Domingo: poesia e memória

POESIA

O rio passa, passa

e nunca cessa.

O vento passa, passa

e nunca cessa.

A vida passa:

nunca regressa.

(Poema Azteca. Tradução de Herberto Helder. Rosa do mundo. 2001 poemas para o futuro. Lisboa : Assírio & Alvim)

MEMÓRIA

 

                Estamos no Luna quando Ary traz a notícia:

                – Suidicaram ele – diz.

                Torres contou por telefone. Foi avisado d e São Paulo.

                Eric se levanta, pálido, boquiaberto. Aperto seu braço; torna a sentar. Eu sei que ele tinha combinado de se encontrar com Vlado e que Vlado não tinha ido nem telefonado.

                – Mas se ele não estava em nada – diz.

                – Mataram porque ele não sabia – diz Galeno.

                – A máquina está louca – penso, ou digo. – Devem ter atribuído a ele até a Revolução de 1917.

                Eric diz:

                – Eu achava que isso tinha acabado.

                Sua cabeça cai entre as mãos.

                – Eu… – se queixa.

                – Não, Eric – digo.

                – Você não entende – diz. – Não entende nada. Não entende merda nenhuma.

                Os copos estão vazios. Peço mais cerveja. Peço que encham nossos pratos.

                Eric me crava um olhar furioso e se mete no banheiro.

                Abro a porta. Encontro-o de costas contra a parede. Tem a cara amassada e os olhos úmidos; os punhos em tensão.

                – Eu achava que tinha acabado. Achava que tudo sisso tinha acabado – diz.

                Eric era amigo de Vlado e sabe o que Vlado tinha feito e tanta coisa que ia fazer e não pôde.

(Eduardo Galeano. Dias e noites de amor e de guerra. p. 78-79)

 

ENSINO DIALÓGICO: DO DISCURSIVO À ESTRUTURA SINTÁTICA

DIALOGIA: DO DISCURSIVO À ESTRUTURA SINTÁTICA

 

João Wanderley Geraldi

 

Em busca da correção formal (estritamente gramatical), é esquecida a tarefa de educar a individualidade discursiva dos alunos. Os professores temem a audácia discursiva dos seus estudantes e às vezes simplesmente recomendam que não abandonem os lugares-comuns linguísticos ‘para não cometer erros’. (Mikhail M. Bakhtin)

Introdução

         Este texto não pretende trazer novidades teóricas ou resultados de pesquisas recentes. Na verdade, minha pretensão é simples: fazer uma reflexão sobre possibilidades de trabalho de mediação pedagógica nos processos de produção de textos em ambiente escolar, retomando um tema que me é caro desde os inícios dos anos 1980 e que revisitei tantas vezes que se torna impossível não ser repetitivo, mesmo sabendo que o refrão “água mole tanto bate em pedra dura até que fura” não ser aplicável às relações humanas, entre as quais se situam aquelas de ensino/apredizagem. Se na natureza a água no decorrer dos anos fura a pedra, no mundo da vida humana somente se alcançam mudanças quando dialogicamente as pessoas constroem em conjunto novas compreensões.

         Por isso defendi ao longo dos anos que as concepções de linguagem é que embasam o trabalho pedagógico que fazemos no ensino de qualquer das facetas do uso ou da descrição de uma língua. Enquanto esta concepção não for assumida como própria, qualquer que ela seja – muito embora eu defenda uma concepção particular, as atividades de ensino não são geridas pelo professor, mas repetidas por ele como uma rotina, sem construir uma prática verdadeira porque seu passado de ontem não ilumina o futuro, e este sempre ficará dependendo de orientações que lhe venham de fora, quer na forma de livros didáticos, quer na forma de exercícios e aulas disponíveis em portais a que acessa não para construir sua aula, mas para executar sua aula de forma automática e não autônoma. O que não provém de si, mas é dado de fora sem internalização dos princípios e concepções que orientam o fazer do professor, faz deste um eterno dependente de novas orientações, de novos exercícios, e novas aulas prontas a serem “executadas”, sme jamais ministrá-las com assinatura própria, com autoria.

         Neste círculo vicioso, em que a dependência é continuamente alimentada, aumentando-a e ao mesmo tempo justificando a multiplicação dos produtos prontos para cada aula, sobre cada tema – desconhecendo os sujeitos que compõem a sala de aula – jamais se romperão os elos da produção e consumo, ruptura necessária para aqueles que não compactuam com a concepção da educação como mercado e os conhecimentos e competências como mercadorias que se compram e vendem no atacado dos beneficiados pelos programas ao estilo do Programa Nacional do Livro Didático, e no varejo das salas de aulas pouco atrativas porque não encarnadas por professores e alunos.

         Minha insistência no tema faz parte desta luta mais ampla de recusa da área da educação como mercado e da necessária reconstrução da autonomia relativa do professor. Relativa porque todas as autonomias são relativas e se constroem na relação com a alteridade.

