Enquanto isso

Enquanto o jogo de cena entre Gilmar e Janot ia acontecendo, um dizendo querer freios para a Lava Jato e outro defendendo os procuradores argumentando ilogicamente que ninguém vaza o que não tem, como se a gente não soubesse que os procuradores têm o que vazaram da não-denúncia contra Toffoli – que entrou de gaiato (ou se ofereceu?) para outros objetivos – Janot tomou as providências de que lhe incumbiram:

  1. Suspensão da delação de Leo Pinheiro que, todos sabem, comprometeria José Serra e Geraldo Alkmin. Isso não pode, logo como “castigo” pelo vazamento atribuído aos advogados da OAS – que para Janot agem contra os interesses que defendem no campo jurídico! Ora, tudo o que se precisava era de algum factoide que desse a Janot este ar de justiceiro de que gostam de pousar os procuradores e seu chefe na Lava Jato. Os outros vazamentos nem sequer mereceram de Janot um pedido mínimo de investigação!
  2. Pede o arquivamento de um dos processos contra Edison Lobão, o ex-ministro de Minas e Energia, cuja “confiabilidade” foi devidamente paga no passado e agora é paga com arquivamento de processos. Ninguém notou. Vagarosamente, as investigações contra próceres do PMDB desaparecerão e irão para o arquivo sem que Janot receba a mesma alcunha de outro procurador geral, Gerado Brindeiro, que ficou conhecido como “engavetador geral da repúlica”.

Enquanto as testemunhas de defesa de Dilma Rousseff depunham no Senado, com um painel registrando a presença de 78 senadores, apenas vinte e poucos deles ocupavam suas cadeiras às 20,30 horas. Os demais nem sequer estavam nos corredores! Para que ouvir testemunhas e análises dos supostos crimes que até Joaquim Barbosa, o magistrado supremo da direita a que há pouco tempo tantos incensavam diz que não há crime! Ora, o voto destes senadores-juízes já foi apalavreado com Michel Temer, já houve distribuição de cargos, e outros virão. Logo, para que saber que não há crime se a condenação já está decidida? Nada mudará no placar! As compras já foram feitas; senadores como Cristovam Buarque já mancharam suas biografias, aliás desde que se alistou num partido sucursal da direita, aqueles que sendo de direita têm vergonha de dizê-lo abertamente e vão para o PPS.

Enquanto Dilma fala no Senado, Serra e Michel Temer torpedeiam os BRICS. A China estrila, mas com o golpe já se sabe que os BRICS vão dançar e que a geopolítica norte-americana sairá definitivamente vitoriosa e para que um grupo de países volte a reagir tentando alguma independência teremos um século de tempo mesmo nesta era da rapidez das informações. Tudo fica vagaroso quando se trata de alterar o sistema de exploração do mundo por 200 grandes empresas transnacionais que se ramificam em diversas atividades, incluindo obviamente a financeira. Vão desde o controle de sementes até o controle dos juros e das rendas.

Enquanto reagem lutadores pela democracia, quantitativamente cada vez em menor número, Aécio Nécio, segundo a bela definição de Ricardo Lewandowski, cala-se e esconde-se esperando que o esqueçam por um tempo, porque foi ameaçado de ser o boi de piranha que a direita entregaria à sanha de justiça dos “coxinhas” ludibriados e a Lava Jato passaria por não partidária. Não entregarão a eles sequer Eduardo Cunha.

Enquanto o inefável procurador Dallagnol dá entrevista a Jô Soares defendendo que provas obtidas de forma ilícita podem ser usadas desde que tenha havido boa fé (um excelente exemplo de boa fé é trancafiar por meses a fio investigados até que eles aceitem fazer delações ou confessem qualquer coisa que delegados e procuradores queiram ouvir), prepara-se um golpe estupendo para retornarmos aos tempos inquisitoriais, em que o uso de boa fé – baseado na fé absoluta em Deus – permitiu a torquemadas a torto e a direito executarem todos que lhes caíam nas garras e nas antipatias. Sempre tivemos situações em que havia legitimidade, mas não legalidade; agora teremos as situações em que há ilicitude, ilegalidade, mas validade legal!!! Um contrassenso, um absurdo que Jô Soares, com toda sua cultura, engole feliz e satisfeito. Culto, mas péssimo entrevistador – ou ele entrevista a si mesmo diante do convidado, ou ele regorjeia de alegria quando ouve o que quer dizer e não tem peito de dizer, como foi o caso do nosso profeta Neemias nacional ressuscitado no corpo do procurador Dallagnol.

Enquanto isso tudo… a vaca vai pro brejo. 

E domingo: poesia e reflexão

 

POESIA

 

Diadia

Levantar bem cedo

e surpreender as palavras

antes que vistam

seu hábito.

Dormir bem tarde

e deixar – cansado –

que as palavras

me dispam

o costume.

(Jefferson Vasques. Nada com um dia após o outro)

 

REFLEXÃO

 

Não é de uma vez que se morre…

Todas as horas são horas extremas!

(Mário Quintana. Versos finais de “Pequeno Poema Didático)

 

ALFABETIZAÇÕES COTIDIANAS As letras da cidade e a cidade das letras(1)

ALFABETIZAÇÕES COTIDIANAS

As letras da cidade e a cidade das letras(1)

João Wanderley Geraldi

Unicamp

“Toda tentativa de rebater, desafiar ou vencer a imposição da escritura, passa obrigatoriamente por ela. Poder-se-ia dizer que a escritura termina absorvendo toda a liberdade humana, porque só no seu campo se desenrola a batalha de novos setores que disputam posições de poder.”(Angel Rama, 1985)

Vigotsky inicia sua “Teoria das Emoções” lembrando a expressão de J.W.Goethe: “certas idéias amadurecem em determinadas épocas à semelhança dos frutos que caem simultaneamente em distintos hortos”. Neste texto recolho algumas destas idéias, frutas de nossa época, sem qualquer pretensão de fazer uma colheita minuciosa e agricolamente ciosa de não perder o que a terra dá. Ao contrário, procurarei esparsos frutos de ditos e escritos, sem suficiente fidelidade, orientado apenas pela fome de encontrar âncoras em tempos tão sombrios, quando ideais se diluem e nos sobram somente gestos travados, gritos brecados e ilusões perdidas.

