon foi, por um lado, extremamente maduro e compenetrado a ponto de tocar no tabu do revanchismo, por outro lado foi bastante apressado na sua proposta: tudo deve ser esquecido.” Pedro Simon cometeu um deslise que não se esperaria de um político experimentado como ele.
? (b) “Se Pedro Simon foi, por um lado, bastante apressado na sua proposta: tudo deve ser esquecido, por outro lado foi extremamente maduro e compenetrado a ponto de tocar no tabu do revanchismo.” Pedro Simon cometeu um deslise que não se esperaria de um político experimentado como ele.
A inaceitabilidade da mesma continuação tanto em (a) como em (b) se deve novamente à diferentes orientações argumentativas das sequências que precedem esta continuação. Qual o movimento argumentativo de tal enunciado? Resumidamente, poderemos dizer que:
X (Pedro Simon foi extremamente maduro e compenetrado a ponto de tocar no tabu do revanchismo) ¬> (Pedro Simon é um excelente político)
Y (Pedro Simon foi bastante apressado na sua proposta: tudo deve ser esquecido) ¬> (Pedro Simon não é um excelente político)
Z (Pedro Simon cometeu um deslize que não se esperaria de um político experimentado como ele) ¬> (Pedro Simon não é um excelente político) (8)
Ora, ao usar tais argumentos, estruturando-os linguisticamente, vai-se construindo não só um texto enquanto tal, mas também limitando as continuidades possíveis. O esquema “se por um lado P, por outro lado Q” é uma forma de coordenação de enunciados, com orientação argumentativa específica, sem eu todo, que pode ser assim resumida:
~R
∧ R ~R
| ∧ ∧
| | se por um lado P | por outro lado Q (9)
Se substituir “p” por X e “q” por Y (conforme o parágrafo anterior), terei como resultado global a orientação argumentativa de Y, isto é, “Pedro Simon não é um excelente político”, a que Z se articula sem qualquer problema. Obterei a sequência (2a). Se, ao contrário, inverter as substituições (“p” por Y e “q” por X) a orientação argumentativa de X, a saber, “Pedro Simon é um excelente político” prevalecerá, e a ela Z não se articula. Obterei a sequência inaceitável (2b). Nestas circunstâncias, somente caberia uma continuação que fosse no sentido de “Pedro Simon é um excelente político”.
Um terceiro exemplo:
- (a) A votação será difícil. Paulo está doente mas virá à reunião. Portanto, devemos insistir na presença de José para garantir um resultado satisfatório para nós.
(b) A votação será difícil. Paulo está doente mas virá à reunião. Portanto, contamos com mais um voto para nós.
Estas sequências me parecem importantes porque mostram que a coordenação d eum enunciado a outro via se construindo da forma prevista por Bally, isto é, o segundo enunciado toma o primeiro por tema, e ao mesmo tempo vai preenchendo espaços, em certo sentido ‘vazios’, isto é, re-significando-os e transformando-os em argumentos pela atividade de argumentação que se vai realizando.
Assim, em (3a), ao enunciar “A votação será difícil”, coordena-se o enunciado “Paulo está doente mas virá à reunião”, por sua vez constituído de dois enunciados coordenados entre si. Esta articulação informa:
- que Paulo está doente
- que a votação será em uma reunião a que virá
que pela coordenação do enunciado seguinte, preenche a informação
- Paulo votará contra nós, dado que é preciso insistir na presença de José. Isto me daria a seguinte análise:
A: a votação será difícil
B: Paulo está doente
C: Paulo virá à reunião
D: devemos insistir na presença de José para garantir resultado satisfatório para nós
E: Paulo votará contra nós – enunciado implícito pela sequência das coordenações
A (B mas C). Portanto D
B ¬> R1: Paulo não votará
C ¬> R2: Paulo votará
(B mas C)n ¬> R3 : Paulo votará
D ¬> R4: Paulo votará contra nós e José a nosso favor
É a conclusão R3 “Paulo votará”, que não está dita mas resulta do argumento e de sua organização discursiva, a que o enunciado D se articula, ou seja, a conclusão, expressa linguisticamente por “portanto”, ela deriva da orientação argumentativa obtida até este estágio do discurso. É, também, só no enunciado D que o sentido do primeiro enunciado (a votação será difícil) se estabelece: difícil para nós; nós temos interesse no resultado, etc.
A análise de (3b) no smostraria que, a partir do enunciado iniciado por “portanto”, contamos com mais um voto para “nós”, a significação até então obtida é diversa daquela de (3a), embora articulada, enquanto conclusão, à conclusão estabelecida até este estágio do discurso.