 

1. O discurso e suas orientações

         A passagem de Bakhtin (2013) que serve de entrada para este texto, retirada de nota dos editores russos do artigo “Questões de estilística no ensino da língua” (1), remetia à realidade escolar russa dos anos 1940, mas também pode-se aplicar à realidade escolar brasileira, talvez hoje com menor ênfase na correção gramatical, mas com a mesma veemência das antigas atitudes do ensino de gramática, hoje substituído pelo ensino formal dos gêneros. Tão formal que estudantes em formação, futuros professores, já estão suficientemente ideologizados e não conseguem comentar um texto de aluno se não lhes forem informadas a consigna dada – o gênero de texto demandado pelo “exercício” de escrever (e não pelo exercício da escrita, uma diferença a que retornaremos).

         A propósito destas marcas na leitura do professor, retomo aqui uma sessão de orientação de tese(2). Tratava-se de examinar resultados de uma destas provas de avaliação promovidas pelos sistemas de ensino. No caso, uma prova aplicada aos alunos pernambucanos, cujos escores haviam sido muito baixos. A prova era extensa para o nível de escolaridade a que se destinava: duas dezenas de perguntas, e ao final um excerto da obra de Érico Veríssimo – Clarice – em que a personagem contava uma de suas travessuras de infância: comer doces das compotas da avó. Após o texto vinha a demanda dos examinadores: como toda criança, você também fez suas travessuras, narre uma delas.

Destaco aqui algumas das respostas que mais chamaram nossa atenção, mas que foram avaliadas com nota zero porque não atendiam ao que foi demandado pela pergunta:

  1. Eu sou evangélica e evangélico não faz travessuras.
  2. Eu fiz muitas travessuras, mas não sou bobo, não vou contar nenhuma.
  3. Eu estava na calçada e tinha muito movimento de carros. Não pude fazer a travessura da rua.

Os enunciados proferidos pelos alunos dialogavam seriamente com a ordem dada, quando se esperava apenas que executassem a ordem e mostrassem que dominavam um gênero de discurso – o narrativo. Das respostas dadas não se pode deduzir que estas crianças não saibam construir uma narrativa com personagens, espaços, tempos, ações etc. Nem que não dominam este gênero na forma escrita (porque oralmente é mais ou menos óbvio que narram). A nota atribuída, no entanto, é zero e as conclusões apressadas são aquelas que atribuem desconhecimento ao aluno, como faz a imprensa toda vez que temos divulgação de dados de provas deste estilo: atribui-se uma falta (um não saber) sem considerar absolutamente nada das condições discursivas das respostas dadas.

Nestes três exemplos os enunciadores respondem discursivamente ao demandado, não obedecendo à demanda feita. O primeiro transmite uma informação que justifica não ter o que contar; o segundo desconfia da honestidade da demanada – afinal, se toda travessura pode levar a um castigo, quem lhe garante que ao contar uma das suas (e portanto confessar uma falta) não será dedurado pelo leitor desconhecido?; o terceiro, por fim, faz uma curta narrativa, mas mostra que o termo “travessura” não faz parte de seu vocabulário, e por isso constroi-lhe um sentido, aliás um sentido construído com base numa análise morfológica que toma o radical da palavra em consideração – através, atravessar, travessura têm o mesmo radical. Que é uma “travessura” se não atravessar limites dados?

Nada destas considerações de ordem dialógico-discursivas são levadas em conta quando simplesmente não se lê o que o estudante escreve, mas se busca no que escreve aquilo que se quer ler. E então as respostas ficam incompreensíveis porque o próprio avaliador não tem qualquer autonomia para perceber sentidos, e lê como autômato, como máquina, que não quer ler/ouvir o que não espera. E muitos zeros são assim distribuídos…

  Consideremos agora um exemplo didático, que usei várias vezes em sala de aula. Trata-se de narrativa curta, de fato dos tempos de minha infância.

Éramos muitos em casa. As tarefas eram distribuídas. Um lavava a louça; outro secava; outro retirava e mesa e guardava a louça limpa e seca; outro levava os restos de comida para o cachorro, e outro levava os restos de saladas para as galinhas, O galinheiro tinha cerca alta e um portão. Coube-me levar os restos ao galinheiro. Tinha duas opções: abrir o portão e jogar tudo lá dentro (com o risco de alguma galinha escapar) ou subir numa caixa e jogar por cima da cerca. Fz isto, mas o prato me escapou das mãos e caiu no chão. Quando retornei, a mãe perguntou pelo prato, e respondi:

– O prato quebrou.

         Queria aqui explicar que um enunciado faz um recorte de uma cena no mundo para aprensentá-lo ao outro, mas esta apresentação não se faz sem que nela interfiram os fenômenos típicos da enunciação, incluídos aí os objetivos do falante. Neste caso, “o prato quebrou” orienta-se pelo interesse do locutor em não se incriminar. Seria totalmente diverso se dissesse:

                   – Eu quebrei o prato.