Será que podemos ainda cantar os mesmos cantos?

Elogio do Aprendizado

Aprende o que é mais simples! Para aqueles

cujo momento chegou,

nunca é tarde demais.

Aprende o ABC: não basta, mas

aprende-o! Não desanimes!

Tens de assumir o comando!

Aprende, homem no refúgio!

Aprende, homem na prisão!

Mulher na cozinha, aprende!

Aprende, sexagenário!

Tens de assumir o comando!

Procura a escola, tu que não tens casa!

Cobre-te de saber, tu que tens frio!

Tu, que tens fome, agarra o livro: é uma arma!

Tens de assumir o comando!

Não tenhas medo de fazer perguntas:

não te deixes levar por convencido

vê com teus próprios olhos!

O que não saber por experiência própria,

a bem dizer, não sabes.

Tira a prova da conta:

és tu quem vai pagar!

Aponta o dedo sobre cada item,

Pergunta: como foi para aí?

Tens de assumir o comando!

                    (Bertolt Brecht)

1. Alfabeto e alfabetização

Sem uma arqueologia segura que garanta como se deu a emergência da linguagem e da escrita, estes produtos do trabalho humano, talvez possamos ainda acreditar que as necessidades de sobrevivência – afinal não nascemos adultos, autônomos e suficientes por obra externa a nós próprios – aglutinaram os homens que necessariamente se co-orientaram em seus fazeres, em sua caça.

“Numa caça na savana alta, um caçador indica com seu gesto a um outro caçador, que está impedido de ver, onde está uma presa(2). O primeiro caçador está transformando a sua percepção num processo motriz-operativo: o de indicar com a sua mão. A estrutura desta operação deve ser construída de modo que resulte numa percepção semelhante no e para o segundo caçador. Deve, então, ser construída uma analogia entre o gesto próprio e a sua percepção pelo outro caçador para que disto resulte uma comunicação realizada. Neste contexto, o gesto torna-se um meio importantíssimo para realizar distâncias simbolicamente. O primeiro caçador olha o animal e em vez de correr para matá-lo, faz um gesto transformando o seu ato de percepção numa operação motora, criando assim uma distância entre si e o animal. O caçador não vê o animal apenas como caçador solitário, mas ele o vê com os olhos dos outros que não o vêem e para os quais ele indica o animal neste trabalho colaborativo de caça. Em outras palavras, o caçador vê um objeto (o animal) como um objeto, nos seus aspectos objetivos, mas a operação de indicar o animal está separada da ‘objectualidade’ do animal, no entanto necessário para a emergência do gesto que indica para o outro este objeto para ele invisível. Em conseqüência, a base da objetivação não está só no objeto em si, no nosso caso a presa desejada, mas essencialmente nas relações com as outras pessoas nesta atividade comum e conjunta de caça. Com exceção do homem, os demais animais são incapazes tanto de realizar uma distância simbólica quanto de estabelecer uma relação mediada por signos ou instrumentos.” (Benites, M. Fichtner, B e Geraldi, J.W. 2005, incluindo nota de rodapé; no prelo).

Estamos longe e próximos destes gestos: as representações sígnicas das objectualidades (concretas ou não), uma vez presentes na história, nela continuam. E certamente ganham asas: não falamos para representar o existente, criamos com a fala o antes inexistente. Contamos a nós mesmos com palavras. Somos nossas palavras. Mas se a nossos gestos associamos palavras e se as palavras, com freqüência, fizeram esquecer o corpo que fala e gesticula, ainda assim, à toda estranheza, retornamos a estes momentos da fala corporal: olhar, tocar, olhar-se e tocar-se.

Dentre os gestos que naturalizamos e esquecemos que gestos sejam, adquire importância capital o escrever: um modo de fazer com as mãos uma representação do que já era signo. Na história, foram inúmeras as tentativas deste gesto, mas em todas predominaram as características das necessidades que o fizeram surgir: a interlocução à distância no tempo e no espaço exigiu da escrita uma qualidade de ‘fixidez’. E os artefatos criados para tal ora seguiram o caminho de tentar dar corpo fixo à fluidez dos sentidos (as escritas ideográficas, por exemplo) ou à fluidez da oralidade (todas as escritas alfabéticas).

Podemos formular uma distinção operacional para refletir sobre o trabalho de construção destas possibilidades de escrita. Todo novo invento que a tecnologia nos coloca à disposição vem marcado por sua época, por uma assinatura e por uma data de nascimento. A estes produtos do fazer e conhecer humanos, chamemos de ‘tecnologia’. Mas há outros muitos inventos do trabalho da humanidade, mas seus nascimentos e assinaturas são coletivos, são históricos. Chamemos a estes produtos de artefatos. O alfabeto é um artefato, e como todo o artefato vai perdendo sua artificialidade e vai sendo naturalizado, incorporado e encorpado. No que se refere à escrita, isto está tão naturalizado para os já alfabetizados que eles ao falarem da escola, depois de alguns anos de escolarização, se perguntados sobre o que aprenderam na escola acabam esquecendo que aprenderam a lidar com a escrita (e dê-se à expressão ‘lidar com a escrita’ os mais variados sentidos que  possa ter). 