5. Conclusões
Apesar de ter analisado poucos exemplos, espero ter, ao menos, espeficado um pouco mais a hipótese que sustenta a abordagem aqui realizada, ao mesmo tempo que espero ter trazido uma contribuição para demonstrar como a argumentação (e a orientação argumentativa, mais especificamente) é responsável pela continuidade de um texto e, neste sentido, pode ser considera como elemento coesivo. (10)
Resta, porém, levantar algumas questões:
1) minha análise coincide, até certo ponto, com a proposta de Guimarães (1980) ao considerar as chamadas conjunções coordenativas como operadores discursivos:
“A função de uma conjunção coordenativa não é fazer que uma oração esteja em outra, mas que as orações se tornem texto , se constituam, portanto, em discurso.”
Acrescento apenas que a coordenação de enunciados, dando-se através da relação tema/propóstio (ou tópico/comentário), pode tematizar, no 2º. Enunciado, a própria orientação argumentativa do(s) enunciado(s) anterior(es). Neste sentido, penso abrir perspectivas de pesquisa que vão além daquelas inicialmente sugeriadas por Guimarães (1980, 1981).
2) por que um locutor, dadas as condições específica de produção, escolhe um esquema de coordenação e não outro? Refiro-me aqui à possibilidade de se usar um esquema concessivo da forma “Embora B, A” ou um esquema da forma “Se por um lado B, por outro lado A” que, em termos de orientação argumentativa apresentam o mesmo resultado. Parece-me que a resposta pode ser procurada com certo êxito no jogo de relações entre locutor/interlocutor, a que Guimarães (1981) denomina de “estratégias de relação”. De um ponto de vista teórico diferente, e trabalhando com atos de fala diretos e indiretos, Dorothea Franck (1979) também chega ao mesmo resultado, ao afirmar que:
“Se nós aceitamos um ponto de vista funcional sobre a linguagem, devemos partir da hipótese de que a escolha dos meios de expressão é motivada. Porque o falante se determina a escolher uma forma linguística ao contrário de outra, pode parecer arbitrário do ponto de vista da força ilocucional ou do conteúdo proposicional, mas pode estar ligado às diferentes propriedades conversacionais da expressão.” (p. 465)
Se, do ponto de vista da orientação argumentativa podemos aproximar o esquema “Embora B, A”, do esquema “B mas A” e do esquema “Se por um lado B, por outro lado A” dado que resultariam em orientações argumentativas semelhantes (11), diferentes são as relações estabelecidas com o interlocutor. Para Guimarães (1981)
“A estratégia do mas é de frustrar uma expectativa que se criou no destinatário, enquanto da do embora é a de manter uma expectativa, sendo que em Embora B, A, não se dá um argumento que se mantém, mas anuncia-se, com antecedência, que o argumento seguinte é que prevalecerá.” (p.93)
Concordo com a hipótese mas discordo que esta seja a estratégia de relação estabelecida através do Embora B, A. Para mim, o locutor ao usar tal esquema, toma B como um argumento que ele (locutor) julga ser um possível contra-argumento para sua tese, aceitando-o, inclusive como tal, mas antecipadamente anula tal contra-argumento (possível de ser usado pelo interlocutor), estabelecendo que o argumento seguinte, expresso em A, prevalecerá. Desta forma, com antecedência, anula uma possível contraposição do interlocutor.
Creio que em “Se por um lado B, por outro lado A”, a estratégia de relações locutor/interlocutor é diferente tanto de mas quanto de embora. Neste esquema, o locutor não assume B como um argumento seu, mas sim como um argumento que ele atribui ao interlocutor ou a outrem. Aceita tal argumento para lhe contrapor outro, que considera mais forte. Assim, não se frustra uma expectativa como em mas, mas aceita-se a argumentação de outro(s) apenas como forma de dar mais relevância a seu próprio argumento, anulando desta forma o peso que o argumento expresso em B poderia ter, ao se contrapor ao argumento expresso em A.
3) por fim, uma questão mais de ordem técnica de análise. Ao constatar que à orientação argumentativa pode-se coordenar o enunciado seguinte, acrescento um argumento a mais para não considera-la como pressuposto, como a analisam Anscombre e Ducrot (1976) (12).
Não desejo dar à orientação argumentativa o privilégio de ser o único elemento coesivo de um texto. No entanto, gostaria de ter fixado que a argumentação é uma atividade estruturante do discurso (13). Resta-me, é lógico, aprofundar em outras análises (e consequências) tal hipótese.