              – Eu derrubei o prato e ele quebrou.

         A escolha de uma ou outra expressão tem efeitos discursivos distintos, daí não ser possível simplesmente tratá-las como sinônimas. Uma análise apenas sintática, com base numa gramática de casos, em que o complemento do verbo (em “Eu quebrei o prato”) se torna sujeito do verbo (em “O prato quebrou”), esconderia que os processos enunciativos se deixam dirigir por aquilo que não é enunciado, até mesmo numa estrutura sintática simples. Reconstruir a cena, como ouvinte/leitor, é sempre um modo de descobrir que elementos podem ter sido deixados de lado, ou na escrita literária, verificar que pormenores geralmente desconsiderados tornam-se fundamentais para mostrar até mesmo o estado de espírito de uma personagem, a angústia ou alegria que vive. A título de exemplo, tomo pequena passagem do romance que estou lendo hoje(3):

“Kern dirigia-se vagarosamente ao Correio Central. Sentia-se cansado. Não dormira quase, durante as últimas três noites. Ruth já deveria estar aí, há três dias. Durante todo esse tempo não conseguira notícias dela, nem uma carta. Procurava se tranquilizar resolutamente, atribuindo isso a alguma causa trivial, e imaginava mil explicações. Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca. Sentia-se estranhamente entorpecido. O barulho da rua penetrava atavés de seu pesar, como vindo de uma gande distância, e ele andava tal como um autômato, pondo maquinalmente um pé depois do outro.

Demorou algum tempo para identificar um casaco azul. Parou. “É algum casaco azul qualquer, pensou. É algum dos cem casacos azuis que me têm andando enlouquecendo, esta semana”. Desviou o olhar, depois fitou novamente. Alguns carteiros, e uma mulher gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista. Susteve a respiração e notou que estava tremendo. O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemtne lhe atravancava o caminho. Pôs-se a andar cautelo, como se estivesse sobre um fio de arame, com medo de cair a qualquer momento. E mesmo quando Ruth se voltou e ele lhe pôde ver o rosto, supôs ainda que estava sendo vítima de um truque diabólico da sua imaginação. Só depois que o rosto dela se iluminou foi que correu para a frente, para abraçá-la.” (Remarque, 1941, p.268-269)

         Duas passagens chamam atenção pelos detalhes:

  1. Alguns carteiros, e uma mulher gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista.
  2. O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemtne lhe atravancava o caminho.

Note-se a diferença entre (1) e (1*), e entre (2) e (2*):

(1*) Alguns carteiros e uma mulher lhe boqueavam a vista.

(2*) O casaco azul movimentou-se por entre as pessoas e as bicicletas que atravancavam o caminho.

Estes detalhes, que podem ser resultados de operações, a que chamei de operações de expansão (Geraldi, 1991), mobilizam recursos linguísticos que chamam o leitor para o pormenor, ao mesmo tempo que demonstram um personagem angustiado que procura alguém, que já se decepcionou por não ter encontrado e que agora renova, na angústia, as esperanças de um encontro que por fim acontece.

A outro enunciado, na mesma passagem, que chama a atenção face a sintaxe de colocação posta a funcionar para produzir efeitos de sentido como se uma voz dissesse algo, e logo depois esta mesma voz, como se fosse uma segunda voz, acrescenta um desespero ainda maior. Veja-se a diferença entre o que escreve o romancista (ou a tradutora, neste caso) e o uso mais comum da colocação dos dois advérbios no enunciado:

  1. Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca.

(3*) Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria nunca mais.

No primeiro enunciado, há que fazer uma pausa, um gesto, depois de “viria mais” para em outro tom dizer “nunca”, enquanto que em (3*) esta pausa não existe e perde-se o efeito de jogo de tons, de vozes.

Análises que partem da concepção dialógica da linguagem e que a tomam como uma atividade constitutiva das línguas em seu sentido sociolinguístico, das consciências dos sujeitos falantes (“a palavra concebe o seu objeto”), permitem que se compreendam mais amplamente os recursos linguísticos mobilizados na construção de qualquer enunciado, de modo que se pode assim “revisar as formas da língua em sua comprensão linguística comum” mesmo que estas compreensões sejam feitas de forma inicialmente intuitiva.

Bakhtin (2013), nas indicações metodológicas para o ensino do período composto por subordinação sem conjunção, apresenta análises estilísticas partindo da intuição de seus alunos sobre o uso de uma ou outra forma disponível no sistema, defendendo o ponto de vista de que

“… no estudo das formas sintáticas paralelas e comutativas, isto é, quando o falante ou o escrito tem a possibilidade de esclher entre duas ou mais formas sintáticas igualmente corretas do ponto de vista gramatical. Nesses casos, a esclha é determinada não pela gramática, mas or considerações puramente estilísticas, isto é, pela eficácia representacional e expressiva dessas formas.” (Bakhtinm 2013, p. 25)

  

2. O exercício de escrever e o exercício da escrita

   Estas análises, para não se tornarem também elas rotinas de sala de aula, sem qualquer vínculo que não a transmissão de informações, precisam estar articuladas a processos de ensino/aprendizagem que entendam o processo educativo como muito mais profundo do que a simples transmissão de informações. Retorna-se assim aos fundamentos que orientam as análises – no caso a concepção de linguagem – e aos fundamentos que orientam o processo de ensino – no caso, a concepção de educação.

