por João Wanderley Geraldi | jan 31, 2017 | Blog
Ontem tive que ir ao barbeiro! E lá não poderia desligar a TV ligada, obviamente, na Rede Globo num programa que, parece, se chama bem-estar. Há muito tempo não me via forçado a ter que ouvir esta rede golpista e de péssimo jornalismo. Mas não podia deixar de ouvir, claro que sem ver, o que se transmitia naquele programa e naquele horário. Em lugar do tal bem-estar, o que se produzia era um mal-estar. Repórter e âncora falavam da prisão de Eike Batista.
Em vez de uma notícia simples, tudo se transformou numa reportagem de longa duração! A repórter, no saguão do desembarque – não sei o que fazia lá, pois o preso havia saída por uma porta sozinho, imediatamente transportado por carro policial não identificável como tal… isto segundo o que saía da boca da repórter! Deve ter havido imagens porque falava que um repórter estava no avião para os efeitos desejados.
Pois queria a jornalista perguntar aos demais passageiros sobre a viagem, sobre como se sentiram sendo companheiros acidentais de um viajante tornado ilustre pela própria emissora em seus tempos áureos, de quem os mesmos jornalistas da mesma rede puxaram o saco à vontade.
A repórter estava inquieta: demoravam os passageiros procedentes de Nova York a saírem pelo portão… saiam passageiros procedentes de Miami e nada de aparecer um “entrevistável”. Mas a dita cuja não perdeu por esperar. Começaram a sair os viajantes desejados e imediatamente foram barrados pelos microfones da moça! E perguntava tanta besteira aos atônitos recém-chegados que somente faltou perguntar se Eike Batista mijou e cagou durante o voo. O desejável é que tivesse feito isso na cabeça da repórter e do âncora para ver se adubava o crescimento de alguma luz de inteligência! Não desculpo estes jornalistas por estarem cumprindo “ordens” superiores. Eles fazem isso com muito gosto, porque não sabem mais exercer a profissão de outro modo, somente sabem criar clima de espetáculo.
A Rede Globo presta um mau serviço de jornalismo. Tudo que sabe fazer é imitar seu próprio programa de reality show. A realidade noticiada se torna um espetáculo. E um espetáculo do mal (como as transas sob os edredons a que dão tanta importância para transformarem o que seria bom e amoroso em espetáculo degradante). Ela imita a si mesma.
Nenhum problema haver uma rede de televisão assim imbecilizante se o país tivesse outras alternativas e se o acesso aos bens culturais não fossem interditos à população!
Obviamente o mal maior, aquele do retorno para as classes D e E de mais de 15 milhões de famílias nos últimos dois anos, desde que se começou a aplicar a política econômica ditada pelo mais tacanho neoliberalismo, aquele dos colonizados. Sobre isso, nenhuma reportagem sobressaltada, nenhuma reação convincente, nenhuma espetacularização do escândalo!
Os espetáculos são aqueles que requerem a Lava Jato e o que eles mesmos chamam de filhotes da Lava Jato, para que o povo não esqueça o baluarte nacional do combate à corrupção dirigido por agentes que recebem por mês muito mais do que a lei diz ser o teto de remuneração de servidores públicos. Eles vão além com o que chamam “auxílios”, num verdadeiro locupletar-se com os recursos públicos para lutar contra estes mesmos atos praticados por aqueles que deveriam estar fora do clube.
A Rede Globo secunda isso tudo, dia e noite. Martela e cria uma consciência nacional de que este país é inviável, fazendo passar por verdadeira a velha piada de que Deus privilegiou nosso território com riquezas extraordinárias e com belezas incomparáveis, mas pôs aqui “povinho” miseravelmente ladrão, malandro, vagabundo, preguiçoso e outras coisas mais…
Esta imagem de si mesmo é tudo o que quer a cume da pirâmide social que nos caracteriza: o Brasil se torna inviável; a riqueza deve ficar com os que sabem dela usufruir e nada de pensar numa nação para todos os brasileiros. Fiquemos mesmo com a nação da ordem para todos e do progresso para alguns! Este o objetivo final da espetacularização do mal praticada pelo jornalismo da Globo e por seus jornalistas que que a isto se submetem com muito boa vontade, imbecilizando-se em suas perguntas como fez durante grande parte da manhã a repórter posta no saguão do desembarque internacional do Galeão no dia de ontem, tornado “o dia da prisão de Eike Batista” e nada mais.
por João Wanderley Geraldi | jan 30, 2017 | Blog
Donald Trump prometeu em sua campanha eleitoral que construiria um muro fechando a fronteira com o México, caminho por que cruzam imigrantes ávidos para fugirem dos muros de cá para viverem de forma clandestina lá.
