Domingo com Florbela Espanca

Verdades Crueis

Acreditar em mulheres

É coisa que ninguém faz;

Tudo quanto amor constrói

A inconstância desfaz.

 

Hoje amam, amanhã squecem,

Ora dores, ora alegrias;

E o seu eternamente

Dura sempre uns oito dias!…

                               28.02.1916

 

Li um dia, não sei onde,

Que todos os namorados

Uns amam muito, e os outros

Contentam-se em ser amados.

 

Fico a cismar pensativa

Neste mistério encantado…

Digo para mim: de nós dois

Quem ama e quem é amado?…

                               28.2.196

Caravelas…

Cheguei a meio da vida já cansada

De tanto caminhar! Já me perdi!

Dum estranho país que nunca vi

Sou neste mundo imenso a exilada

 

Tanto tenho aprendido e não sei nada.

E as torres de marfim que construí

Em trágica loucura as destruí

Por minhas próprias mãos de malfadada!

 

Se eu sempre fui assim este Mar Morto:

Mar sem marés, sem vagas e sem porto

Onde velas de sonhos se rasgaram!

 

Caravelas doiradas a bailar…

Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!

As que eu lancei à vida, e não voltaram!…

(Poemas Florbela Espanca. Edição preparada por Maria Lúcia Dal Farra, Martins Fontes,1996)

Greve! Barbas de molho, Sr. MInistro da Justiça!

A greve geral foi um sucesso. É certo que parte deste sucesso se deve a uma categoria específica: dos trabalhadores em transporte público. E para infelicidade do Prefeito pidão, aquele que recebe doações continuadas de empresários, nem o aplicativo para o transporte gratuito dos funcionários da Prefeitura de São Paulo, através do UBER, funcionou!

Queriam ou não aqueles que chamaram os trabalhadores de “vagabundos”, eles tiveram que engolir: há mais “vagabundos” no país do que honestos banqueiros! E enquanto os tais “vagabundos” produzem, os banqueiros vivem nababescamente sentados sobre seus tesouros que Henrique Meirelles faz questão de aumentar. E ameaça: sem Reforma da Previdência, os juros sobem… porque ele precisa dar alguma compensação aos seus patrões. Pois que subam os juros escorchantes praticados pelo Banco Central sob comando de outro funcionário dos banqueiros.

Mas o toque mais bizarro desta greve geral é a candidatura do Delegado de Polícia, Dr. Antônio Roberto Cesário de Sá, atual secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, para o cargo de Ministro da Justiça e de passagem, se a PEC da Bengala não estorvar, um assento na diminuída, cada dia mais, Suprema Corte.

Acontece que ele percebeu ser esse o caminho. As pessoas aprendem! E ele seguiu os passos do Ministro Alexandre de  Moraes: comandar a violência da polícia, a agressão desnecessária contra movimentos sociais como fez o atual membro do STF em São Paulo. Isto o credencia para ser Ministro da Justiça do desgoverno Temer e de quebra chegar ao vitalício cargo no STF.

Por isso, o ministro atual, o Dr. Osmar Serraglio, que não comandou a polícia, deve por suas barbas de molho: afinal ele tem poucos créditos tanto para o cargo que exerce quanto para o salto para o STF. E a fila anda, Sr. Ministro! Ainda mais no ministério de Temer, onde ministros caem sucessivamente…

Há mais da greve: quando não dá para tapar o sol com a peneira, quando não dá para desconhecer uma rejeição ao Presidente em índices crescentes, que a durar este governo, poderá ultrapassar os 95%, quando não dá para ignorar o descontentamento popular, quando não dá para ignorar o desespero do desemprego crescente – apesar da mídia berrar que a economia está se recuperando vagarosamente – quando tudo isso se soma, sai o desgoverno a dizer que manifestações são da ordem da democracia. Que sendo o governo constituído de sujeitos democratas, as manifestações são democráticas.

Esquecem, no entanto, que na democracia não se trata apenas de “deixar” que se manifestem. Trata-se também de ouvir e dialogar com os descontentamentos, estabelecer consensos que considere os argumentos de uma maioria popular. Democratas que não escutam, que não se esforçam para ajustar suas condutas com base na maioria, não são democratas. Praticam solilóquios. E agem como imperadores, como ditadores, impondo seu programa, seu projeto independentemente das reações populares. Trata-se, de fato, de um governo de minorias ricas e gananciosas: é o que temos de fato.