O desenvolvimento histórico deste artefato não se deu de forma linear nem isolada nas diversas culturas: as conquistas de um povo acabaram sendo compartilhadas com outros povos. Da escrita cuneiforme à escrita silábica e desta à escrita fonológica e ao alfabeto fonético, fomos, em certo sentido, cada vez nos aproximando mais das possibilidades ‘técnicas’ de o artefato servir para registrar a oralidade. O que estou querendo dizer aqui é que a escrita, em termos do alfabeto disponível, pode funcionar quase como um ‘registro magnético’ sem voz!   E, no entanto, quanta diferença. Saber como estas diferenças foram construídas é aprender com o alfabeto o que quer dizer ‘alfabetização’.

Antes de tudo: a escrita atende a necessidades diferentes da oralidade. Se a interlocução à distância obriga a fixar o dizível sobre alguma superfície, a ausência daquele a quem a escrita se destina obriga o locutor a esta viagem constante ao lugar do outro, para deixar na superfície onde seus gestos de escrita se fazem o máximo ou o mínimo, dependendo das circunstâncias, de pistas para compartilhar sentidos. Esta presença ausente do outro certamente é responsável por inúmeras das diferenças que os mundos da oralidade e da escrita acabaram por produzir.

Talvez ela nos ofereça uma pista para compreender a alfabetização. Por que ela se torna necessária? Somente pela inegável arbitrariedade da representação escrita? Afinal, um som como ‘a’ tem representações inúmeras, e representações todas convencionais. Nada obriga a que aquilo que articulamos como ‘a’ seja representado pelos desenhos convencionais com que operamos. Esta convenção, mesmo numa escrita alfabética, já impõe um processo de aquisição diferente daquele da oralidade. É preciso entrar para a convenção, o que implica necessária compartilha dos mesmos ‘objetos’, as letras(3).

Esta característica impõe a aprendizagem das convenções (e também das formas de suas destruições, para retornar a Angel Rama). E a aprendizagem supõe uma ação do aprendiz, um movimento de busca do não sabido. Entre o desconhecido a conhecer e este movimento de conhecer há inúmeras mediações. Alfabetizar é mediar este processo. Alfabetizar-se é entrar para o mundo da escrita.

“Aprender a ler não corresponde simplesmente à aquisição de um novo código ou muito menos ao simples desenvolvimento de um tipo de percepção através do acréscimo de uma nova habilidade. Aprender a ler é, também, ter acesso a um mundo distinto daquele em que a oralidade se instala e organiza: o mundo da escrita que […] não é o simples registro das manifestações orais, já que ele institui, para os falantes de uma mesma comunidade, territórios privilegiados, muitas vezes ocultos sob a forma de enigmas, documentos esotéricos, a cujo acesso a alfabetização pode se constituir numa espécie de iniciação.” (Osakabe, 1982:149).

Eis nos diante de um outro mundo: o alfabeto, criado para representar a oralidade, tecnicamente capaz de cumprir este papel, já não mais tem relação com a oralidade, faz-se ao largo da oralidade. Estar no mundo da escrita é estar também em outro mundo. E quantos mundos há neste mundo?

2. As letras da cidade

Um destes mundos é aquele constituído pelas letras da cidade, mundo extremamente polifônico, por onde a escrita circula naturalizada e não sem alguma poluição visual. Em sociedades letradas, há escritos por toda parte. Mover-se pela cidade implica também ler algumas destas ‘letras’, mas também estar cegos para inúmeras outras, sob pena de alienarmo-nos como consumidores ao que nos é oferecido. Nossas táticas de sobrevivência (Certeau, 1994) nos tornam usuários destas letras.

Não raras vezes, as defesas das ‘alfabetizações cotidianas’, por força da retórica de defesa do aprendiz, dos seus saberes, dos seus vividos, acabam sendo confinadas ao domínio escolar ou escolarizado destas letras da cidade. No entanto, nada está mais longe das letras da cidade do que as alfabetizações cotidianas. Assim interpretadas, elas não passariam de uma facilitação (dês)cortês. Com esta expressão estou querendo chamar a atenção para:

  1. a utilização escolar do sabido e dos saberes resultantes do vivido não são um mero expediente didático de facilitação da aprendizagem das convenções da escrita;
  2. se assim entendida, não tem o menor interesse em ultrapassar a descortesia do corte que as desigualdades sociais produziram: tratar-se-ia então de formar ‘consumidores’ das letras já disponíveis e tornadas públicas, quando o que se aponta com as alfabetizações cotidianas é a possibilidade de responder a estas letras domesticadoras;
  3. ler o cotidiano é aprender a ‘misturar todas aquelas letras’ (Sampaio, 2003), para com elas produzir o discurso que não circula no mundo da escrita porque este foi tomado pela cidade das letras.

– Por que é bom pra uma pessoa ter família? Pai, mãe, na sua cabecinha?      

– [silêncio]

– Que é que você acha?

– O que eu acho?

– Claro, você é um menino, tem opinião, não tem?

– Tenho.

– Isso.

– Mas essa opinião não está circulando.

(do diálogo sobre família entre uma pesquisadora e um menino de rua. Machado, 2003:103-104).

Pensar uma alfabetização com o cotidiano é tentar descobrir e abrir-se para aceitar histórias contidas e não contadas, opiniões e sonhos abortados pela desigualdade, tendo o cuidado de não confundir desigualdade com diferença (Geraldi, 2003).