Há muralhas históricas, como a muralha da China, uma maravilha da engenharia da antiguidade e patrimônio cultural de um passado que se foi. Na Idade Média, as cidades eram muradas. Havia os habitantes intramuros e extramuros. Restam-nos algumas ainda com seus muros intactos, como San Giminiano, na Toscana; Ávila e Alarcón na Espanha; Monsaraz em Portugal. Há as cidades que cresceram além muros, mas estes ainda estão lá para mostrar aos homens de hoje que há história e há passado: Évora e Óbidos em Portugal; Toledo na Espanha; Siena na Itália. Cito apenas cidades que conheço. Há muitas outras, obviamente. São muros-testemunhas de um tempo que, sabemos sobejamente, não se foi, mas que construiu outras formas de dominação.
Há muros da vergonha: o muro de Berlim, que obrigou um investimento maciço na Berlim Ocidental, tornando-a um paraíso que o capitalismo não construiu em lugar algum. Apenas uma vitrine para mostrar o atraso material que insistia existir numa tentativa de um avanço social que deu com os burros n’água precisamente porque não soube aliar avanço material com liberdade, um apanágio do pensamento mais evoluído da humanidade.
Trump não estava blefando. Quer mesmo o muro. E quer mais: que o governo até hoje entreguista do México ajude a pagar o muro. Andam às turras. Trump conseguiu unidade política em torno de Peña Nieto!!! Um feito espetacular. A recusa da América Latina à proposta da ALCA, que levou a outro acordo multilateral, a NAFTA, agora mostra que tinha toda razão Hugo Chavez quando disse em Buenos Aires: “ALCA, ALCA, AL CARAJO!” Os mexicanos pagarão agora os resultados da exploração a que foram submetidos. E não querem pagar o muro! Como disse uma amiga, os mexicanos querem pular o muro para irem buscar o alto padrão de vida norte-americano que deve também a eles uma parte da riqueza que lhes foi tirada. Pularão para irem buscar o que lhes foi furtado e muitas vezes roubado.
Teremos, pois, um novo muro. Materialmente. Exposto a olho nu.
Enquanto isso… por aqui os alicerces do muro imaterial estão sendo ligeiramente construídos por afanados pedreiros de mãos limpas e bem pagos. Aquele que teremos muita dificuldade de derrubar porque representa um muro projetado para o futuro é a Reforma do Ensino Médio. A Medida Provisória que o funda – mostrando desde o começo o caráter autoritário e urgente da fatura a ser paga pelo golpe – produz um muro invertido, um fosso que separará ricos e pobres, aprofundando distâncias e vendendo uma imagem de “liberdade de opção” para um nível de ensino que está realmente precisando de embalo mas não de um abalo como aquele que vem aí…
Teremos opções no ensino médio, segundo as “aptidões” dos jovens que escolherão um dos percursos previstos – humanidades, ciências físico-químicas, matemática, ciências biológicas e ensino profissional. As escolas oferecerão dois percursos, no mínimo. Como há falta aguda de professores de Física, de Química, de Biologia e de Matemática, o que oferecerão as escolas públicas brasileiras aos seus alunos provenientes das classes populares? Ora, humanidades e ensino profissional. Dirão eles isto é ótimo. Prepara os jovens para o mercado. Com que recursos a escola pública dará formação profissional sem oficinas, sem laboratórios e sem professores? Ora, nossos orientadores são previdentes. A Medida provisória já diz: os créditos poderão ser cumpridos no mercado de trabalho. Ou seja, na área do “ensino profissional” as escolas assinarão convênios com empresas, e seus alunos terão formação no trabalho como estagiários ou como voluntários pois de alguma forma, se quiserem completar este nível de ensino, precisarão amealhar créditos e mais créditos… E o Estado ficará apenas com a obrigação de oferecer as disciplinas obrigatórias: português, matemática e inglês!!! O resto, vá trabalhar vagabundo. E não um trabalho com horizontes de efetivação depois do estágio: a fila anda e novos estagiários estão ali esperando os seus lugares… o patronato agradece o trabalho mal remunerado do estagiário e, principalmente, o trabalho voluntário de formação do jovem. Afinal, somos TODOS PELA EDUCAÇÃO, particularmente agora que passará a nos fornecer mão de obra gratuita ou praticamente gratuita!