   Construir na escola “inéditos viáveis” que permitam aos alunos proferirem as suas palavras para serem escutadas; apor-lhes a assinatura em seus textos demanda pensar as produções de textos não como um exercício do escrever, mas como o exercício da escrita, entendido este como construçao de autorias, de trabalho entre sujeitos e não apenas entre posições (como ocorre nos sistemas de avaliação de larga escala, em que os papéis de avaliado e avaliador se sobrepõem à relação de interlocução, como mostraram nossos primeiros exemplos). Em condições tais, há um exercício de escrever, não para dizer sua palavra ou para influenciar o outro, mas para mostrar a alguém, que se coloca numa posição de não ouvinte, que se sabe escrever.

   Estas mesmas condições são produzidas em sala de aula, quando se ensina um gênero discursivo qualquer, apontanto até mesmo para as condições de seu uso real, e depois se pede que o aluno escreva um texto neste gênero (paradoxalmente, uma escrita que não atende sequer às condições de emprego do gênero recém estudadas com os alunos!). Ou quando se ensinam uma estrutura sintática ou os diferentes efeitos diante de variações estilísticas comutáveis, e depois se solicita um texto que contenha as estruturas estudadas. Nestes casos temos também apenas exercícios de escrever.

    No exercício da escrita, trata-se de por-se como autor, auxiliado pelo professor, que na mediação pedagógica faz-se co-autor dos textos dos alunos. Aqui o projeto de dizer orientará tanto a seleção do gênero quanto a mobilização dos recursos expressivos disponíveis. O papel do ensino é lidar com estes textos e trabalhar com eles e a partir deles, inclusive para descobrir e estudar formas alternativas de dizer. Entre uma versão e outra, um texto ou excertos de textos poderão ser lidos não só em função do tema, do assunto sobre que se está escrevendo, mas também para estudar formas de dizer diferentes daquelas que já dominamos.  De versão em versão, aprende-se mais sobre o tema do discurso quanto sobre as formas de expressá-los.

   Inúmeras vezes já usei o exemplo abaixo(4), início de um texto de aluno de quarto ano:

                   Eu acordei e fui escovar os dentes…

   De que outras muitas maneiras se poderia dizer “fui escovar os dentes”?

   Obviamente há formas quase sinônimas, que alteram, com perda ou com ganho de sentido, sem grande mudança para além da superfície, como

                   Acordei e escovei os dentes…

                   Acordei e depois escovei os dentes…

                   Ao acordar, escovei os dentes…

                   Escovei os dentes assim que acordei…

   Mas há também alternativas que poderiam literaturizar a narrativa, levando a alterações estilísticas mais profundas. Em Geraldi (1991) propus a leitura de um conto, em que o ato de escovar os dentes é expresso na forma metafórica (“num arremedo de sorriso, vi no espelho minha boca cheia de espumas”). Obviamente que a leitura do conto não se fecha na descoberta (e curtição) desta metáfora, mas chamar a atenção dos alunos para os modos de dizer, de apresentar, de expressar o mundo e nossas ações nele, quando autores mobilizam recursos expressivos de modo inusitado é fundamental para que se desenvolvam o gosto pela língua e suas formas. Certamente não se trata de ler um texto para localizar metáforas e depois exigir que os alunos usem estas metáforas num texto de deverão produzir (isto seria um retrocesso ao exercício de escrever, à redação). Mas trazer para o próprio texto que o aluno já está escrevendo, explorando os caminhos apontados pela metáfora encontrada no conto é uma forma de fazer ver que a apresentação e a representação do mundo podem variar. Assim, neste caso, poderíamos ter desde o “plágio” da metáfora lida até a exploração paráfrases, analogias e metonímias. Não se trata de ensinar o nome dos fenômenos – embora denominá-los não prejudique – mas de mobilizar recursos expressivos para construir paráfrases, analogias e metonímias:

                  Acordei e me vi no espelho com a boca cheia de espuma…

                   Acordei e a pasta de dentes me esperava no armário do banheiro…

   Há outras possiblidades. Uma apontada por um estudante remete diretamente às razões do escovar os dentes pela manhã:

                   Acordei e tirei o mau gosto da boca com escova e pasta de dentes… refrescante!