Assim, o governo e os deputados não ouviram as vozes das ruas. Já não ouviram e se anteciparam: aprovaram a destruição de direitos trabalhistas, o que eles chamam de Reforma Trabalhista, e a mídia de “modernização” da CLT. Cada qual com sua semântica. Mas tiveram que engolir: seus créditos se foram… já não são os donos da verdade única! Aliás, são somente os donos da pós-verdade, quando se descobre – a cada dia mais rapidamente – a inverdade que pretendem passar como verdade.

A violência da polícia do Rio de Janeiro foi a nota fúnebre da Greve Geral. Deseja-se ardentemente que funcione como aqueles anúncios de jornais: NOTA DE FALECIMENTO E CONVITE PARA ENTERRO.

No caso, o enterro do golpe, do golpe dentro do golpe, da perseguição judicial, do abuso de autoridade. Todos estão convidados para o glorioso acontecimento. Em breve, ao vivo e a cores.

  

Osmar Serraglio

Antônio Roberto Cesário de Sá

Em breve, o “sem vínculo empregatício” se tornará o padrão

Nos conflitos nas relações capital/trabalho, desde que começou a revolução industrial, o Estado, como um pêndulo, oscilou ora a favor de um lado, ora a favor de outro lado. A liberdade dos “liberais” admitia o trabalho semiescravo, de 12 horas semanais ou mais, incluindo crianças nas indústrias têxteis, particularmente.

Este mesmo sistema retornou no mundo globalizado, neste começo do fim do Estado moderno: o trabalho escravo prestado por costureiras, por crianças, por idosos e idosas, a preços vis, na confecção das roupas de muitas das grandes marcas, com sempre vem sendo denunciado quando ocorre algum acidente de proporções (os acidentes diários não interessam).

Conheço costureiras ‘contratadas’ sem contrato que levam para casa centenas de peças recordadas para uma costura, recebendo preços aviltantes pelo trabalho “por conta própria”.

Recentemente, recebo uma informação: como o vínculo empregatício de trabalho doméstico somente existe se houver três expedientes semanais, três dias por semana, há contratações de duas empregadas domésticas pelo mesmo patrão, para trabalharem cada um dois dias. Nos outros dias da semana, se necessário, entra em ação uma terceira faxineira… Como nestes casos não há vínculo empregatício, também não há recolhimento de contribuições sociais. Mas o falso déficit da Previdência vai por conta da seguridade social, dos apesentados de salário mínimo… não vai por conta de uma legislação promulgado por um Estado que hoje escolheu o lado do capital de forma escandalosa.

Pois a nossa malvista e maldita Câmara dos Deputados aprova a Reforma Trabalhista, isto é, a retirada de todo e qualquer direito que no Estado moderno, pré-neoliberal, havia sido conquistado. E o padrão, juntando com a terceirização generalizada, será o trabalho sem vínculo empregatício! Mais ou menos como o das duas empregadas domésticas, cada uma com dois turnos semanais!!! Uma precarização que será saudada nas estatísticas com o crescimento do falso “empreendedorismo”: todo trabalhador terá que abrir uma “empresa de prestação de serviços” com CNPJ, com contabilidade própria e registrada, pagando impostos de empresa e recolhendo contribuição previdenciária se quiser se aposentar recebendo um salário mínimo depois de anos de trabalho!

Será muito “gratificante” ver professores correrem atrás de CNPJs para darem aulas! E como o tiro também sai pela culatra, até os jornalistas “áulicos” da proposta terão seus CNPJs e, tomara!, lhes aconteça o que aconteceu com o “crítico a favor”, demitido do Estadão, o Sr. Arnaldo Jabor, o invertebrado.

O horizonte que desenha este governo e estes parlamentares não está para peixes… E lembrem, o dono do país, o Sr. Ministro da Fazenda, aquela fonte de ameaças, já disse que “direito adquirido é uma ficção legal”… Portanto, que os tranquilos aposentados de hoje se preparem para ter que cumprir o que pediu um primeiro ministro japonês: ter a bondade de morrer para que os rentistas possam entesourar mais e mais dinheiro vivo, isto é, dinheiro regado pela morte dos outros. Pouco interessa ao rentismo que morram os outros, mesmo que estes outros sejam muito próximos. Claro que próximos a eles só podem ser os serviçais… 

Tendencioso: dos males da Globo e de um insignificante blog

Esta é uma pequena nota para aqueles que deixaram comentários no blog: infelizmente, desde o ataque que o blog sofreu até agora não foi possível resolver todos os problemas deixados criados pela barbárie daqueles que, não tendo argumentos, usam da força do conhecimento para prejudicar aos outros.