Para coroar esta obra prima de desfaçatez, muda-se o ENEM que deve deixar de ser um exame de acesso ao ensino superior para se tornar apenas uma avaliação de larga escala para ajudar a definir políticas públicas (como a Reforma do Ensino Médio!!!) tal como idealizado nos anos 1990 pelo mesmo grupo que hoje ocupa o MEC (o ministro do DEM é apenas uma figura decorativa; os técnicos e assessores dos tempos do FHC estão encastelados no INEP e nas Secretarias do ministério).
O bolo da cereja é “a liberdade da universidade” para definir o perfil dos alunos que deseja! Nada de exame nacional contar pontos, um bom jeito de acabar com todas as cotas existentes sem levantar a questão de forma explícita. Ora, para os cursos na área das ciências médicas, as universidades darão pontos maiores para as ciências biológicas e as ciências físico-químicas; para os cursos de Engenharia, exigirão mais do que matemática, ou seja, contarão muitos pontos em suas seleções os conhecimentos de Física, de modo particular. Resumo da ópera: os cursos nobres que sempre foram para os filhos da burguesia e da classe média alta voltarão a ter em seus bancos apenas os privilegiados procedentes das escolas ricas e para ricos, onde serão oferecidos os percursos impossíveis para as escolas públicas! Isso tudo de acordo com o perfil do aluno…
Como todo doce, há que haver uma pitada de sal. O sal fica por conta de dois acalentados programas, um já em execução, outro no horizonte do retrocesso. O primeiro: a redução de vagas nas instituições federais de ensino superior (os Institutos Federais já neste ano tiveram que reduzir sua oferta de vagas); o segundo: o retorno dos cursos normais lastreados nas práticas para supostamente resolver os problemas da alfabetização e letramento, como disse quase explicitamente Maria Inês Fini, presidente do INEP e uma das cabeças retro-pensantes das políticas de educação do governo atual. Há que por em prática o que não deu tempo de fazer nos oito anos de FHC. O estrago será em curto prazo; os efeitos serão de longo prazo.
Observação: este texto resulta de uma conversa entre amigos: Maria Emília, Cida Moysés, Cecília Collares, Corinta e João. Não lhes cabe qualquer responsabilidade pelos meus enganos e pelos meus modos de dizer as coisas.
por João Wanderley Geraldi | jan 29, 2017 | Blog
Silêncio entre os homens que estão conversando.
Silêncio enquanto eles estão falando.
Silêncio entre um som e outro
som.
Silêncio entre som e
um outro
somem.
Silêncio entre;
não silêncio em.
Silêncio vento;
não silêncio vem.
Silêncio ventre;
não silêncio sêmen – Silêncio sem.
Silêncio entre silêncios
Entrem.
(Arnaldo Antunes. Tudos. SP: Iluminuras)
Introdução ao Direito
Tinha vindo de Buenos Aires e continuava sendo um intruso em Jujuy, embora estivesse apegado ao lugar depois dos anos e trabalhos. Certo dia, distraído, pagou com um cheque sem fundos o conserto de um pneu do automóvel. Foi julgado e condenado. Perdeu o emprego. Os amigos mudavam de calçada quando viam que ele se aproximava. Não era convidado a nenhuma casa e ninguém bebia com ele, como antes.
Uma noite, tarde, foi ver o advogado que tinha defendido sua causa.
– Não, não – disse – Nada de apelações. Eu sei que não há nada a ser feito. Deixa pra lá. Vim me despedir e dar um abraço de boas-festas. Muito obrigado por tudo.
Nesta mesma madrugada, dormindo, o advogado deu um pulo na cama. Acordou a mulher:
– Disse feliz Natal e para o Natal faltam dois meses.