   Exercícios como estes são práticas que levam a novas versões dos textos dos alunos. O tempo supostamente gasto com estas explorações de variações estilísticas são tempos de convívio muito produtivo com a língua e aposta-se que terão consequências em futuros textos que vierem a escrever, sem que a presença do estudado deva ser cobrado em tais textos. Isto porque não se concebe a educação como uma atividade bancária, há tanto tempo denunciada por Paulo Freire (1970).

Notas

  1. Conforme a nota 40 dos editores russos, este fragmento estava em folha avulsa inserida nos manuscritos, e não faz parte do artigo. Utilizo o título do artigo da versão brasileira do texto.
  2. Narro aqui uma sessão com minha ex-orientanda Profa. Lívia Suassuna, nos primeiros encontros de orientação de sua tese de doutoramento. Obviamente nada aqui é textual, pois narro de memória.
  3. Trata-se do romance do escritor alemão, exilado nos EEUU depois da ascensão do nazismo, Erich Maria Remarque, Náufragos, de 1941, traduzido por Rachel de Queiroz, editado pela José Olympio Editora, sem data na edição que estou manuseando. Na citação, faço atualização da ortografia.
  4. Trata-se dos primeiros enunciados de um texto de aluno, cf. Geraldi (1991).

 

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo : Editora 34, 2013.

Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1970.

Geraldi, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

Remarque, Erich Maria. Náufragos. Tradução de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro : José Olympio Editora, s/data (original de 1941).

Para leitores atentos: paginação e perfídia dos jornalões brasileiros

Os jornalões brasileiros, cujos proprietários jogam na direita, sempre foram exímios na paginação de matérias para produzir efeitos de sentidos que lhes interessam. A FSP talvez leve o prêmio de mais sorrateira, fraudulenta e parcial. Alguns comentaristas e jornalistas de esquerda assinam crônicas em suas páginas. Com isso ela pode dizer que é um jornal plural, que abriga todos os pensamentos. Todos os leitores da FSP – deixei de sê-lo há muitos anos – sabem que a verdadeira linha editorial do jornal dos Frias conduz a opinião publicada para se opor a teses da esquerda. Não posso usar exemplos aturais da FSP, por não ser leitor deste jornal deste que percebi que ele não passava de um boletim partidário do PSDB.

Mas o Estadão não fica para trás. Não chega ao virtuosismo. Mas segue de perto. E obviamente seu ideário está a anos-luz das perspectivas de esquerda. Na edição de ontem – quinta-feira, 28.07.2016 – há um exemplo perfeito da paginação e da perfídia.

Antes de falar da página, chamo atenção para um fato. Na página A2, o jornal abre espaço para “quem” quiser publicar, claro que sob a leitura e censura do jornal. E chama a isso de “Espaço Aberto”. O espaço não é aberto nem aqui nem na Conchinchina. Um dos artigos publicados hoje, não por acaso, de autoria do Prof. José Eduardo Faria (Faculdade de Direito da USP), começa apontando para o papel contramajoritário do STF: cabe à Corte colocar as coisas nos seus eixos jurídicos, mesmo quando a maioria (da população, da opinião publicada, dos deputados, dos senadores… seja lá qual maioria, isso não importa) estiver a favor de uma perspectiva, quando esta não estiver dentro das normas constitucionais. Como a Constituição de 1988 abriga inúmeros princípios consubstanciados na forma afirmativa de direitos da cidadania, abre-se o espaço para a interpretação dos membros da Corte. Até aí, tudo bem. O interessante é que o final do artigo acaba levantando uma posição contrária ao que defende na primeira parte. Quando a maioria é a favor, o STF deveria levar em conta este fato…

São claras as duas alusões no campo político contemporâneo, visados pelo articulista, mas não afirmados no artigo: 1. A maioria (dos parlamentares? Da opinião publicada? Da população?) é a favor do impeachment. Logo, se alguma questiúncula jurídica chegar ao STF, este deve acatar o ponto de vista da maioria e sacramentar o impeachment. 2. Como há pesquisas mostrando que a maioria é a favor da convocação de eleições gerais, o STF deve manter seu papel contramajoritário, recusando a tese porque fere algo (leis? interesses políticos?). É óbvio que um artigo assim seria imediatamente aceito no tal “Espaço Aberto” do Estadão.

Mas vamos à página A4, a primeira página de política. Em todas as edições, à esquerda em duas colunas está a tal de “Coluna do Estadão”, em pequenas notas que imitam a criatividade do velho Pasquim com suas dicas. Depois dele, colunas deste tipo apareceram em inúmeros jornais impressos. À direita, desta vez ganhou espaço o PT, para uma reportagem sobre as divergências do uso da expressão golpe no caso do impeachment durante as eleições municipais deste ano. A reportagem está cheia de citações em discurso direto, entre aspas, de membros da direção do PT e de lideranças. A divergência claramente aparece em função da pretensa desejada distância do candidato à reeleição, Fernando Haddad, tanto de Dilma quanto de Lula e a suposta recusa de municipalizar a questão nacional do golpe parlamentar. A reportagem cita: Dilma; Florisvaldo Souza (Secretário de Organização do PT); Aldo Fornazieri, (Diretor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), com dois enunciados longos, o primeiro contrário à nacionalização da campanha municipal e o segundo apontando que quem deve se defender de denúncias é o PT e não o candidato; o deputado federal José Guimarães (PT-CE) e o senador Lidenbergh Farias (PT-RJ).