Retomando o que se disse, gostaria ainda de ressaltar a importância que assume para esta análise o interlocutor e o ponto de vista de que, em linguagem, há sempre uma construção conjunta, uma atividade compartilhada, tanto em discursos que se apresentam como tendo uma só voz a proferi-lo como em discursos que se constituem como diálogos, ainda que polêmicos, por divergirem as condições de suas produções.
Notas
* Agradeço aos colegas Jonas A. Romualdo, Sírio Possenti, Maria Irma Coudry, Alcir Pécora, Eni P. Orlandi, Eduardo Guimarães e Haquira Osakabe por terem discutido comigo a primeira versão deste texto. Algumas de suas sugestões foram aqui incorporadas, outras registradas como temas para dissertações futuras. Não lhes cabe, evidentemente, a responsabilidade pelos enganos por mim cometidos.
(1) Estou, aqui, tentando me situar no quadro dos estudos desenvolvidos por Perelman.
(2) Dado que é uma possibilidade, não se está ante um fato consumado. E isto é fundamental para mostrar a validade e urgência de uma reunião de estudantes.
(3) Estas duas questões foram tratadas por Michel Charolles (1980)
(4) Por ‘silêncio’ não pretendo dizer “não-fala”. Com ‘silêncio’ gostaria de recobrir discursos que são decorrência de discurso(s) anterior(es) tanto repetindo o já dito quanto aqueles que, a partir do(s) anterior(es) vão no mesmo sentido dele(s). É claro que a questão do paradoxo, aqui, é apenas apontada. É necessário um estudo bem mais cuidadoso deste aspecto da argumentação, precisando especialmente o conceito de “adesão”.
(5) Aqui um único discurso serve a duas funções, tendo um duplo interlocutor: os oponentes, a quem critica e os eventuais parceiros, aquém diz “estou tomando uma posição”. Este fato, que é um caso limite, mostra que é preciso considerar a imagem do interlocutor, feita pelo locutor, como um compósito de imagens.
(6) Ver, entre outras, as análises desenvolvidas por Vogt(1977), a propósito da compração e de outros operadores argumentativos; Guimarães (1981) a propósito da conjunção embora; Geraldi (1978 e 1981) a propósito dos enunciados condicionais.
(7) Aproximo esta análise à questão da articulação tópico/comentário. A estranheza do diálogo:
A – E o menino, que faz?
B – O gato quebrou a vidraça.
Deve-se precisamente ao fato de que B não faz seu comentário em relação ao tópico da pergunta de A (É lógico que, numa situação X qualquer, se poderia interpretar gato-menino ou que a fala de B questiona a fala de A).
(8) O símbolo ¬> deve ser lido “orienta-se argumentativamente para a conclusão”. Em pormenores, a análise deste esquema (se por um lado …, por outro lado…) quanto a seu aspecto argumentativo e à natureza “coordenativa” deste “se” foi desenvolvida na minha dissertação de mestrado “Se a semântica fosse também pragmática…ou para uma análise semântica dos enunciados condicionais”. Unicamp, 1978.
(9) Lê-se: “por um lado P” é argumento a favor de uma tese R; “por outro lado Q” é argumento para a tese contrária não-R (~R). Todo o esquema “se por um lado P, por outro lado Q” é um argumento para a tese ~R.
(10) Devo esta sugestão a Sírio Possenti.
(11) A orientação argumentativa seria
Embora B, A:
B ¬> R
A ¬> ~R
(Embora B, A) ¬> ~R
A mas B
A ¬> R
B ¬> ~R
(A mas B) ¬> ~R
Se por um lado B, por outro lado A
B ¬> R
A ¬> ~R
(Se por um lado B, por outro lado A) ¬> ~R
(12) Em comunicação apresentada por mim e Celene M. Cruz no XVIII Seminário do GEL, Batatais, 1977, defendemos o ponto de vista de que a orientação argumentativa não pode ser considerada como pressuposto. Ver “Orientação argumentativa e pressuposição” Estudos Linguísticos 1 – Anais de Seminários do GEL p. 81-95. À mesma conclusão também chega Guimarães, “Argumentação e pressuposição”. V Encontro Nacional de Linguística, 1980.
(13) Um princípio mais amplo do que o da “argumentação” é trabalhado por Eni P. Orlandi, estudando o “funcionamento discursivo”. Restringindo, talvez, o conceito de argumentação com que opero, poder-se-ia dizer que a argumentação seria um dos mecanimos de produção dos “efeitos de senti9do” a que a autora se refere em “Funcionamento e discurso”.
Bibliografia
Anscombre, J. C. e Ducrot, O. “L’argumentation dans la langue”. Langages, 42, p. 5-27.
Charolles, Michel. “Les formes directes e indirectes de l’argumentation”. Pratiques, 28, 1980, p. 7-43.
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