Se vestiu e saiu. Não o encontrou. De manhã ficou sabendo: o homem tinha dado um tiro na cabeça.
Pouco depois, o juiz que iniciou o processo sentiu uma dor esquisita no braço. O câncer devorou-o em uns poucos meses. O promotor que fez a acusação foi morto por um coice de cavalo. Seu substituto perdeu primeiro a fala, depois a vista, depois a metade do corpo. O automóvel de um escrivão do tribunal se arrebentou na estrada e pegou fogo. Um advogado que tinha se negado a intervir no assunto recebeu a visita de um cliente ofendido, que tirou uma pistola e disparou a queima-roupa.
Hector me contou esta história em Yala, e eu pensei nos assassinos de Guevara.
René Barrientos, o ditador, deu a ordem de matá-lo. Terminou engolido pelas chamas de seu helicóptero, um ano e meio mais tarde. O coronel Zenteno Anaya, chefe das tropas que cercaram e agarraram Che em Ñancahuazú, transmitiu a ordem. Muito tempo depois, se meteu em conspirações. O ditador de turno ficou sabendo. Zenteno Anaya caiu crivado de balas em Paris, uma manhã de primavera. O comandante ranger, Andrés Selich, preparou a execução. Em 1972 foi morto a porradas por seus próprios funcionários, os torturadores profissionais do Ministério do Interior. Mario Terán, sargento, executou a ordem. Foi de quem disparou a rajada contra o corpo de Guevara, que estava estendido na escolinha de La Higuera. Terán está internado em um hospício: baba e responde besteiras a qualquer pergunta. O coronel Quintanilla anunciou ao mundo a morte de Che. Exibiu o cadáver a fotógrafos e jornalistas. Quintanilla morreu com três tiros em Hamburgo, em 1971.
(Eduardo Galeano. Dias e noites de amor e de guerra. p. 162-163)
por João Wanderley Geraldi | jan 28, 2017 | Blog
O leitor que tiver nas mãos um romance de walter hugo mãe (tudo em letras minúsculas desde o nome do autor ao título do romance, como escreve o autor), certamente sairá buscando outras obras porque o português nascido em Angola é um mestre da palavra, inventivo na história que narra, na forma do narrar e na reinvenção de seu instrumento de trabalho, a língua portuguesa.
Há autores que conhecem o ofício de escrever e são inventivos. Cativam-nos pelo enredo e pelos torneios com a língua: José Saramago, Autran Dourado, Milton Hautoun, entre tantos outos. Mas autores que vão além, que inventam o dizer e o modo de dizer, como fizeram Machado de Assis no passado mais distante e Guimarães Rosa no passado mais recente. São como eles no presente dois autores de língua portuguesa nascidos na África: Mia Couto (Moçambique) e walter hugo mãe (nascido em Angola em 1971, mas a família se estabelece no norte de Portugal quando ele tinha apenas dois anos, precisamente nos tempos mais duros da guerra da independência a que Angola chegou com a Revolução dos Cravos, em 1974).
Ao contrário de Mia Couto cujos cenários são moçambicanos, em o remorso de baltazar separião o espaço em que se movimentam as personagens é o interior profundo do reino, nas relações sociais de servidão em que um senhor de terras mantém cativos os trabalhadores que cuidam de suas terras e de seus bichos sem renda alguma que vá além do necessário à uma sobrevivência parca e porca. Num tempo de referência que poderia estar distante cronologicamente, mas que insiste e persiste nos rincões nacionais.
O narrador é Baltazar Serapião, pertencente à família dos sargas, nome que lhes vem da vaca, suposta mãe dos filhos de velho Serapião, logo suposta mãe de Baltazar, de Brunilde e de seu irmão menor Aldegundes. O dono das vidas e terras é o Senhor Afonso Castro, casado com a que se mostrará megera, Dona Catarina.
Há razão para sublinhar que o feminino é o tema que move e comove todas as personagens. O enredo começa com as primeiras exigências sexuais de Baltazar, que descobre Teresa, a diaba, em que monta como montam vários outros homens para se livrarem da sofreguidão do sexo… Há os arranjos de família para que Ermosinda se torne a mulher de Baltazar. Por ela apaixonado, Baltazar a procura em volteios tentando se fazer notar até que os pais resolvem o acordo de casamento.