 

“1)Morada é um tipo de abrigo, não só para nós mas também para os animais. Alias todos nós precisamos de uma moradia (Gilda)

2) É o lugar onde a gente mora, ou seja onde nascemos e crescemos. Uma casa tem que ser de amor (André e Welington)

3) É o lugar onde vivemos, compartilhamos tudo que sentimos, por isso é importante todo mundo ter uma, mas como existem muitos problemas, muitas pessoas não tem onde morar e moram em baixo da ponte e viadutos. Existem muitos casos como este, são obrigadas a morar na rua, a roubar e até também matar para não passarem fome. Estas são nossas palavras sobre o assunto (Cirlene/Thais)

4) É o lugar onde vivemos e comemos. É muito bom ter uma casa para morar. Tem gente que tem uma casa melhor, mas não tem importância ter uma casa ruim, o importante é ter um lar. As pessoas que moram na rua tem vontade de ter uma casa (Sinomar, José G).” (Alunos de 5a. série, em 1993, respondendo à pergunta do professor: O que é morada para você? Oliveira, 2005)

3. A cidade das letras

Vou retomar os estudos de Angel Rama não pelo resumo de suas considerações sobre as cidades latino-americanas e pelas inúmeras cidades das letras que na história construímos ou ultimamente gostaríamos ter produzido. À cidade ordenada e à cidade escriturária, tão próprias de nossas escolas e dos modos de operar com a língua escrita, vou por em diálogo Angel Rama com uma parte da narrativa de Ismail Kadaré, no romance histórico em que retoma o passado albanês sob domínio do império bizantino. Qualquer semelhança da ‘não-língua’ imposta aos rebeldes não é mera semelhança com a exclusão dos sujeitos falantes e de suas falas em nossa sociedade, onde a cidade das letras continua a ser um anel em torno do poder, a seu serviço e em defesa de privilégios para seus próprios sacerdotes.

“O processo de desnacionalização total ou parcial dos povos, que era a tarefa principal do Arquivo do Estado, se consumava segundo a velha doutrina do “Cra-Cra” e transcorria em cinco fases principais: a primeira, a eliminação material da rebelião; a segunda, a eliminação da idéia de rebelião; a terceira, a erradicação da cultura, da arte e dos costumes; a quarta, a extinção ou mutilação da língua e a quinta, a extinção ou enfraquecimento da memória nacional.

De todas elas, a mais breve era a fase de eliminação física da rebeldia, que não consiste em mais do que a guerra, enquanto que a mais demorada era a eliminação da língua, ou a Não-língua, como era chamada para abreviar.

Em pesadas estantes de bronze se encontravam os expedientes das línguas mortas. Eram grossos, mas a maioria de suas folhas estava borrada com o maior cuidado. As palavras do dicionário, as regras gramaticais e da sintaxe eram apagadas de forma progressiva, segundo seu grau de desuso ou desaparecimento. Ao final eram apagadas as letras do alfabeto, últimos vestígios da língua escrita, depois do que se certificava sua morte completa. Imediatamente depois começava o outro processo, ainda mais demorado e difícil, a eliminação da língua oral, que atravessava várias subfases. Por exemplo, a última e definitiva fase consistia em sufocar a língua em seus últimos redutos: as velhas. Estava comprovado que, de modo geral, a língua vivia mais tempo nas mulheres, sobretudo nas que haviam tido filhos. Mais tarde, quando a língua havia sido apagada da face da terra, chegava um tempo em que diminuía também o número de anciãs que, como as antigas urnas, mantinham as cinzas dos últimos despojos da língua. Elas eram anotadas em registros especiais como “velhas com língua” e submetidas à constante vigilância até sua morte. Depois disso, o processo de liquidação da língua, ou o processo da Não-língua, era tido por consumado.

Toda esta experiência secular se encontrava nos expedientes do Arquivo. Ali estava tudo: os prazos, os imprevistos, as últimas mostras de teimosia, em uma palavra, tudo com exceção da própria língua eliminada. Nos milhares de páginas dos expedientes não se encontrava um só vestígio, uma só palavra, sequer uma sílaba. A supressão absoluta de todos os dados sobre a língua morta se levava a cabo com o objetivo de prevenir toda e qualquer possibilidade de que a língua retornasse.

Durante longo tempo haviam existido duas correntes opostas em relação à conservação ou não do cadáver da língua. Um grupo sustentava que, ao menos num expediente único do Arquivo, uma múmia da língua poderia ser conservada; o outro insistia que a conservação da múmia da língua não era útil para nada e que, além disso, isso deixava em aberto a possibilidade de sua ressurreição. Finalmente triunfou a segunda tendência. Seus adeptos tinham encontrado em velhas crônicas o caso da ressurreição de uma língua, a que os cronistas chamaram, com terror, de “Língua-Cristo”. Os cronistas escreviam que se ignorava como podia ter acontecido de uma língua desaparecida da face da terra há muito tempo ter retornado. Perseguiram as pessoas em quem ela foi encontrada; por fim capturaram-nas quando fugiam pelos pântanos, prenderam-nas em correntes, cortaram-nas em pedaços, mas elas não quiseram ou não tinham condições de contar como a haviam encontrado, a ela, a proscrita. Houve prolongadas investigações no Arquino do Estado, foram revisadas minuciosamente as listas dos funcionários que tinham trabalhado no prédio, as entradas e saídas de todos os empregados, mas não se pôde chegar a nenhuma conclusão. Tudo ficou envolto em mistério. Escreviam os cronistas que havia se dado este fato inexplicável, que fez estremecerem suas carnes durante muito tempo e que quebrou o sossego de seus corpos e de seus espíritos.

Com esta página da crônica em suas mãos, foi fácil para a ala dura triunfar na polêmica.