Como os leitores podem ver, mesmo quando colocam seus comentários e depois retornam à página, quase todos desaparecem! Agora descobrimos uma forma de tomar conhecimento dos comentários, mas sem possibilidade de resposta.

Assim, gostaria de agradecer a vários comentários que recebi e dos quais tomei conhecimento apenas neste final de semana.

Peço que, até serem resolvidos os problemas, os comentários seja deixados na página do Face. Mas aqueles que quiserem deixar seus comentários na página do blog, tudo bem: ao menos a partir de agora tomo conhecimento deles.

Agradeço muito os comentários recebidos. Agradeço os elogios a propósito do texto sobre os livros de Charles Kiefer, Manoel de Barros e Jorge Miguel Marinho. Tenho sempre reservado o espaço de sábado para postar sobre minhas leituras e releituras. Neste caso, a excelente prosa poética do amigo Jorge Marinho me fez voltar aos outros dois lidos há muito tempo! Penso que o Alexandre Costa tem razão: cada vez mais vou recuperando meu gosto pela literatura, área em que comecei minha carreira de professor universitário nos longínquos anos de 1974/1975/1976. Desviado para a Linguística em função das necessidades do Curso de Letras da Fidene, somente agora retorno, mas como leitor, à literatura. Jamais como crítico e estudioso, que me faltam competência e arte.

Há um comentário de Gordon Barrett que transcrevo:

Caro professor, para os políticos do PSDB, tudo é falcatrua, para Lula, o senhor ainda o quer como presidente?? Os políticos do PSDB têm que ir para a cadeia, assim como Lula e quase a totalidade do PT. Faço minhas as suas palavras: “A corrupção e a imoralidade é sempre dos outros…” A globo pode ser tendenciosa, 0mas o senhor também é.

Penso que não estou sozinho achando que Lula voltará à Presidência, embora eu não acredite que haverá eleições em 2018. Estou mais propenso a crer que haverá um golpe dentro do golpe, com o TSE derrubando a camarilha atual do governo, com uma eleição indireta de um civil, sustentado pelas Forças Armadas, com um mandato de cinco anos. A maior honraria militar concedida ao Altíssimo, o Sr. Juiz Sérgio Moro, estão sinalizando o retorno dos militares à política.

Quanto à minha tendenciosidade, penso que sempre deixei claro que sou contra qualquer desvio e que os políticos corruptos devem ser processados, NA FORMA DA LEI, sem direito de juízes e procuradores a excepcionalidades. Não acho que a quase totalidade do PT deve ir para a cadeia, até porque seriam milhares de militantes que constituem o partido tendo que ir para a cadeia!!!

Quanto ao Lula: é forte a perseguição que lhe fazem a mídia e o judiciário como um todo – não só o Altíssimo. Não encontram provas, e vão inventando novos crimes… Circula pelas redes sociais um dito: a bola da vez do “domínio do fato” será a condenação de Lula pelo crime de ter apagado todas as provas que o incriminem! Seria um ineditismo interessante na jurisprudência internacional, uma criação legítima da República de Curitiba, aquela que não tem provas mas tem convicções. Que o diga o vazamento do depoimento de Léo Pinheiro ao juiz Sérgio Moro antes de o depoimento acontecer!!!! E agora que ele aceitou mentir descaradamente, foi aprovada sua delação premiada!

Por isso, Gordon Barrett, talvez a gente tenha que dar mais peso nos comentários para o lado que está sendo perseguido. Faria o mesmo na época de Hitler, em defesa dos judeus, dos homossexuais, dos portadores de doenças mentais e deficientes, dos comunistas! Independentemente de que alguns deles tenham cometido algum crime!!! Não se condena a totalidade de um grupo, seja ético, sexual, enfermos, políticos ou partidários porque algum de seus membros cometeram desvios.  