Mulher casada precisa ser educada pelo marido. E como o marido é propriedade do patrão, a mulher é propriedade do marido. A educação da esposa para se fazer a mulher que satisfaz o homem de boca e sexo é responsabilidade do marido. Função que Baltazar exerce com a violência característica das relações sociais em que vive: de forma animalesca, com posses violentas e com porradas e maus tratos.
Acontece que Ermosinda é formosa. Seu nome de batismo já o diz, é “hermosa” (bela em espanhol) e também beleza única naqueles ermos. Uma beleza tal não passaria desapercebida pelo Senhor Afonso, que autorizando o casamento, também determina que Ermosinda prestará serviços na casa grande. Serviços que incluem, obviamente, prestações sexuais. A formosa Ermosinda se tornará uma dentre as “mucamas” da casa de que se serve pelos cantos o Senhor Afonso, desleixado da mulher Catarina de peitos caídos e gorduras amplas.
Este não é um triângulo amoroso qualquer, tão imortalizado pelos românticos. Isto porque a obediência ao patrão e seus desejos está na ordem da natureza das coisas. Não se trata de conquista amorosa, mas de posse e propriedade.
A dúvida certeza de Baltazar de que é corno perpassa toda a educação de Ermosinda! E todo sofrimento que redundará no remorso do marido que pensa seguir o modelo do pai que matara sua mãe por desconfiança de gravidez que não fosse o pai a deixa-la prenhe. Decidido a educar mas incapaz do gesto de matar, Baltazar sofre e ama ao mesmo tempo. É violento e amoroso.
A trama inclui a presença de Gertrudes, velha mulher viúva que a comunidade condena à queima por bruxa. Esta buscará abrigo e amizade precisamente na família dos sargas, a mais vilipendiada entre quantos servos são de um mesmo senhor. Terá presença marcante no enredo: foge na carroça em que Baltazar leva seu irmão Aldegundes para o palácio del-rei para lá o irmão exercer o dom que recebeu de ser artista, pendor que se revelou depois do assassinato da mãe que ele busca no meio dos anjos nos céus.
Gertrudes é abandonada pelos irmãos no meio do caminho. Acabam sendo amaldiçoados pelo feitiço de estarem sempre a queimar de calor. Outra bruxa, por uma moeda de prata, lhes dá uma saída: deveriam manter sempre a mão dentro de um cântaro com água da chuva num tempo de estiagem.
Reencontram-se os irmãos com a bruxa Gertrudes em pleno palácio do rei. E sofrem novo castigo imposto pela mulher-bruxa: Aldegundes, Dagoberto (baixinho que testará o feitiço para saber se era transmissível) e Baltazar tonam-se três num só. Se se distanciassem, morreriam todos de calor. Juntos sobreviveriam. E a história, a partir daí, reúne três personagens distintos de alma e dependentes de corpo um do outro. Reunidos num “só corpo” a sensibilidade da arte (Aldegundes), a ingenuidade e boa fé (Dagoberto) e a violência masculina (Baltazar).
Assim reunidos voltam para as terras do Senhor Afonso, onde ficara Ermosinda servindo ao senhor ausente de marido. Causam danos ao ambiente e a quem se aproxima. São expulsos pelo pai para que, sendo coisas do mal, vivessem longe de todos. A sarga, a vaca, abre-lhes caminho e os leva a lugar ermo onde passam a viver os três com as regras que estabeleceram entre si parra sobreviverem ao calor que os queimaria separados.
Ermosinda, tão surrada, já de pé torto, braço destroncado, outro braço morto de movimento, sem um olho, tudo parte da educação que lhe dava o marido, segue-os de longe e se faz presente no abrigo que eles haviam construído. Torna-se a mulher para as premências sexuais dos três homens, confirmando Baltazar Serapião como cornudo até que este decide: mata-os a porradas.
O enredo está dado, sem seus detalhes. Mas o que importa do dito é o dizer. O autor inova a língua, desobedece sintaxe e pontuação. Os diálogos entre as personagens se dão no entremeio das reflexões do narrador. As metáforas são simplesmente desconcertantes e obrigam ao leitor uma pausa para deglutir o novo que significa mais do que antes a palavra poderia querer dizer. Uma amostra destas paradas:
“… que o calor nos matará em pouco tempo assim acorde e nos sinta nada ali,…”
“… só de se amedrontar por escolha de trabalho alternativo, já varas lhe tremiam as pernas…”
“Estávamos quietos em nossas vidas, como assumidos por rotinas pequenas, descabidos de alma ou não, éramos todos muito iguais em sortes, nenhumas.”