Pois bem, o expediente das línguas mortas eram escassos e suas datas habitualmente muito distantes. Uma língua morta, inclusive nos tempos de maior florescimento do “Cra-Cra”, era considerada uma vitória absoluta. Mas as coisas haviam mudado muito desde então. Ainda que a doutrina da eliminação das nações tenha permanecido a mesma, muitas de suas disposições não eram aplicadas há muito tempo. Há tempos o Arquivo se conformava com vitórias de menor dimensão que, no entanto, eram consideradas importantes. A realização, inclusive apenas de partes, do processo de Não-língua era considerada um logro extraordinário. Ele se iniciava com a interrupção do desenvolvimento normal de uma língua, com o objetivo de deixá-la esquálida tal como uma criança raquítica; e prosseguia depois com sua mutilação. Em expedientes especiais se encontrava anotada toda a experiência de cerceamento da língua: o coteja anual do vocabulário, onde as palavras iam escasseando como as folhas das árvores no outono; as ruínas gramaticais, a atrofia das partículas, sobretudo dos prefixos, a adiposidade da sintaxe. Lentamente a língua começava a entumecer-se; a assemelhar-se à fala balbuciante. Uma língua assim era praticamente inofensiva, pois, tal como uma mulher sem matriz, perdia a capacidade de gestar relatos e lendas. Quanto muito, poderia dar, de geração em geração, algum testemunho grosseiro de existência, com tão pouca inspiração que dificilmente sobreviveria ao passar dos tempos.

Neste ponto se considerava cumprida uma das fases principais do processo de Não-língua. Em seguida se iniciava a fase seguinte: seu esfriamento ou hibernação. Este era o começo do caos, do delírio, até a língua chegar ao estado de coma, que era também sua agonia. Enquanto folheavam as crônicas primitivas que falavam do delírio das línguas, os jovens e enérgicos funcionários sonhavam com o retorno daqueles tempos de grandes possibilidades. Mas depois de alguns anos de trabalho no Arquivo, eles compreendiam que o envelhecimento de apenas uma língua consumia a vida de gerações inteiras, imagine falar de sua morte. Bendiziam o destino porque o Estado reclamava cada vez menos deles, pois renunciava, em algumas ocasiões, inclusiva à mutilação da língua, conformando-se que os escritores e os trovadores do país submetido abandonassem sua língua e escrevessem no idioma geral do Estado.

No entanto, apesar desta frouxidão, o setor de línguas era o mais duro do Arquivo e seus funcionários continuamente se empenhavam na degradação das culturas nacionais.

Esta era uma secção ampla, com inumeráveis subsecções para arte, as tradições orais, a música, os afrescos, os adereços, as bodas, a arquitetura, os corais, a épica popular, etc, etc. Em seus arquivos poderia se encontrar de tudo, desde a perda das cores da pintura e das vestes, com o empalidecimento do famoso vermelho, o enturvamento do azul até chegar ao azul asiático, e a degeneração de ambas as cores até a cor cinza, que é a cor da raia; o lento esquecimento das canções; o embotamento das danças a ponto de parecer que os dançarinos estavam com os pés amarrados a correntes; a fisionomia e altura dos edifícios; até, sem dúvida alguma, a abolição da escrita.

Era na esfera da desnacionalização das culturas que se davam as mais ásperas polêmicas. Havia velhos conservadores que se negavam a mover uma só vírgula dos preceitos seculares. A semelhança da prática do maldizer o alfabeto de uma língua (cujas regras haviam sido estabelecidas em sombrias cerimônias de quatro séculos atrás), defendiam, por exemplo, a maldição das regras poéticas, da prosa em forma de narração, dos saltos rápidos no bailar das chaminés etc.” (Kadaré, 2001)

 

A cidade das letras, tal como entre nós tem existido, tem produzido sujeitos da ‘não-língua’ mais do que sujeitos prontos a dizerem a sua história, uma outra história. Sempre é possível, no entanto, encontrar nesta mesma cidade, usando também a escrita, aqueles que se contrapõem à cidade das letras para construir uma cidade outra, de outras vozes. Penso que a aposta das alfabetizações cotidianas reside precisamente nisto: não o ‘letrar-se’ para pertencer à sociedade letrada nos níveis que esta prevê para cada segmento social, mas o alfabetizar-se para recuperar na ‘não-língua’ os silêncios, para soltá-los com nós nas gargantas, apesar dos infortúnios impostos pelo pensamento globalizado, este que se pensa único e tem sido capaz de nos roubar qualquer sonho!

 

Expõe a mercadoria!

Sempre que vou

pela cidade deles

atrás de um ganha-pão, alguém me diz

–          Mostra o que trazes contigo,

abre em cima do balcão:

expõe a mercadoria!

–          Conta uma coisa que nos empolgue!

Fala da nossa grandeza!

Descobre nossos secretos anelos!

Indica-nos a saída!

Expõe a mercadoria!

–          Mistura-te conosco

para sobressaíres,

Mostra-te igual a qualquer um de nós

e nós diremos que és o maior!

Nós podemos pagar, temos recursos

e ninguém mais do que nós.

Expõe a mercadoria!

Fica sabendo: nossos preceptores

são aqueles que ensinam o que queremos que ensinado seja!

Manda, enquanto obedeces!

Dura, enquanto nos levas a durar!

Entra no jogo conosco, vamos repartir os ganhos!

Expõe a mercadoria! Sê leal para conosco

expõe a mercadoria!

Quando lhes olho bem os rostos corrompidos,

lá se vai minha fome… (Bertold Brecht)

Nas letras com que acedemos à cidade deles foi possível encontrar o poeta que se contrapõe à mesa posta, não expõe a mercadoria no balcão, para continuar defendendo que ler e escrever émais do que conhecer as letras da cidade, porque resulta de querer uma outra cidade das letras que, por ser de todos, deixa de ser das letras para ser nossa.

Notas

(1) Publicado em Garcia, Regina Leite e Zaccur, Edwiges (orgs). Cotidiano e diferentes saberes. Rio de Janeiro : DP&A/FAPERJ, 2006, p. 59-71.