  

Textos sobre textos: o insignificante, o ínfimo, o miúdo

Tenho em mãos três livros:

Museu de Coisas Insignificantes, de Charles Kiefer (Mercado Aberto, 1994)

Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, de Manoel de Barros (Record, 2001)

A Gravidade das Coisas Miúdas, de Jorge Miguel Marinho (SESI-SP Editora, 2016)

O livro de Charles Kiefer é uma coletânea de poemas, contendo a tradução de cinco sonetos de Borges traduzidas pelo autor. Como o título já indica, grande parte destes poemas remete a detalhes, a pequenos detalhes a partir dos quais o poeta vai compondo seu canto. Ao recordar a infância:

Antigos fragmentos de tijolos enterrados

à tona às vezes vêm. São os restos

de uma calçada que levava à casa

em que nasci. (Fragmentos)

Seus temas explodem das coisas pequenas. Há um poema dedicado à laranja que “aprisiona o olhar e a saliva”. Em outros momentos, vai mais longe:

Amo estas paredes de limo e bolor, esse

silêncio de cripta, essa vida emparedada. (Emparedado)

O livro do pantaneiro Manoel de Barros, possivelmente o maior poeta das coisas miúdas, aquele que desde criança descobriu a vocação de ser “fraseador”, para quem queria o irmão que o pai desse enxada já que “frasear” não põe comida na mesa, acompanha as obras anteriores nesta atenção ao detalhe, ao insignificante. Manoel de Barros – como todos os poetas – não pode ser resumido a uma fórmula. E a leitura de sua obra é sempre um soco no estômago pela singeleza do que expõe a nossos olhos cegos. O poema de abertura do livro dá o tom:

Cisco

(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)

Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,

cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,

grampos, cuspe de aves, etc.

Há outros componentes do cisco, porém de menos importância.

Depois de completo, o cisco de ajunta, com certa

humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,

Ou,depois da enxurradas, em alguma depressão de terreno. 

Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase sempre modestos.

O cisco é infenso a fulgurâncias.

Depois de assentado em lugar próprio, o cisco

produz material de construção para ninhos de passarinhos.

Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos, asas de mosca

Para a feitura de seus ninhos.

O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos.

Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas.

 

Manoel de Barros sempre foi o poeta que recupera o espanto da infância ante os detalhes do mundo que pela primeira vez vê. Nós crescemos e nos habituamos às coisas. E queremos ver somente grandes ações, heroicas decisões, gestos largos. Nós já não vemos o que o poeta recolhe das migalhas do mundo, nesta nobreza dos gestos em que “catar coisas inúteis garante a soberania do Ser./Garante a soberania do Ser mais do que Ter” (O Catador). E confessa: “uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.” Quando o leitor começa a querer retirar versos de um livro de Manoel de Barros, ele jamais acaba.  Mas há dois versos que precisam ser lembrados: “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro./Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).”

 

Jorge Miguel Marinho escreve prosa poética. Seu livro é um conjunto de “crônicas-contos” que se debruçam sobre as “coisas miúdas”, mas que ao mesmo tempo dialoga com um conjunto de outras produções artísticas: literatura (Clarice Lispector, uma paixão do autor é presença obrigatória); filmes, músicas, cinema. Trata-se de um livro cheio de reminiscências a um passado brasileiro recente nas artes. E dos cotidianos: o Biotônico Fontoura, o carrinho de rolimã, o patinete, o colete por cima do suspensório, o jejum para comungar no domingo seguinte, etc. Nada escapa a Jorge Marinho: “Um copo usado e esquecido no canto da festa me comove, também, as coisas desusadas, os seres deslembrados sofrem de memória aguda. Ouvi agora um barulho de louça quebrada, lá longe. Minha sina, meu império é essa metafísica do chão.” Trata-se para o poeta da prosa de “ver a segunda natureza das coisas, o que vem depois da epiderme.”

 

Como se pode notar, não somente os títulos das obras as aproximam. É esta temática do miúdo, do ínfimo, do insignificante, esta matéria prima concreta, um presente tão presente que se torna ausência sem a voz dos poetas.

 O que leva os poetas de hoje aos detalhes, às insignificâncias, às miudezas, ao ínfimo? Esta a pergunta que é necessário formular!

Se a modernidade se iniciou com a exaltação dos feitos heroicos (Camões, de Os Lusíadas, canta os feitos de varões assinalados), ou com o enterro definitivo da Idade Média e seus cavaleiros andantes (D. Quixote, de Cervantes), ou com a carnavalização do sagrado recuperando a cultura popular e trazendo para a literatura o mundo esquecido daqueles de fora dos salões (Rabelais de Gargântua e Pantagruel), e mais tarde no Iluminismo um Fausto negocia com Mefistófeles a alma pelo conhecimento (Fausto, de Goethe), agora a poesia e a prosa [e o bom cinema] estão cantando e contando a vida miúda, esquecida, espaço em que se dão os dramas da existência.