Como se vê, em pouco espaço quatro políticos e um cientista político (supostamente neutro, porque cientista) são chamados a falarem na reportagem. Logo abaixo, na mesma página, outra matéria: “Discordâncias atrasam Carta aos Brasileiros”. Bom, agora a divergência segundo a matéria seria em função dos dois cenários possíveis: o impeachment ser recusado no julgamento “jurídico-político” do Senado, ou o impechament ser dado como favas contadas. Se o primeiro cenário se tornar mais claro, Dilma diria aos “brasileiros” que manteria a equipe econômica de Michel Temer (para agradar o mercado que está contentinho); se o segundo cenário for mais nítido, a carta “trará apenas diretrizes à esquerda”.  Mas nesta reportagem somente uma liderança política é citada: Carlos Henrique Árabe (Secretário de Formação Política), e nele o que afirma o dirigente é que a tal carta não é conhecida por ninguém da executiva do partido, com o qual deveria ser discutida.

Ou seja, as discordâncias a partir da qual toda a matéria é desenvolvida, é “dada como fato, como pressuposto da matéria”, sem que haja qualquer fonte afirmando sua existência. Como na reportagem anterior havia fontes citadas, agora o pressuposto desta segunda matéria (sempre desfavorável ao PT) passa como um fato, não como um pressuposto imposto pelo jornal!!!

Posta uma matéria depois na outra, o efeito de sentido é precisamente esse: como há divergências quando à nacionalização da campanha eleitoral nos municípios – e isto é afirmado com base nas entrevistas feitas – a discordância quanto à carta e aos dois cenários passa como também afirmada pelas lideranças petistas!

É assim que se pagina a política, é assim que os jornalões destilam seus venenos. Para fugir deste jogo discursivo é preciso cotejar os textos, ler as entrelinhas, ser crítico e deixar a ingenuidade bastante longe de si.

Mas este leitor atento não está nos planos da elite brasileira, que agora quer uma “escola sem partido”.

Urdir maldades nos corredores dos palácios

O mercado, contentinho, está esperando a remessa ao Congresso do saco de maldades. Nossas atenções e expectativas estão orientados para o saco que não vem porque as maldades podem ser urdidas e concretizadas, muitas delas, sem passar pelo Congresso. Passar pela discussão como a sociedade, nem pensar… Afinal as bancadas da bala, da bíblia e do boi existem para aprovar como vacas de presépio o que de urdido for nos palácios.

E as maldades aparecem como se não fossem. Revestem-se de decisões “administrativas” a serem tomadas depois de acertadas as arestas do jogo de interesses vorazes dos financiadores e apoiadores do golpe de estado. Assim, costuram os bancos retirar da Caixa Econômica Federal o monopólio da arrrecadação e gestão do Fundo de Garantia de Serviço, um fundo que pertence aos trabalhadores e por isso mesmo os lucros que possam gerar deveriam ocorrer num banco estatal, como até agora. Mas o olhar de rapina dos banqueiros avança com fome e vontade de comer. Isso nem passará pelo Congresso e será dado como uma medida administrativa. Estou falando em “ser dado”, porque será um presente para os bancos.

Outra maldade: elevação para financiamentos de casa própria pelo Caixa Econômica para residências “populares” até o valor de R$ 3 milhões!!! Ora, como não fabrica a Caixa Econômica o dinheiro que empresta (aliás muito dele vem precisamente do FGTS), então um financiamento de 3 milhões retirará o dinheiro do mesmo bolo de limite de recursos disponíveis. Quais financimanentos serão prejudicados? Os grandes contratos ou os pequenos contratos populares? Esta maldade passa como uma bondade. Bondade para quem já tem (porque só constroi ou compra casa de 3 milhões quem tem “pé de meia” como se dizia antigamente).

Maldade maior: em nome da qualidade de gestão das escolas públicas, entrega-se a gestão a organizações sociais. Atualmente a gestão não custa aos cofres públicos nada mais do que os salários que já pagam aos professores que assumem esta tarefa nem sempre fácil de liderança que exige transitar tanto pelo aspecto pedagógico quanto pelo aspecto adminsitrativo, que neste caso, é extremamente burocratizado. Pois não estão satisfeitos os índices desejados. De quem é a culpa? Da gestão da escola. Neste raciocínio absolutamente tortuoso, troque-se a gestão. Gratuitamente? Conversa para boi dormir esta gratuidade das organizações sociais e das ONGs que de não governamentar tem muito pouco porque vivem das verbas públicas. Ora, há jeitos de pagar pelos serviços de gestão escolar que exercerão, fazendo parecer que isto tudo é gratuito de uma legião da boa vontade social… Maldade que vem sendo praticada pelos estados sem que o MEC, responsável pelo cumprimento da lei que obriga o Estado a manter e garantir o direito educação. Aqui, a maldade vem pela omissão no nível federal e pela ação no nível estadual.