(2) O etólogo Schaller (1972) analisou a caça conjunta feita por leões e mostrou que existe uma colaboração nas ações destes animais diante de uma presa. Como veremos na seqüência de nossa análise, esta colaboração resulta da construção conjunta do trabalho humano e implica a existência de comunicação, o que não ocorre entre os leões. Acontece que na caça todos estes animais são ‘coordenados’ por um elemento externo a eles próprios, a presa. Se um leão não está vendo a presa, não há qualquer comunicação possível feita por outro leão que a está vendo para com isso indicar ações possíveis ao leão que não vê a presa. Claro está que o fator principal entre os leões não é a visão, mas o olfato. Como carnívoros, são guiados pelo olfato, que demanda a presença da presa. Mas o ataque conjunto à presa exige o concurso do olfato e da visão. E não há possibilidade de indicações de lugar ocupado pela presa para um outro leão que não a está vendo, embora a esteja sentindo presente pelo olfato. Não há, portanto, qualquer processo de objetivação, de subjetivação e de comunicação entre os leões.

(3) Estou ciente da dificuldade da noção de convenção. No sentido de arbitrariedade, ela também existe em todo e qualquer signo oral (lembremos Saussure). Com o conceito de convenção, creio que podemos ir além da arbitrariedade: enquanto que com palavras podemos negociar sentidos, as formas canônicas de desenho das letras, ainda que muitos desenhos para uma mesma letra, não são negociáveis entre os interlocutores, exceto quando estão construindo um alfabeto próprio, ao estilo de um código: mas este já não é linguagem escrita no sentido comum que lhe damos, para tornar-se um modo secreto de comunhão de alguns e exclusão de todos os demais.

 

Referências bibliográficas

Benites, Maria, Bernard Fichtner e J. W. Geraldi. Transgressões convergentes. Campinas: Mercado de Letras, 2005. (no prelo)

Brecht, Bertolt. Poemas e canções. Seleção e tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1966.

Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. As artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

Geraldi, J. W. “A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética”. In. Freitas, Maira Teresa e outras (org) Ciências Humanas e pesquisa – Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.

Kadaré, Ismail. El nicho de la vergüenza. Madri: Alianza Editorial, 2001.

Machado, Rosa Helena Blanco. Vozes e silêncios de meninos de rua – O que os meninos de rua pensam sobre as nossas instituições. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Osakabe, Haquira. “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita” in. Regina Zilberman (org). Leitura em crise na escola – As alternativas do professor. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1982.

Oliveira, José Antônio. Trabalho pedagógico e formação continuada: trajeto de constituição do sujeito professor nas tensões de experiências (re)visitadas. Dissertação de mestrado, Campinas: FE/Unicamp: 2005 (versão provisória, em elaboração).

Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Sampaio, Carmen D. S. Sanches. Aprendi a ler (…) quando eu misturei todas aquelas letras ali. Tese de doutoramento, Campinas: FE/Unicamp, 2003.

Vigotsky, Lev. Teoria de las emociones. Estúdio histórico-psicológico. Madri: Ediciones Akal, 2004.

   

MICHEL TEMER, O ELEFANTE AJAEZADO

A semana que ora finda foi extremamente rica em acontecimentos que definirão o futuro breve a que nos submeterá o novo regime que se efetivará depois da encenação do Senado na condenação sem crime de uma presidenta para retirar o adjetivo “interino” que se segue ao nome de Michel Temer, para que se torne simplesmente “presidente”. E viaje tranquilo para o encontro do G-20, ainda que saiba de seu isolamento internacional que ficou óbvio na abertura das Olimpíadas: dentro os poucos chefes de Estado ou de Governo presentes, nenhum quis confraternizar com Temer em seu “camarote vip”, que ficou lotado apenas por seus acólitos.

Sempre ouvi a expressão “elefante ajaezado”, isto é, cheio de panos coloridos e penduricalhos dourados. Tudo para chamar atenção do distinto público que acorreu ao circo. Pois tirada a interinidade, Michel Temer se torna um presidente ajaezado. Os holofotes o iluminarão e enquanto assistiremos ao espetáculo que se desenrola no picadeiro da política pequena do toma lá dá cá neste circo a que fomos reduzidos a viver, sob a barraca os agentes de segurança do regime atuarão com liberdade, sem coreografias, para atingir as metas para as quais toda a encenação foi montada.

Trata-se de fazer com pressa tudo o que for necessário para que nada fique para trás: vender o patrimônio que nos restou num novo ciclo de privataria, não sem as benesses próprias e privadas das negociações e vendas realizadas; reforma da previdência que governo e imprensa insistem em afirmar que é deficitária, sempre escondendo que toda a arrecadação que por lei se destinaria a ela é desviada para outros fins; a reforma trabalhista que introduzirá o princípio de que todo o negociado é superior ao legislado, de modo que o Estado declinará de uma de suas funções básicas desde sempre, o de mediador das relações sociais e no caso das relações entre capital e trabalho; decretar o fim do aumento real do salário mínimo (e abusivo segundo a expressão do guru neoliberal Mendonça de Barros, ex-ministro de FHC) que muito mais do que o Bolsa Família trouxe para as benesses do consumo uma população que deles esteve sempre alijada; aumentar o nível do desemprego, como apregoou o mesmo ex-ministro, para retirar do mercado de trabalho esta pressão inadequada por salários mais elevados em prejuízo dos lucros do capital (lembrem-se, Temer já disse que é preciso cuidar dos lucros porque houve recentemente excesso de cuidados com as rendas do trabalho); manter a política de rentabilidade elevada, através dos juros mais altos do planeta, para o capitalismo financeiro, política que desestimula qualquer investimento em outras atividades porque nenhuma delas produz resultados tão satisfatórios quanto à renda sem incômodo das aplicações financeiras. Isto não é tudo, mas é muito coisa para pouco tempo. Por isso , há de haver pressa e há necessidade de brilhos no picadeiro para desviar as atenções do distinto público.