“… ali ninguém nos existia.”
“… nada que desaparecesse normal.”
Para se ter um gosto da prosa, eis três passagens das muitas que poderiam ser encontradas a cada página. Estas foram escolhidas, as duas primeiras, em função de seus temas, a visão machista do feminino, permanente denúncia no romance, e o remorso inexistente e, no entanto, constante de Baltazar e a terceira para mostrar a estrutura sintática do diálogo intermediado pela reflexão do narrador:
(1) “as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus, não é heresia, pensa bem, se se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam. Precisam de nos parecer sem alcançar igualdade, que para isso estamos cá nós, e depois, beleza assim até aumentada, o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem perfeitamente para nos multiplicar e nos agradar.”
(2) “sim, poderia sentir remorso pela competência tão apurada usada na educação da minha mulher. por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno. poderia sentir remorso por essa bondade de, a cada momento, a ir buscar à razão, a fazer ver as coisas mais corretas da criação, pra a ajudar a encontrar o seu lugar mais humano. poderia remorso naquele instante, perante a minha ermosinda tão diferente, que muito mais descansada estaria do corpo se eu me houvesse desleixado nos bons trabalhos de ser seu marido. aceitei o seu silêncio e compreendi que seria melhor assim.”
(3) “… se mo perguntas to direi, mais marido tivesse mais o enterrava. e isso porquê. Porque me deram todos dores de mau grado, coisa de me terem desrespeito e ódio, postos em mim como bichos a toda a hora. e tu com isso mulher, homem de verdade consome-se de carnes, é normal .nada normal para mim que recuso ser de homem, nada quero que homem algum me toque. e porque te casaste. sempre fui casada por pais ou homens que me mandassem, mulher solteira é má de vida e fica sem trabalho nem amizades. pois mulher minha apanha tanto quanto deve, até que se ensine tudo o que lhe digo. mal lhe dá que te queira, se te deixasse seria mais feliz. que sabe tu disso, se lhe dou corretivo e me ama acima dos erros que comete. acreditas nisso. Acredito ….”
walter hugo mãe inventa sintaxe própria, desconhece pontuações marcadoras, manda as letras maiúsculas para além texto, e recria um fluxo de fala que encanta e exige paradas: pausas de reflexão enquanto o enredo vai incomodando não por si, mas pelo que desvela do medo e paixão que ligam o homem à mulher que por força quer conduzir sabendo que corretivos aplicados representam muito mais o fracasso na batalha numa relação que, nos tempos e nos espaços sociais vividos, eram impossíveis de igualdade.
por João Wanderley Geraldi | jan 27, 2017 | Blog
Tenho muitos amigos em Minas. Mas hoje, ao reiniciar estas crônicas e comentários, relembro duas delas e de suas reações evidentemente muito mais verbais do que reais. A primeira, especialista em alfabetização, me contou que foi chamada ao MEC, no começo do governo Collor, para conversar com a Secretária de Educação Básica do país, cujas credenciais maiores eram ter sido a alfabetizadora dos filhos de Collor. Depois de um chá de cadeira de duas horas, a Secretária se dignou a recebê-la e deu-lhe uma informação fantástica: o problema do ensino básico era o insucesso do processo de alfabetização, provocando a repetência em torno de 48% dos alunos. Pois ela disse: tudo será resolvido. Se o problema era este, agora vamos alfabetizar na pré-escola e tudo estará resolvido. Minha amiga saiu do MEC com a seguinte decisão: aposentar o Brasil durante aquele governo (então previsto para cinco anos).
A segunda amiga que recordo aqui toma uma decisão mais radical ainda. Depois da ascensão de Temer à presidência, elevado por um golpe parlamentar para a instauração do regime policial-judiciário, instalação que estamos assistindo diuturnamente, ela resolveu ligar o seu foda-se.