Se o modelo pegar, teremos a seguir outra maldade: em lugar de o Estado contratar professores, contratará uma Fundação para que providencie que sejam ministradas tantas milhões de aulas. A Fundação prestará o serviço. Terceirização e precarização estão no horizonte das possibilidades… Ninguém quer comprar as escolas: não haverá privatização, porque o “mercado” só quer o lucro, não os custos sociais da escolarização do povo que prefere fique na ignorância mesmo… ops! não pode ser uma ignorância total porque há organismos internacionais atentos à escolaridade e sua suposta qualidade. Então, ensine-se alguma coisa porque a televisão fará com que qualquer espírito crítico desapareça. Isto quando sobre tempo ao povo para ver TV, porque nas condições de trabalho e moradia, gastam 3 a 5 horas indo e vindo para o trabalho, e trabalham 8h45m (estes minutos são para compensar o sábado à tarde, no comércio; na indústria não conheço a compensação do sábado!). De modo que as próprias condições de vida embrutecem e fazem esquecer o que aprenderam nos bancos escolares.

Maldade milionária: já avisou o ministro dos bancos que ocupa a cadeira na Fazenda que o rombo das contas será muito maior do que previam… A equipe de Dilma previa menos de 100 bi; a equipe do perdulário Michel Temerbroso prevê 170 bi e agora diz que vai gastar mais ainda. A desculpa sempre será a queda na expectativa de arrecadação. Mas as necessidades são outras: há que pagar o golpe, há que pagar apoios, há que “conquistar” apoios. E não é de parlamentares e governadores que se fala. Aqui se trata de outro setor da rapinagem: os veículos massivos de comunicação. Ou pensam que a Globo não está apresentando sua conta? Vejam, uma maldade que nem aparece como tal – não estaria no saco de maldades! É “decisão” administrativa.

E assim vamos indo: grandes maldades praticas à luz do dia, enquanto estamos focados na maldade da retirada do Estado de sua função primeira: um tertius necessário às relações sociais. Quem sabe, de futuro, privatizam também a prestação da justiça! Já foi um pouco assim no Império Romando. Mas essa maldade ficará para o próximo golpe, porque a magistratura garantiu sua existência e permanece muito operante para que as coisas sigam no trilho que traçaram os golpistas.

Para finalizar, vou fazer uma sugestão ao Ministro da Chevron, o vendilhão do patrimônio público (sempre sobra alguma coisa…): venda os Lençois Maranhenses à exploração turística de conglomerados norte-americanos. Eles farão do lugar uma nova Cancun… E ainda darão empregos de faxineiras, serventes, garçons, camareiras e tudo o mais para o que vocês devem chamar de povinho brasileiro, este de que vocês não conseguem se ver definitivamente livres!

E que não se diga que não tenho colaborado com ideias para o futuro do golpe! Depois vou cobrar também o meu quinhão, mas por favor, antes de ficarmos nus e recorrermos ao FMI como já recorreram no final das privatarias feitas à la FHC e José Serra, que, como disse o próprio “príncipe dos sociólogos”, era o mais afoito privatizador de seu governo! Por isso se tornou ministro da Chevron. Um prêmio merecido!

 

ESCOLA SEM PARTIDO, PARTIDARIZADA PELO PENSAMENTO CONSERVADOR

Depois de escrever a crônica de ontem sobre a escola desejada pela direita com o projeto da “escola sem partido”, recebi gratos comentários. Um deles me faz voltar ao tema. Assinado pela amiga Tati Fadel:

Eu e a Klara Schenkel, porém, planejamos um contragolpe: assim que alguém falar “Meu Deus”, ou “Nossa Senhora” ou “Feliz Natal ou Páscoa”, a gente também denuncia, porque está indo contra a formação não cristã que pretendemos. Ou denunciaremos quem falar de empreendedorismo, por contrariar nossos princípios comunistas. Plano: inundar o MP de denúncias diárias até chegar ao limite do intolerável, hahahaha

Tati Fadel

Ela mesma me dizia que em algumas escolas particulares já está a acontecer a censura. Pais evangélicos proíbem “contos de fada” por serem coisas do demônio! Já imaginava que, se aprovado o projeto, muita censura viria precisamente dos fundamentalismos evangélicos, católicos, muçulmanos ou que qualquer outra natureza, além dos ideológico-partidários. Não sabia que já estavam presentes no chão da escola particular. E talvez da pública sem que a gente saiba. Na minha experiência de orientação de professores, algumas vezes tivemos problemas com alguns livros de literatura. Érico Veríssimo foi censurado por um pai, que reclamou da professora de português porque sua filha estava lendo, acho, “Um certo capitão Rodrigo” (que é parte de O Tempo e o Vento).