Enquanto assistimos ao espetáculo que se iniciou na interinidade, os acontecimentos vão se dando e para quem liga uma notícia a outra, a compreensão vai se aprofundando e a percepção de que o poço que cavarão será profundo vai engasgando a todos. Obviamente, as notícias não são articuladas e uma não faz referência a outra para que esta compreensão não ocorra, porque não compreender os fatos é tudo o que deseja a imprensa comprometida com os mesmos objetivos dos “agentes de segurança” do novo regime jurídico-policial em que estamos vivendo. E esta semana foi rica destas notícias esparsas mas articuláveis entre si. Vamos a apenas quatro delas:

1. Domingo, dia 21/8, a imprensa noticia que levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas mostra que os salários percebidos por juízes e procuradores vão muito além do teto legal. E que suas remunerações são superiores àquelas pagas para as mesmas funções até mesmo na matriz do império, os EEUU. Todos já sabíamos disso, mas a grande imprensa sempre se calou. Pois agora noticiou. Na segunda-feira Gilmar Mentes, o magistrado do STF nas horas de folga que lhe permite a militância no PSDB, repercute a afirmação de Romero Jucá, o articulador político de Michel Temer no Senado de que era preciso “estancar a sangria” da Lava Jato – lembremos as esquecidas gravações de Sérgio Machado -, declarando que “é preciso colocar freios na Lava Jato”. Note-se que a metáfora provém do mundo das fazendas e da pecuária. Gilmar Mentes é proprietário de fazenda. E pasmem: no mesmo embrulho da afirmação, aparece como justificativa ilógica e incoerente os salários de juízes e procuradores, considerados por ele como “um modelo de gambiarras institucionais”. Obviamente entre a notícia de domingo e a ação de Mentes na segunda não há qualquer articulação… Afinal a imprensa e os porta-vozes do regime não há qualquer vínculo.

2. Enquanto Michel Temer, todo ajaezado, bajula senadores no Palácio do Planalto, apontando para a possível criação de um novo ministério da desburocratização – como já houve no governo FHC – e logo se dirige a um senador específico (seria o futuro ministro?) – sempre preocupado em aumentar o placar dos votos a favor do impeachment em troca de alguma benesse (lembrem que o voto do Romário valeu uma indicação para a diretoria de Furnas), Eduardo Cunha manda dizer-lhe que não admite ser cassado. Então, sob a lona do circo, o advogado de Eduardo Cunha é nomeado para assessor do Gabinete Civil, órgão por que passam todas as sinecuras do poder! Temer teme Eduardo Cunha. E sabe que o custo do seu silêncio será bem menor do que o custo da compra de votos na Câmara de Deputados. Há um prazo razoável para as negociações, pois o distinto público estará ocupado em digerir o fim do mandato da presidenta eleita pela maioria dos eleitores. Cargos – e alguma coisinha por fora – são mais baratos do que a compra do silêncio de Eduardo Cunha, que sabe o valor do dinheiro e o que ele pode comprar. Entre a nomeação do advogado de Cunha para o lugar estratégico das nomeações e a bajulação de deputados e senadores não há qualquer vínculo, como se sabe…

3. A máquina trituradora de reputações trabalha a todo vapor. A revista Veja, sua mais lídima representante, abriu baterias contra Dias Toffoli. Ainda que as biografias possam não ser ilibadas, a ninguém é dado o direito de enlamear reputações enquanto acusações não sejam investigadas e confirmadas. Só a imprensa se considera livre deste dever mínimo de respeito pelo outro. O ministro do STF pediu a OAS uma vistoria em vazamentos (esta palavra se tornou extremamente comprometida) em seu apartamento. Depois encomendou o serviço de impermeabilidade a suas custas. Pois o executivo da OAS faz referência ao fato. Bastou para que as manchetes fossem impregnadas de implícitos colocando o ministro entre os delatados. Como Gilmar Mentes reagiu, o que espera a imprensa é que esta reação seja uma defesa de Mentes de seu acólito Dias Toffoli. Mera ilusão de ótica. Gilmar Mentes visa mais alto: o esquecimento de qualquer delação a membros de seu partido. Aécio está quietinho, quietinho. Serra como queridinho da imprensa sabe que será para sempre ilibado e libado: Basta ele dizer que é mentira, que tudo vira mentira mesmo. Nenhuma ligação entre os fatos, como é óbvio.

4. PSDB e DEM fazem seu jogo de cena e ameaçam retirar-se da base do governo -ao mesmo tempo em que votam em propostas de interesse do governo como a desvinculação de recursos no orçamento, tudo porque estão achando o “pacote de bondades” de Temer exagerado, agradando a alguns setores estratégicos para sua elevação e coroação como “elefante ajaezado” (elefante porque tudo o que fez até agora está tornando o estado muito mais gastador do que era antes e ajaezado porque precisa ludibriar o distinto público do circo em que nos é dado viver) como é o caso na magistratura… O aumento dos salários, que produzirá aumetnos em cascata nos estados, é o motivo da bronca do PSDB e do DEM que ameaçam abandonar o barco se Temer não se posionar com clareza contra este aumento.