Pois segui eu os mesmos propósitos durante os últimos 45 dias! Liguei o meu, e aposentei o Brasil dentro dos limites do quase impossível. Tirei férias de mim mesmo porque vivo e respiro do que acontece nesta mania de refletir sobre os fatos, quando tudo o que se quer do brasileiro é que escute o JN e nele acredite; depois que se divirta com o pior reality show do mundo. Obviamente, estando ligado o meu e aposentado o que acontece, não segui o figurino previsto pela grande mídia. Só me ausentei de tudo, inclusive dos blogs e das notícias mais sensatas que circulam pela internet – fiquei sem conexão! E me dediquei por 15 dias a “babar” minhas netas Sophia e Laura! Depois que se foram para a Dinamarca, debrucei-me sobre livros de literatura. Virão desta atividades alguns registros destas leituras agradáveis.
Mas existe uma coisa insuportável: um tal de G3 instalado no telefone celular de minha mulher! E aí não pude deixar de saber algumas coisas do que vinha acontecendo:
- A rebelião nos presídios, rebeliões que nunca se tornam revolta do lado de fora dos muros levando os futuros presidiários a exigirem outra estrutura social que não seja aquela clássica distinção entre casa-grande e senzala, tão ao gosto dos atrasados ideólogos neoliberais brasileiros.
- Não deixei de ouvir o relato do xingamento que fez ao nosso ministro da fazenda, o Sr. Henrique Meirelles a presidente do FMI, Lafarge: esta história de ajuste fiscal para enriquecer os ricos é o inverso do que prega hoje o FMI, que defende para o Brasil um caminho do qual o governo do golpe quer se afastar quilometricamente: o combate à desigualdade social.
- Fiquei sabendo o desastre de avião em que morreu Teori Zavascki, aquele ministro do STF que sentou sobre o processo de pedido de afastamento do Dep. Eduardo Cunha, formulado pelo Procurador Geral da República, durante o período de dezembro/2015 a maio/2016 para somente deliberar depois que o deputado entregou o serviço prometido aos golpistas do judiciário: a aprovação da abertura de processo de impeachment. Cumprida a tarefa, o execrável companheiro de golpe se tornou desnecessário: Teori afastou a pedra do caminho de Temer e outros envergonhados. Pois agora o relator da Lava Jato morreu e se tornou um santo senhor! É uma tristeza que já tenha morrido o papa João Paulo II, pois se vivo a direita brasileira iniciaria o processo de canonização do falecido ministro, e a Globo encontraria imediatamente dois milagres a ele atribuídos para que logo o dito fosse para os altares eclesiais, pois nos altares da mídia ele já está. Com o papa Francisco, não dá pé!
- Depois de insuflar na população a ideia de que o avião caiu por ação de “forças ocultas”, com vontade imensa de atribuir o feito ao condenado mor do país, o condenado de que não se encontram os crimes, somente fortes convicções, vazam as gravações e Lula se livrou de mais uma tão desejada acusação!
- Por acaso, TV ligada na casa da cunhada, vejo Michel Temer fazer declaração formal sobre as matanças em Manaus. A seu lado, uma figura sinistra e fantasmagórica, um “pau de dois” ali presente não se sabe a razão! Como não se tratava de assunto de relações internacionais, acho que aproveitaram a ocasião para mostrarem José Serra na TV para desmentir boatos de que estava internado, já que está fora da casinha há um bom tempo (mas continua ministro para ajudar a destruir a nação).
- Por fim, me procura o cuidador da casa na serra gaúcha. Me pede explicações: por que separar na cadeia as duas facções? Afinal, não era melhor deixarem juntos para que se matassem todos entre si nos livrando de tantos criminosos! Não poderia pensar o cuidador de forma diferente, se escuta diariamente nossa lídima imprensa fascista, que grita alto e bom som que bandido bom é bandido morto!
E então eu comecei a cair na real… o fascismo já está incrustrado no pensamento dos pobres brasileiros. Falta-nos apenas um Hitler que os congregue a todos: do empresário da FIESP, recolhendo coxinhas pelo caminho, à população de carteira assinada. Ficarão de fora, talvez, os traficantes e os desempregados, categorias descartáveis nos futuros campos de concentração ou afogadas num novo rio da Guarda (que oportunidade teriam hoje Carlos Lacerda ou Plínio Salgado!).
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