Parece que agora o clamor fundamentalista chega ao Parlamento, num momento muito oportuno para a direita brasileira. Se o projeto for endossado por Michel Temer (e ele endossa qualquer coisa que lhe dê algum apoio, seja o que for), será aprovado. Embora obscurantista, sairá pela rua a grande plumagem tucana defendendo as ideias de um filhote de seus ninhos… Não será o caso de usar chumbo-grosso, dando a tarefa ao sociólogo que acreditou que era “o príncipe dos sociólogos”. Mas se necessário, vai ele mesmo defender o obscurantismo, porque afinal ele já disse que era para esquecermos o que escreveu no passado, embora nada tenha dito sobre o que escreve hoje. Neste caso, penso que devemos ignorar simplesmente, para não ter de esquecer depois.

Todo movimento da renovação pedagógica de nossas escolas, particularmente aquele iniciado com a redemocratização do país, terá um refluxo enorme! Como já há livros de pós-modernos elogiando a escola do século XVIII, nada mais oportuno do que um projeto de lei que assume partidariamente uma posição – as concepções sociais de direita – para pedir uma “escola sem partido”. É engraçado isso: é partido quando faz críticas à situação político-social, quando faz alertas para o esgotamento da exploração do planeta. É sem partido quando aceita piamente o status quo, quando ensina baixar a cabeça, quando enche a cabeça de todos com conhecimentos alienados e sem sentido, quando não ultrapassados.

Fico feliz por estar aposentado. Certamente estaria entre os professores denunciados por “partidarismo”, pois afinal li com meus alunos muitas obras do Círculo de Bakhtin. O próprio título da obra assinada por Volochinov, “Marxismo e Filosofia da Linguagem” me condenaria… Na verdade, quando o li pela primeira vez, evitei citá-lo não pelo título mas pelo conteúdo (li a versão editada pela Siglo XXI que lhe deu o título de “La filosofia del Lenguaje y el Signo Ideologico”). Os tempos ainda eram da ditadura militar e já tínhamos aprendido a nos cuidarmos, coisa que a geração atual terá que aprender a duras penas com a ditadura civil que se apresenta prendendo até ex-senadores (Eduardo Suplicy, preso ontem pela truculenta polícia de São Paulo apadrinhada, aliás, pelo mesmo partido que apresenta o projeto da “escola sem partido”).

Nossa história, é bom recordar, é cheia destes momentos de aprendizagem para conviver com a democracia e com a falta dela: a república começa com marechais, tem um fôlego de democracia parcial e formal na primeira república (28 anos), segue-se uma ditadura de 15 anos (período do Estado Novo de Vargas), novamente uma democracia formal sob a égide da Constituição de 1946 durante 20 anos, e vêm os militares impondo uma ditadura truculenta por outros 20 anos. A nova república começa claudicante em 1985 e dura até 2016, “exagerados” 31 anos!!! Era muito tempo de democracia para as elites brasileiras, tacanhas, egoístas, retrógradas e escravocratas. Estamos amargando o começo de um novo período neste ciclo que precisamos romper na história do país: um golpe a cada 20 e tantos anos em média!!! E a história ensina: o tempo da ditadura é longo psicologicamente, mesmo quando breve cronologicamente.

A resistência da escola será fundamental, como já foi fundamental no passado. Espero que não cheguemos às listas de palavras que não podíamos usar em nossas salas de aula sempre frequentadas por informantes do SNI (talvez inexistentes apenas nos primeiros anos do ensino fundamental). Expressões como “consciência”, “questão social”, “realidade social”, “miséria”, “estrutura fundiária”, entre outras, eram já motivos de suspeita sobre nós!!! Comecei minha carreira universitária aprendendo imediatamente a evitar estas expressões… Mas aprendemos a usar outras. Foucault nos forneceu a Ordem do Discurso; Bourdieu e Passeron, A Reprodução.  

Resta sempre a pergunta: que obras encontrarão Tati Fadel e Klara Schenkel para dar suas aulas de literatura no ensino médio? Nem Nélson Rodrigues poderão ler por questões morais! Talvez Plínio Salgado? Poderão ler Tiago de Melo, porque agora é golpista?

A tática das denúncias proposta pelas colegas é interessante! Se seguida por muitos professores, ao menos ocuparão os olhos de promotores e lhes mostrarão que as denúncias “fundamentalistas” são tão ridículas quanto aquelas que podemos inventar. A tática, como ensinou Michel de Certeau, é a tábua de salvação dos vencidos. Que estratégia arrumarão os vencedores e golpistas para soçobrar as táticas dos vencidos? Criarão cadeias clandestinas para torturas e desaparecimentos como no passado que já vivemos? A fraudulenta Folha de S. Paula emprestará seus veículos à repressão?