Pois liguem os fatos: a notícia do salário dos juízes de domingo; a inclusão do amigo e acólito Dias Toffoli entre os delatados; a ação pirotécnica de Gilmar Mentes, expoente do PSDB; a nomeação do advogado de Eduado Cunha para a Gabinete Civil da Presidência da República, e esta ameaça de faz de conta do PSDB e do DEM, e temos todo o espetáculo ofuscante enquanto se tomam providências reais para atingir as metas reais apontadas anteriormente, estas que não ocupam as manchetes e às vezes aparecem no noticiário econômico. Fiquemos atentos a elas… 

 

 

Textos sobre textos. A sombra do vento

O ponto de partida do romance A Sobra do Vento, do barcelonês Carlos Ruiz Zafón (Publicações D. Quixote, 2004 – tradução de Teixeira Aguiar, Leya S.A., 2011) é o mundo dos livros. Trata-se de uma trama entre livros, sebos e bibliotecas.

Seu personagem central, Daniel Sempere, é filho de um alfarrabista. A associação dos donos de sebes mantém um “Cemitério dos Livros Esquecidos” e aos dez anos o pai o leva para conhecer a vasta biblioteca de livros ali deixados para a posteridade. Como herdeiro da tradição, explica-se o pai que deve escolher naquele mundo de livros, um livro com cuja sobrevivência ficará para sempre comprometido. Depois de zanzar pelas galerias e enormes armários do chão ao teto, ele encontra “A Sobra do Vento” de Julián Carax.

Devora o livro e sai à procura de outros romances do mesmo escritor. Um colega de profissão do pai Sempere lhe informa que é muito difícil encontrar obras de Carax porque houve alguém que por muito tempo procurou todos os exemplares e os queimou. Aliás, a personagem que incinera os livros descobre que Daniel tinha um exemplar e o procura para comprar e apagar da face da terra as provas de que houve uma vez um escritor Julián Carax.

Daniel fica curioso e começa a investigar a vida do autor. As peripécias desta investigação constituem a trama em que o tempo vivido por Julián Carax se torna o próprio enredo do romance de Zafón. Vasculhando este passado, ao mesmo tempo em que vive sua juventude, Daniel Sempere vai desvendando toda uma vida trágica de seu autor preferido: suposto filho de um chapeleiro, Julián foi beneficiado por uma bolsa de estudos num colégio de ricos, a pedido de Ricardo Aldaya, cliente da chapelaria. No Colégio São Gabriel, o estudante pobre encontra amigos que continuarão em sua vida por todo o tempo: Jorge Aldaya, Fumero (mais tarde inspetor torturador e assassino do regime fascista de Franco), Miquel Moliner e Fernando Ramos (mais tarde padre e professor da mesma escola).

Daniel vai descobrindo o amor fracassado de Julián e Penélope (irmã de Jorge Aldaya) e desvendando a vida solitária que Carax levou em Paris para onde pretendia fugir com Penélope, depois que a mãe desta os descobrem fazendo amor no quarto da ama confidente e alcoviteira. Escritor e pianista em cabaré, Carax vivia de dois patrocínios: o da dona da casa, Madame Merceau e do seu amigo Miqel que pagava as edições de seus livros sem qualquer sucesso de público.

Enfronhado na história do autor, a personagem começa a viver em sua vida, como num espelho, os mesmos dramas românticos: apaixona-se por Bea, irmã de seu melhor amigo Tomás. Amores furtivos e escondidos, em encontros secretos na antiga e abandonada mansão dos Aldaya! Nos espaços por onde andou apaixonado Julián Carax, anda agora Daniel cm sua “Penélope”.

Obviamente, como ocorrera com o par Julián/Penélope, também o par Daniel/Bea são separados pela intromissão paterna. Como Jorge Aldaya ameaçou matar Julián, Tomás ameaçou Daniel. Num jogo de espelhos: o que investiga a vida do outro, vive em sua vida os mesmos dramas. Este jogo de espelhos permeados por livros e bibliotecas, personagens “fictícios” e personagens “reais” permite ao romancista criar um suspense contínuo.

Enquanto a proibição do amor entre Julián e Penélope tinha uma razão descoberta somente mais tarde: eram irmãos, descoberta tardia, o romance entre Daniel e Bea, apesar das ameaças todas, perdura sofrendo os percalços da investigação em que Daniel é ajudado por um ex-prisioneiro político do fascismo, ex-mendigo e depois empregado da loja do pai Sempere. Fermin Romero de Torres, além de detetive audaz, é o filósofo que ensina com enunciados que obrigam o leitor a parar para pensar:

“A maneira mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a quererem imitar os ricos. É esse o veneno com que o capitalismo cega…” (p.218)

“A televisão, amigo Daniel, é o Anticristo, e digo-lhe que bastarão três ou quatro gerações para que as pessoas não saibam nem dar peidos pro sua conta e o ser humano regresse às cavernas, à barbárie medieval e a estados de imbecilidade que a lesma já ultrapassou lá para o Plistoceno. Este mndonão morrerá de uma bomba atómica, como dizem os jornais, morrerá de riso, de banalidade, fazendo uma piada de tudo, e aliás uma piada sem graça.” (120-121).

Na voz de Bea, um vaticínio sobre livros e leitura:

“… a arte de ler está a morrer lentamente, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só podemos encontrar nele o que já temos dentro, que ao ler aplicamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais escassos.” (p.518)

O espaço da ação é a cidade de Barcelona, o que permite ao leitor deslocar-se entre o mundo medieval da praça da Catedral, no bairro Gótico, para a moderna praça da Catalunha, da Plaza Reyal para as Ramblas que separam o mundo gótico do mundo moderno, ou “viajar” para o contemporâneo Tibidabo, sem deixar de lado a Barceloneta ou o Paseo de Colón.

O tempo é o da primeira metade do século XX, entre 1919/1955. O que significa ter presente a guerra civil espanhola e a segunda grande guerra. Mas as guerras não são pano de fundo do romance e aparecem apenas como ecos obrigatórios para o período de vida de Julián Carax e Daniel Sempere.