É certo que a geração modernista, no Brasil, foi a primeira desviar o olhar para o real, um real amplo: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Depois veio a geração de 1945 – tomemos Drummond como o poeta prototípico – a cantar a vida real, o “não nos afastemos muito”, num convite a andarmos de mãos dadas em tempos de homens partidos.

Parece que o desvelamento das promessas não cumpridas pela modernidade (e pela ciência da modernidade), o chamado fim das grandes utopias, das grandes ideias, do combate incansável pelo inalcançável, tudo produziu e está produzindo um fechamento das grandes experiências e cedendo lugar para os impasses do cotidiano, do presente, onde as coisas miúdas contam e a elas se reduzem, definitivamente, as vidas que levamos.

Não só os poetas que nos levam para atentarmos ao pequeno: em pesquisa, particularmente na Educação, o cotidiano está em voga. O invisível que está nas dobraduras do real e que é de fato o real chama o investigador.

Nietzche já apontara para esta vida demasiadamente humana que levamos… e a perda da inocência pela ad-miração dos grandes gestos: o homem é pequeno, somos pequenos. Que queremos, afinal?

Enquanto lia o livro de Jorge Miguel Marinho, também lia um texto inédito do filósofo barcelonês Jorge Larrosa: “Insignificancias, o ¿qué hago yo aquí?” Neste texto, ele dialoga com Bruce Chatwin e seu livro “Qué hago yo aqui?”, um relato das inúmeras viagens deste autor. Seleciono uma pequena passagem do texto (tradução minha):

A pergunta mais inquietante, disse Chatwin, ou algum leitor de Chatwin, não é a que se interroga por quem somos, mas por onde estamos. Esta nossa época da identidade, da construção e reconstrução permanente da identidade, enfatiza o quem somo, mas a pergunta perigosa, a que abre todas as suspeitas, é “que faço eu aqui?”. E então, quando esta pergunta se faz inevitável e obsessiva, quando os lugares se confundem e perdem sua segurança, seus contorno e suas definições, o que nos resta para saber sobre de que é feito o mundo são os detalhes mas insignificantes, os mais inúteis, os menos edificantes.

E eis que as insignificâncias reaparecem, agora na filosofia. A pergunta “que faço eu aqui?” pressupõe um fazer, pois não se trata simplesmente de um “estar aqui”.
A resposta seria mais uma vez um imobilismo nihilista? O estar em um lugar (social ou físico)  – e a experiência humana sempre acontece num lugar – e perguntar-se pelo que se faz neste lugar somente se torna perigoso se a elaboração de uma resposta pretenda abarcar mais do que insignificâncias.

Mas se restam somente miudezas, coisas ínfimas da experiência neste fim da era moderna e prenúncio do que ainda está por vir – sobre o que, por enquanto, apenas podemos dar pinceladas – há um trabalho de gigantes para elaborar para além do visível, do talher sobre a mesa, da laranja que traz saliva à boca. Mas uma elaboração que não caia nos mesmos erros do passado: o insignificante, o ínfimo, o miúdo devem ter lugar garantido neste futuro. Este o recado de nossos poetas. O futuro não pode apagar o presente; o futuro não pode justificar a falta de liberdade no presente!

Assim, tudo o que estes poetas, nestes três livros, estão nos dizendo é que somente a atenção ao pequeno poderá ser alavanca para significar o futuro. Sem ele, sem o miúdo, o mundo das grandes ideias se esvai como a fumaça do cigarro em seus malabarismos pelo ar.

Assim, diante de certo nihilismo imobilizante, quase um credo do pensamento pós-estrutural, os poetas propõem uma atenção à simplicidade, à natureza com que necessariamente convivemos (Manoel de Barros canta as rãs, as aves, as pedras, …)

Ou, para lembrar outro filósofo que não é muito bem visto entre nihilistas, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”: o mais sólido que se desmancha nestes tempos são as virtualidades de um vazio destrutivo da vida, chamado lucro e operado por um chamado “mercado”. No entanto, “a gravidade das coisas miúdas”, incluindo as gentes miúdas, invisíveis para o pensamento global, estão presentes e se não os enxergamos, os poetas nos fazem vê-los porque não se desmancham no ar e é a partir destas miudezas que poderemos reconstruir a vida mais humana que desejamos todos.